(Esquerda.net)
(Regresso à questão catalã, correndo o risco de me tornar obsessivo. Mas a questão catalã, agora com a Generalitat constituída e Pepe Aragonès a presidir a um executivo paritário de membros da Esquerra Republicana e de Junts per Catalunya, continua a ser um verdadeiro laboratório da política desenvolvida em sistemas de governação multinível com fortes identidades regionais/nacionais. Uma matéria diretamente derivada da questão catalã ocupa agora o centro do debate político em Espanha e uma ideia emerge com clareza na minha avaliação: do desfecho desta outra questão entrelaçada com a do independentismo catalão depende fortemente o futuro da política em Espanha e seguramente o futuro político de Pedro Sánchez.)
Já por repetidas vezes manifestei neste blogue que não morro de amores pelo independentismo catalão. Não por ignorar as razões históricas que o podem ajudar a explicar, mas fundamentalmente dada a “qualidade” duvidosa dos seus intervenientes. Tenho horror ao vazio do que significa ser independentista sem ideário político a suportá-lo. A Esquerra tem um claro ideário político, tenho respeito por ele e não é por aí que emergem as minhas dúvidas. Quanto ao Junts per Catalunya ele está nos antípodas do meu convencimento. Não consigo perceber que raio de orientação política tem aquele agrupamento que assume paritariamente e com o meu horror ao vazio a minha desconfiança está para todo o sempre instalada.
Mas isso não significa ignorar o significado dos 44 a 46% que apoiam o independentismo catalão. O respaldo eleitoral pelo desejo de independência parece estagnado ou em recuo, mas mais de 40% de independentistas eleitorais é um peso irrepreensivelmente alto. E significa, sem margem para dúvidas, que não há solução política para o modelo espanhol, qualquer que ele seja, mais federação ou simplesmente aproximação à Espanha das ações, sem resolução do problema catalão, ou pelo menos uma moratória de longo prazo para negociar soluções.
A situação transforma-se num puzzle de engenharia complexa quando se percebe que o PSOE tem a governação presa por arames e que esses arames, com o PODEMOS em queda e em versão agora feminina depois de Pablo Iglésias ter simbolicamente cortado a “coleta” (o rabo de cavalo no seu cabelo), estão ligados a partidos regionalistas e independentistas.
A judicialização do PROCÉS, de certo modo consentida pelo PSOE para se eximir de responsabilidades políticas (o modelo de à justiça e à política a sua respetiva autonomia tem os seus riscos), introduziu uma rigidez que só torna a questão ainda mais complexa.
Sánchez, que pode ser acusado seguramente de muita coisa mas não de falta de agilidade política, por vezes a custo elevado, sempre imaginou que a tal moratória sobre a questão catalã poderia ter uma via aberta com a possibilidade negociada de indulto aos prevaricadores do PROCÉS. É essa questão que está de novo no centro do debate político em Espanha e o próprio Sánchez talvez não tenha imaginado a transcendência do momento que estava a gerar com a sua própria decisão.
A questão é complexa por várias razões, cada qual a mais desafiante:
- O crime de sedição que dominou as condenações não existe no direito português e consiste na prática numa desobediência ao poder de Estado e ao quadro constitucional, apenas distinto de um ato de rebelião por não envolver um ato armado; o governo de Sánchez já ensaiou tentativas de alteração de quadro legal mas nada de efetivo e promissor terá sido conseguido;
- As autoridades judiciais supremas já se foram pronunciando sobre a ausência de base legal para o indulto dos condenados do PROCÉS, invocando sobretudo a impossibilidade de integrar o arrependimento dos prevaricadores;
- E a dimensão mais complexa é a força das oposições ao indulto; no interior do PSOE, há quem como Felipe González invoque a inoportunidade do momento, como Alfonso Guerra que declara a sua frontal oposição à ilegalidade da medida e no interior do próprio Governo a unanimidade quanto ao indulto não é total;
- Obviamente que a principal oposição à medida é a que resulta da perceção que o PP e o VOX alimentam de que a ser tomada isso irá representar a machadada política eleitoral em Sánchez que a direita precisa para se acercar do poder; claro que existe o movimento cívico do filósofo Fernando Savater que, recorde-se, sofreu na pele a perseguição etarra no País Basco e que com a morte da sua eterna companheira tem neste movimento uma razão para existir – o movimento chama-se Unión 78, e a plataforma organizada por Rosa Díez, Fernando Savater e María San Gil é a que promove a concentração do próximo 13 de junho na Plaza Colón, para a qual confluirá toda a direita espanhola (PP de Casado, VOX de Abascal e CIUDADANOS (em agonia) de Inés Arrimadas; mas a questão central está nos dividendos políticos que a direita espanhola pensa retirar.
A dimensão trágica, quase shakesperiana desta questão, ilustra bem os tons em que a política espanhola se move. O simbolismo da Plaza Colón é enorme. Há uns tempos, uma simples fotografia de uma outra manifestação na mesma praça foi objeto de um aceso debate político. Essa manifestação, datada de fevereiro de 2019, foi organizada contra o governo de Sánchez e abriu caminho às eleições de abril de 2019. A presença simultânea e a proximidade nesse foi evento de Casado e Abascal (claramente armadilhada por este último) foi então interpretada como cedência imperdoável do PP face ao VOX, que demorou tempo a Casado afastar. Agora é diferente, porque a convergência tática suplanta todos os dissabores de então.
A tragédia de Sánchez é mais clara. Não tenho a certeza se o líder do PSOE está ou não convencido de que o indulto é de interesse público e constitui a única via para uma moratória que permita repensar todo o processo, imaginando talvez que Pepe Aragonès, ainda que profundamente manietado, tem um pendor mais colaborativo do que Quim Torra, o último presidente da Generalitat. Mas a jogada é de enorme risco político, do tipo à beira do abismo. Por um lado, não existe evidência de vontade política independentista para negociar seriamente e, muito menos, para autoridades judiciais aceitarem, de arrependimento do tal crime de sedição. Por outro, a invocação do interesse público do indulto pode equivaler paradoxalmente a abrir as portas do poder à direita com um PP reforçado pela impetuosidade de Isabel Ayuso em Madrid.
Estamos perante a mais pura roleta russa. Será que os espanhóis compreendem que o indulto é concedido para tentar, senão resolver o problema, pelo menos conseguir a tal moratória que permita retomar negociações e reforçam o PSOE face a um PODEMOS diminuído? Ou será que, não esquecendo a estupidez muitas vezes reiterada do supremacismo catalão, não estão dispostos a conceder uma outra oportunidade a quem odeia o espanholismo?
Se querem que vos diga, entre esta roleta e a que pode representar um referendo na Catalunha para de uma vez por todas colocar os independentistas em inferioridade tenho dificuldade em perceber qual será a mais arriscada.
Claro que poderíamos imaginar que as forças políticas pró-independência (a Esquerra, o Junts e a não representada no executivo CUP) poderiam compreender o risco da ascensão da direita e abrir caminho elas próprias a uma moratória política. Meu caro não sejas ingénuo. Isso poderia ter alguma razão de ser se todo o independentismo tivesse ideário político, o que tal como o enunciaste anteriormente, não é decididamente o caso.
Mas que lio!
Nota final:
Para uma introdução à questão jurídica do indulto, o Esquerda.net (link aqui) publica um informativo artigo de Daniel Amelang, advogado da Red Jurídica, publicado em Viento Sur e traduzido por Luís Branco (link aqui)
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