Vistas daqui destas longínquas paragens, as grotescas e egocêntricas performances de Donald Trump e seus apaniguados parecem autênticos pesadelos ou manifestações de uma ficção da pior qualidade. Mas se o leitor optar por se beliscar, facilmente se aperceberá de que está perante uma dramática realidade que lhe anuncia a desconstrução da ordem globalizante em que viveu desde sempre e a gestação aparentemente atabalhoada de um outro mundo de contornos altamente incertos e duvidosos como nunca conheceu nos seus dias de vida. A última ação espetacular de Trump aconteceu ontem, dia que qualificou como de libertação para os americanos por ser aquele em que iria anunciar (como anunciou) uma fantástica política de tarifas sobre tudo e todos (embora mais sobre alguns do que sobre outros) que se propõe desencarcerá-los dos efeitos do “roubo” de que têm sido alvo nas décadas passadas (não acreditaria, se não o tivesse visto e ouvido, na animosidade e repulsa com que se dirigiu à União Europeu) e assim conduzi-los a um prometido e redentor enriquecimento (make America weathy again). Ou muito me engano ou isto vai dar borrasca da grossa e só nós, aqui tão bem resguardados pela nossa pequenez e pelo brilhante desempenho da nossa economia, escaparemos a um tal abalo sísmico de elevado grau!
O facto é que o Trump 2.0 que temos pela frente já quase nada tem a ver com a sua versão amadorística dos quatro anos anteriores (2016/2020) em que se entreteve com agendas económicas relativamente inofensivas, se deparou com aflitiva impreparação com a pandemia e agiu convencido de que iria voltar à Casa Branca para novo mandato. A derrota imprevista e que nunca reconheceu, a cena do assalto ao Capitólio que comandou e os casos judiciais que teve de enfrentar não apenas lhe trocaram as voltas como o radicalizaram e estimularam vários cerrar de fileiras na direita radical – os populistas nacionalistas (tipo Stephen Bannon), os tecnolibertários (tipo Elon Musk) e os republicanos mais fervorosos do Congresso –, acompanhados de esforços desigualmente sérios de preparações programáticas e operacionais de formas mais estruturadas e eficientes de influenciar o chefe máximo e de lhe fornecer conteúdos apelativos para um novo MAGA.
Importa sublinhar, todavia, que a racionalidade maior que cercou Trump foi a de um subconjunto de personalidades que se centram na dimensão económica e na situação considerada insustentável da economia americana, designadamente por força dos seus elevadíssimos níveis de dívidas gémeas (pública e externa) e dos efeitos nefastos da sobrevalorização da sua moeda. As crónicas de Gilian Tett no “Financial Times” têm explorada esta vertente de modo bastante consistente, além de também nos ter sido proporcionada a possibilidade de a ouvir em direto num webinar recente. Segundo ela, uma das maiores inspirações reside num economista americano de Columbia que está de há muito sediado na China (Michael Pettis, professor de finanças na “Guanghua School of Management” da Universidade de Pequim e diretor de Estratégia na “Shenyin Wanguo Securities” de Hong-Kong) – Pettis é reconhecido pelo seu conhecimento especializado no mercado financeiro chinês mas é igualmente autor de várias obras relevantes sobre a economia global (como é o caso de “Trade Wars are Class Wars”), sendo aqui de chamar à colação as suas posições sobre a necessidade de taxar as entradas de capital nos EUA como uma forma de corrigir o caráter crónico dos défices comerciais em presença e sobre “anomalia insustentável” associada ao papel monopolista do dólar no comércio internacional. Citando Tett: “Pettis vê as entradas de capital não como ‘apenas’ o corolário inevitável e benéfico do défice comercial dos Estados Unidos, mas como uma maldição debilitante. Isso porque tais entradas aumentam o valor do dólar, fomentam a financeirização excessiva e esvaziam a base industrial dos Estados Unidos, diz ele, o que significa que ‘o capital se tornou o rabo que abana o cão do comércio’, gerando défices. Portanto, Pettis quer freios, via taxação. Há seis anos, a senadora democrata Tammy Baldwin e Josh Hawley, seu contraparte republicano, emitiram um projeto de lei do Congresso, o ‘Competitive Dollar for Jobs and Prosperity Act’, que defendia a imposição das entradas de capital e uma política de dólar fraco por parte da “Federal Reserve”. O projeto parecia moribundo. Mas no mês passado, a ‘American Compass’, um think-tank conservador próximo do vice-presidente JD Vance, declarou que uma imposição sobre entradas de capital poderia permitir arrecadar 2 mil milhões de dólares na próxima década. Então a Casa Branca emitiu uma ordem executiva, ‘America First Investment Policy’, que prometia “rever, ou suspendendo ou encerrando” um tratado de 1984 que, entre outras coisas, removia uma taxa anterior de 30% sobre entradas de capital chinês. Tal não fez manchetes, porque Trump estava ‘inundando a zona’ com outras distrações, nomeadamente sobre tarifas. Mas assustou observadores asiáticos e contribuiu provavelmente para as recentes quedas do mercado americano de ações dos EUA, visto que alguns investidores fugiram preventivamente.”
O certo é que, como Tett salienta, as ideias de Pettis parecem ser uma fonte influenciadora de alguns conselheiros próximos de Trump, como o atual secretário do Tesouro Scott Bessent (tendo por background, ser partner do “Foros Fund Management” e fundador da casa de investimentos “Key Square Group”), Stephen Miran, o atual presidente do ‘Council of Economic Advisers’ (tendo por background ser o estratega chefe na “Hudson Bay Capital Management” e cofundador da gestora de ativos “Amberwave Partners”) – vejam-se estes nas fotos abaixo –, e o próprio Vance. Ao que acrescenta: “Este trio parece estar focado em redefinir o comércio e as finanças globais, através de um putativo Acordo Mar-a-Lago, embora com ambições de maior escala do que o Acordo Plaza de 1985. Este Este último enfraqueceu ‘meramente’ o dólar através de uma intervenção cambial conjunta, mas a visão de Miran de um Acordo Mar-a-Lago inclui também uma possível reestruturação da dívida americana, o que forçaria alguns detentores de títulos do Tesouro a uma troca por títulos perpétuos.” E aqui está o fim último do processo encarado por aqueles ideólogos tecnocratas que Adam Tooze em tempos designou por expoentes de um “MAGA para pessoas pensantes”.
Termino, enfatizando que o alcance do poder destes junto de Trump é duvidoso, particularmente se tivermos em conta a ignorância, a irracionalidade, o narcisismo e o caráter belicoso do dito, assim mais propenso a seguir as mais óbvias e básicas consignes dos radicais de extrema-direita e de gente tão fascinante, e indisfarçavelmente interesseira, quanto os multimilionários dos negócios. E é talvez por isso que os tempos mais próximos nos mostrarão choques e contrachoques no interior destas várias cliques e na capacidade delas para “fazerem a cabeça” do alegado grande timoneiro; com a certeza de que o que os move é uma missão de poder que subverta, com as investidas mais chocantes que conseguirem montar, o status quo liberal e a ordem que lhe subjaz.
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