(Há dias, quando aguardava o início de uma reunião na Fundação Calouste Gulbenkian, vi o ex-Ministro da Ciência e Tecnologia e do Ensino Superior, Manuel Heitor, com o seu capacete de motard ou de simples ciclista na bilheteira, imagino que adquirindo bilhetes para um qualquer espetáculo. Hoje, li com atenção a entrevista ao Público de outra ex-Ministra do mesmo ramo, Elvira Fortunato, também de regresso ao seu laboratório de sempre, imagino não com os mesmos traços de informalidade do seu antecessor na pasta. São de facto duas personalidades bem distintas que regressam às suas vidas universitárias e de investigação depois de uma passagem pela decisão política. Este é um tema que me interessa vivamente e que se desdobra em dois – os termos em que o exercício da própria função política é concretizado e as condições em que o regresso à vida normal é assumido, o que significa que não me interessa de todo o regresso de ex-Ministros à política, após a conclusão do seu serviço público. A experiência de incursão pela decisão política de investigadores e universitários proeminentes não é propriamente um mar azul de êxitos de transformação conseguida. Não direi que esse salto se traduz apenas numa ilusão de resultados de transformação, mas face aos resultados alcançados não estou seguro de que uma análise custo-benefício conduzida apenas do ponto de vista do interesse público proporcione resultados claramente positivos. Imagino que há variáveis a ter em conta, designadamente a consistência das equipas de investigação a partir das quais se concretiza a saída, o que parece ser o caso de Elvira Fortunato, para compreendermos a comparação entre o que se perde e o que se ganha com esta passagem pelo poder de gente proeminente na investigação.)
Quanto ao exercício das funções políticas, tenho para mim que nem sempre os protagonistas conseguem manter o equilíbrio entre uma certa informalidade na condução das suas vidas de político (a) e a necessidade de manter uma certa gravitas. Quando, por exemplo, na ânsia de realizar uma política de proximidade, Montenegro decidiu, aconselhado ou por decisão própria, não interessa, acompanhar os socorristas do acidente no Douro no próprio barco de salvamento, acho que ele perturbou esse equilíbrio, além, claro está, de ter introduzido uma perturbação desnecessária na operação.
Mas, regra geral, gosto muito de ver os políticos, fora do exercício oficial das suas funções, a assistir a um espetáculo, ou simplesmente a dar uma passeata por uma calçada qualquer. Estou fora do tempo, mas apreciava muito o estilo do Olof Palm na sua informalidade e não era por isso que perdia a sua enorme gravitas. Em sentido contrário, lembro-me do espalhafato do Dr. Fernando Gomes nas suas viagens na TAP ou Portugália, espalhafato que transportou para a sua atividade na SAD do Futebol Clube do Porto, pretensamente branqueando as tropelias de Pinto da Costa em fim de ciclo. Aliás, esse espalhafato valeu-lhe algumas deliciosas críticas na corte de Lisboa, diria eu bem merecidas embora produzidas por centralistas empedernidos da linha. Lembro-me ainda em registo próximo do modelo Olaf Palm do modo como o saudoso Jorge Sampaio vivia a sua experiência política e os momentos de lazer que ensaiava (lembro-me da sua passagem regular pelos Dias da Música no CCB).
Quanto à translação de cientistas e investigadores proeminentes para o campo da decisão política, e atenção não estou a falar de trânsfugas que já não viam a investigação há longo tempo ou que praticamente já não davam aulas, porque em relação a eles já não vale a pena perder tempo para realizar análises custo-benefício do ponto de vista do interesse público, é uma questão que vale a pena discutir, senão pelo menos na perspetiva da motivação que justificou a decisão.
Imagino que o que leva parte dessa gente a aceitar o salto de funções é a avaliação de que poderão infletir coisas e dar um outro rumo a matérias ou a constrangimentos que experimentaram no exercício anterior das suas práticas. Creio que muitas vezes um bom exercício de autoavaliação sobre as razões para esses constrangimentos ou limitações ditaria que a probabilidade desses fatores serem resistentes e não dependerem apenas de vontade política tenderia a dissipar a ilusão de que meter as mãos na massa será algo de ilusório.
A entrevista da Professora Elvira Fortunato ao Público é muito esclarecedora a vários níveis.
Em primeiro lugar, porque o entusiasmo da cientista pela investigação que produzia está intacto e diria mesmo que reforçado. A sua notoriedade na temática dos transístores em papel granjeou-lhe uma reputação internacional indiscutível e pela entrevista percebe-se que está de novo “on the Track”.
Depois, porque a sua perspetiva do que se passa em matéria de investigação científica e tecnológica na China vale a pena ser lida com muita atenção e por isso tenho em vários posts alertado para que o ocidente não está a ver bem o cu de boi em que se vai meter se hostilizar totalmente a China nesse campo. Quando uma cientista como Elvira Fortunato declara na entrevista que veio da China “esmagada”, isso quer dizer muita coisa.
A um terceiro nível, é muito esclarecedor o testemunho da ex-Ministra sobre a burocracia do Ministério e do ambiente geral em que a ciência e tecnologia se inscrevem. Aliás, a burocracia é apontada pela ex-Ministra como a grande responsável da sua ação ter ficado eventualmente abaixo das expectativas que ela própria criou quando aceitou o desafio que lhe foi colocado.
Aqui está um belo exemplo de uma má avaliação de contexto. De facto, todos os cientistas e investigadores que tenho entrevistado em alguns trabalhos profissionais apontam a burocracia como o grande mal do sistema em que operam.
Por fim, um pormenor delicioso da entrevista, sobretudo proveniente de alguém do sistema científico e tecnológico localizado na aglomeração da capital. Referindo-se à sua experiência como governante, Elvira Fortunato afirmou, em termos esclarecedores: “Aprendi muita coisa. E houve uma coisa de que gostei muito e disse isso várias vezes ao primeiro-ministro: não conhecia o meu país. Temos um país riquíssimo, mas vivemos um pouco em bolhas. Nunca tinha tido a oportunidade de visitar tantos institutos politécnicos, tantas universidades como visitei nestes dois anos. E temos coisas espetaculares a nível nacional. E também as empresas. Temos empresas fabulosas.”
Pois, isto dos mapas mentais do país é mesmo importante. As bolhas também.