segunda-feira, 7 de junho de 2021

DEVANEIOS SMITHIANOS SOBRE DIVISÃO DO TRABALHO E JUSTIÇA

 


(Em post anterior, para compreender a evidência de que a ciência económica, embora com atraso em relação às ciências fundamentais, está mais colaborativa, publicando-se cada vez mais com impacto em conjunto e não individualmente, dei comigo obviamente a reler Adam Smith sobre o fascinante mundo da divisão do trabalho. Regresso ao tema não só porque ele é fascinante, mas sobretudo porque na linha do próprio Adam Smith e para espanto de muitos somos conduzidos a uma relação surpreendente entre divisão do trabalho e justiça. Verdade? Sim por mais estranho que possa parecer.)

O modo central como Smith relaciona a divisão do trabalho com os ganhos de destreza de cada trabalhador, e por essa via com os ganhos de eficiência e produtividade que cada um pode aceder concentrando-se (especializando-se) num conjunto limitado de tarefas, constitui a representação mais conhecida do eterno conceito da divisão do trabalho.

Mas como Nathan Rosenberg me ensinou quando investia nos meus estudos de economia da inovação, o alcance mais revolucionário do conceito aprofundado por Adam Smtih é seguramente a utilização que ele faz do conceito para estabelecer uma primeira teoria dos determinantes da atividade inventiva. Mais tarde, quando o progresso tecnológico se generalizou, outros economistas, como Schumpeter, ensinaram-nos a distinguir entre invenção e inovação. No entanto, para o nível de desenvolvimento económico e tecnológico do capitalismo de Adam Smith, a sua ênfase na atividade inventiva é crucial.

Para Smith, os benefícios da divisão do trabalho ligam-se com a atividade inventiva de cada um sobretudo pelo impulso de motivação que a concentração do interesse e da atenção viabilizada pela maior especialização proporcionam a quem trabalha. Smith compreende já na época que existe uma hierarquia de inovações das menos às mais complexas. E é particularmente atento ao facto do desenvolvimento do engenho das máquinas ser um processo cumulativo, primeiro mais imperfeitas e depois sucessivamente aperfeiçoadas por melhorias graduais introduzidas por quem as utiliza. Ou seja, há mais de 200 anos, Smith introduz claramente a ideia de que a inovação não tem apenas origem na ciência, ela é também concretizada na fábrica e no posto de trabalho, à medida que trabalhadores mais especializados têm motivação suficiente para aperfeiçoar os instrumentos com que trabalham. Como vimos no post anterior, inovações mais complexas exigem a colaboração entre várias áreas do saber porque a divisão do trabalho penetra a própria produção do conhecimento.

O entendimento da divisão do trabalho como uma espécie de meta-invenção, assente nos benefícios que ela proporciona ao exercício de todas as funções humanas, leva Adam Smith a  deliciosas observações sobre o modo como as funções da justiça, da atividade militar e da atividade legislativa se separam entre si, deixando de estar concentrados na mesma pessoa.

O argumento smithiano é coerente. A divisão do trabalho entre quem guerreia e faz justiça é crucial para que haja incentivo à melhoria do desempenho. Muita gente leu o princípio de que “em qualquer profissão, o esforço da maior parte dos que a exercem está sempre em proporção com a necessidade de realizar esse esforço”. E referindo-se em concreto à justiça, a coerência do pensamento de Smith vai no sentido de considerar que a especialização da função judicial não só cria novas motivações para o bom desempenho da função, mas também estimula uma desejável evolução cumulativa do pensamento baseada na consideração das decisões e sentenças dos seus antecessores, numa referência notável ao direito consuetudinário inglês. E é também por esta via que Smith se opõe frontalmente ao que hoje designaríamos de privatização da justiça, a partir do momento em que os juízes estão eles próprios sujeitos aos seus próprios interesses individuais. A “compra” da justiça minaria a própria justiça.

É curioso que algumas destas ideias transcendem a própria Riqueza das Nações e foram descobertas (ou pelo menos enriquecidas) com duas coleções de lições de Adam Smith, agora em domínio público, cuja publicação resultou do trabalho de alguns dos seus alunos da época na Universidade de Glasgow. Mais propriamente: as (i) Lectures on Justice, Police, Revenue and Arms (1763) e as (ii) Lectures on Rhetoric and Belles Lettres (1762-63). No Google acede-se facilmente às versões públicas destas lições.

O que é também uma verdadeira delícia é que Smith vai além de recomendar a completa separação da função judicial aplicando o seu meta-conceito de divisão do trabalho. Ele recomenda ainda (nas Lectures on Rhetoric and Belles Lettres) que a função judicial não seja exercida por unidades de grande dimensão. Devo a Nathan Rosenberg a seleção deste excerto-maravilha que é agora possível encontrar em domínio público: “Estes juízes, quando em número pequeno, terão uma maior ansiedade em proceder de acordo com a equidade do que se estivessem em grande número. A queixa nessas condições dificilmente poderá ser dirigida a uma pessoa em particular; estão com um pouco receio de ser censurados; e estão fora do perigo de ser penalizados por procedimentos errados. Para além disso, um número muito grande de juízes tende naturalmente a confirmar as posições dos outros, incentivando e inflamando as paixões de cada um”.

Pode perguntar-se a razão pela qual alguém responsável por uma das mais efetivas interpretações dos pilares do capitalismo, da formação da riqueza e do papel dos mercados nesse processo se dedica ao tratamento da justiça, seja pela perspetiva da divisão do trabalho para distinguir o seu papel nas sociedades modernas, seja pela das condições de motivação para o bom desempenho da função. É que Smith equaciona a justiça como algo de fundamental para manter a sociedade coesa, como diriam hoje alguns um cimento social.

Já perceberam que enquanto sistematizava estas notas de releitura de Smith o meu pensamento ia direitinho para a justiça portuguesa e para os riscos dela não ser o tal cimento social. Não faço ideia alguma se alguns dos mais proeminentes agentes e pensadores da justiça em Portugal leram na sua formação alguma vez Adam Smith. Mas está lá tudo ou praticamente tudo. A relação entre especialização de funções (a tecnicidade dos delitos) e a dimensão ótima dos coletivos de juízes, a motivação para o bom desempenho da função, os interesses dos juízes a que alguns chamarão de corporativos, a mercantilização e o valor de mercado desses interesses felizmente num número limitado de casos que não chega para ensombrar o sentido de serviço público da maioria.

Por estas razões, continuo na minha de que a capacidade de discernir entre os que valem a pena ler e o que devemos considerar lixo constitui o elemento decisivo da navegação à vista em que a formação se transformou.

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