(Um artigo no incontornável Journal of Economic Perspetives desta primavera formaliza evidência que impressivamente alguém que siga com regularidade a produção científica em economia já provavelmente tinha intuído. A questão reveste-se de uma inegável atualidade dado o foco que a pandemia acabou por colocar na ciência e no seu resultado em termos de vacinas disponíveis em tempo recorde, mas também porque coloca a velha questão da divisão do trabalho na própria produção do conhecimento.)
O gráfico que abre este post, de autoria de Benjamin F. Jones (link aqui) transporta-nos para uma evidência clara. As equipas responsáveis pela publicação de artigos científicos em economia em geral e nos jornais de ranking mais elevados são cada vez mais numerosas e, por sua vez, os artigos de um só autor descem a pique. O comportamento das curvas mostra-nos que é sobretudo a partir dos anos 80 que o panorama muda radicalmente.
O que também é particularmente curioso anotar, não a partir do gráfico, mas do artigo de Jones, é que este movimento acontece na economia algumas décadas depois do que acontecia já nas ciências da engenharia e das ciências fundamentais. A explicação desta mudança pelo menos na procura do chamado impacto de publicação envolve diferentes abordagens e vias explicativas pelo que o âmbito deste post será necessariamente limitado.
E não podemos ignorar, pelo menos na publicação da investigação científica em economia, que o contexto em que a mudança acontece é muito particular. É de uma verdadeira caça ao tesouro que se trata, publicar nas revistas de impacto elevado e, ao contrário do que se verifica nas ciências da engenharia e fundamentais, a questão das escolas de pensamento pesa decisivamente nesse acesso.
Pode pois, neste contexto, questionar-se se a ciência económica acordou para o modelo de ciência colaborativa que as ciências fundamentais já praticavam bem antes. Se a procura dos modelos colaborativos é simplesmente o produto do interesse na publicação com mais impacto ou se, pelo contrário, é sobretudo o interesse público que está na origem desta descoberta do colaborativo é questão que não está estudada.
Mas quando procrastinava em torno do artigo de Jones não pude deixar de me recordar de como Adam Smith equacionou a divisão do trabalho na produção de conhecimento. O tema da divisão do trabalho é abordado digamos economicamente no livro 1 de A Riqueza das Nações. Smith traz-nos nesse livro 1 essencialmente três grandes conclusões ou princípios sobre a divisão do trabalho: (i) a destreza do trabalho aumenta com a concentração num número limitado de processos, o que chamamos de especialização; (ii) a especialização implica também poupança de tempo na mudança de um processo para outro, derivado do efeito produtividade; (iii) a divisão do trabalho estimula a atividade inventiva e a mecanização. Como E.G. West pertinentemente o assinala (“Adam Smith’s two views on division of labour”, Economica, 1964, volume 31, nº 121), para Adam Smith a divisão do trabalho e o processo civilizacional andam a par.
É por isso que a perspetiva sociológica sobre a divisão do trabalho que Smith acrescenta no livro V e já praticamente no fim de A Riqueza das Nações sempre representou um quebra-cabeças para os leitores de Smith. Nesse Livro final, Smith concentra-se sobre as consequências perniciosas que resultam da concentração num número limitadíssimo de funções ou processos e afirma mesmo algo de similar a isto: a destreza do trabalhador que se especializa num número limitado de tarefas é obtida à custa das suas virtudes sociais e intelectuais, fenómeno que tendemos a designar de alienante ou estupidificante.
Outros economistas encarregaram-se brilhantemente de mostrar que só aparentemente as duas perspetivas de Smith são contraditórias, sobretudo se nos concentramos no papel que a divisão do trabalho desempenha no desenvolvimento da atividade inventiva. É o caso de Nathan Rosenberg, a minha grande referência na economia da tecnologia, num artigo também dos anos 60 (“Adam Smith’s on the Division of Labour: Two views or one?”, Economica, 1965, volume 32, nº 126).
A explicação de Rosenberg é riquíssima e seguramente que transcende o alcance deste post. O argumento central é o de que a atividade inventiva compõe-se de uma grande variedade de invenções, das mais simples e mecânicas às mais complexas. E o que acontece é que a criatividade da sociedade como um todo (que tende a ser mais complexa nas sociedades mais maduras e desenvolvidas) aumenta por via da divisão do trabalho enquanto que as capacidades intelectuais dos trabalhadores individuais dedicados às atividades mais rotineiras tende a diminuir. Curiosamente, Smith reserva os níveis mais elevados, complexos e sofisticados da atividade inventiva para o que ele chama “os filósofos” (“Quem inventou a máquina a vapor foi um verdadeiro filósofo e isso gera a ideia de produzir um efeito tão grande, por via de um poder na natureza que não tinha sido nunca antes imaginado”).
Reportando para o nosso tempo, os “filósofos” de Smith são hoje os cientistas especializados que trabalham num domínio superespecializado. O aprofundamento do conhecimento é conseguido através de uma divisão do trabalho (científico) levado ao extremo. Certamente que nestes domínios de atividade não temos o temos o efeito estupidificante que Smith referia a propósito dos trabalhadores em operações super rotineiras. Mas se quisermos continuar a pensar como Smith o fazia na criatividade inventiva da sociedade isso não poderá deixar de passar pelo trabalho colaborativo.
Por conseguinte, com uma antecipação temporal notável, já que a atividade inventiva e inovadora dos tempos de hoje era impensável para Smith, a divisão do trabalho é compreendida no contexto da sua complexidade económica, humana e social. A ciência colaborativa para a qual a própria investigação em economia parece ter despertado pode, como é óbvio, ser o resultado de simples calculismos individuais, visando ganhar impacto naquilo que se publica. Mas à luz de uma releitura de Adam Smith que é sempre saudável o surgimento da investigação económica colaborativa, se bem que retardada face ao observado nas “verdadeiras” ciências, é também a consequência lógica e necessária da divisão do trabalho exacerbada nessa mesma investigação.
Não conheço ainda evidência que me conforte a intuição que a rapidez com que se conseguiu a descoberta e produção de vacinas contra o COVID-19 é fruto da divisão do trabalho e sobretudo da coordenação dos seus resultados na investigação científica de suporte.
Aplicada agora à investigação económica, ainda tempos pela frente a necessidade de mais evidência para demonstrar que se passa algo mais do que um simples calculismo para melhor publicar e com mais impacto.
O inconfundível Timothy Taylor, editor do Journal of Economic Perspectives, no Conversable Economist é dos primeiros a querer explicar o fenómeno (link aqui), a quem devo aliás o alerta para o artigo de Benjamin Jones.
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