quinta-feira, 17 de outubro de 2024

GREED


Há exceções, mas as histórias de vida ligadas a todos aqueles que se deixaram comandar por uma atração descontrolada pela ganância (greed) tendem as mais das vezes a terminar mal, quando não em drama ou tragédia. Penso especificamente no caso de Ricardo Salgado – o tal “dono disto tudo” –, chocantemente arrastado para o tribunal pela mão da mulher, visivelmente desligado de uma qualquer compreensão relativamente ao que o rodeava. Uma cena altamente impressionante e até incomodativa, que dá muito que pensar!

Não quero aqui mais do que deixar este registo, evitando desfiar a sucessão de outros casos mediáticos que nos marcaram: Oliveira e Costa e o BPN, João Rendeiro e o BPP, Armando Vara e José Penedos, já para não falar do estranho caso de José Sócrates, entre vários outros mencionáveis (Manuel Pinho, Dias Loureiro, etc.). De notar, todavia, que a grande separação talvez esteja entre a força da doença que a dada altura se impõe e a exibição de um abandalhamento pessoal que quase prescinde de mínimos de dignidade; o que se repercute em situações que vão do sofrimento desesperado (conducente, no limite, ao suicídio) à falta de vergonha. Neste plano, chegam-nos de Espanha dois tipos de personagens que cabem genericamente nesta última categoria: José Luis Zapatero, o ex-presidente de governo socialista que agora se dedica a atividades de serviço ao ditador venezuelano Nicolás Maduro, Deus saberá por obra e graça de quê, e Raúl Morodo, o ex-embaixador estimável que acabou por revelar ser afinal um simples “comissionista de petróleo” disfarçado de diplomata.

 

Mesmo não desconhecendo que cada circunstância tem as suas razões, às vezes até ponderosas (quase diria justificáveis), não posso deixar de sublinhar como moral essencial destes processos o facto de o crime raramente compensar, seja pela vida completamente desfocada e desfeita que passa a ser imposta ao acusado seja pela censura social e pública que lhe determina de um modo intolerável para gente normal e com algum tipo de escrúpulos. Digo eu...


(Ricardo Martínez, http://www.elmundo.es)

terça-feira, 15 de outubro de 2024

NEM AMA NEM DESAMA

(Os nossos media, jornais, canais de televisão e canais de edição eletrónica são incorrigíveis na falta de sentido e de senso quanto a prioridades noticiosas. Qualquer altercação mais brejeira e do tipo “feios, porcos e maus” merece honras de cobertura prioritária e problemas sérios que afetam a vida diária do país são remetidos para o mais completo esquecimento. Recuperando, por exemplo, ecos da Iniciativa CpC – Cidadãos pela Cibersegurança, sabe-se que um ataque de pirataria de software, Ransonware na perspetiva deste site, produziu falhas críticas em plataformas de autenticação e serviços essenciais do Estado, atingindo o core da AMA. Ou seja, a rede da Agência da Modernização Administrativa sofreu um ataque informático, tornando o acesso a diversas plataformas e serviços digitais, com impacto óbvio na atividade do setor público e privado. Por exemplo, uma função hoje tão vuilgarizada como a emissão eletrónica de faturação não é possível por estes dias ser realizada, como acontece com a situação mais próxima que conheço, a da Quaternaire Portugal em que não podemos emitir faturas a clientes que tal nos solicitaram. Do mesmo modo, todo o serviço de certificação de assinaturas digitais está bloqueado, o que por exemplo para a atividade fundamental de apresentação de propostas nas diferentes plataformas de contratação público é um sério constrangimento com sérias penalizações para as partes envolvidas. A recuperação do ataque já se desenvolve há vários dias e ainda hoje o assunto não está resolvido.)

Hesito sinceramente em achar qual é a situação mais grave, se o silêncio do Governo, se a não cobertura dos media quanto a este problema. Se o silêncio do Governo se insere numa estratégia já conhecida de ignorar o que lhe é incómodo, e todas as energias estarão certamente a ser aplicadas em procurar deslindar as desavenças com o inefável e não confiável Ventura (alguém ainda pensa o contrário), o alheamento dos media ou resulta de uma compra de silêncio interessada ou de um desajustamento profundo sobre o que devem ser as agendas mediáticas prioritárias. Dou o benefício da dúvida de que possa ser esta última justificação a imperar, mas muito sinceramente não me conforma nada mais do que se fosse em alternativa a primeira justificação a prevalecer.

O país sofre um ataque informático no coração da modernização administrativa, a AMA, e ninguém praticamente dá a devida importância ao caso. É de bradar aos céus. Os media estão de facto reféns do populismo mais primário e depois queixam-se, coitadinhos, que não são compreendidos. Que Calimeros tão estúpidos!

Há já alguns anos, uma personalidade universitária e da inovação em geral, a quem prestava imensa atenção, sobretudo antes do INESC se ter fraturado e o INESC TEC do Porto ter avançado com carta de alforria para a independência, o Professor José Tribolet do Instituto Superior Técnico e fundador do INESC original, clamava que os riscos de vulnerabilidade da cibersegurança nacional eram tremendos e que os menos avisados ficariam de cara à banda se tomassem conhecimento das fragilidades dos sistemas de segurança existentes. Entretanto, desde essa data em que Tribolet se pronunciava, a multiplicação de ataques informáticos intensificou-se a um nível elevado e imaginaria eu que tal agravamento de ameaças tivesse tudo consequências em investimentos de proteção e segurança. Não faço a mínima ideia se o ataque que sofreu a AMA era ou não evitável e se existiam ou não falhas de segurança.

Tudo isto perante o silêncio e o alheamento dos que deveriam aproveitar estas situações para fazer passar mensagens do investimento necessário na cibersegurança.

As agendas mediáticas não têm pés nem cabeça. São uma bosta de indigência.


 

Nota complementar:

Não tive ainda tempo de dedicar o tempo devido ao Nobel de Economia deste ano, atribuído a três economistas do tempo longo e que têm ousado responder à velha questão da economia, de saber porque é que as nações prosperam em termos diferenciados. É sempre agradável quando o Nobel reconhece as “nossas bibliografias” de estimação, mesmo que a última obra de dois dos premiados, Daron Acemoglu e Simon Johnson, Power and Progress – our thousand-year struggle over technologyh and prosperity suscite algumas reservas de rigor e evidência de fundamentação, como aliás Noah Smith o anotou com perspicácia. Mas não é esse o ponto para hoje, mas antes o de simplesmente me regozijar com a lucidez intermitente do júri do Nobel.

 

POBRE ODISSEIA LUSITANA!

A proposta de Orçamento de Estado (OE) para 2025 está transformada numa verdadeira odisseia lusitana! Daí que me pareça desde logo justificável uma breve olhadela sobre os títulos de capa dos nossos jornais no day after à sua apresentação por Joaquim Miranda Sarmento – afinal o “Estado saca” ou o Governo “reduz carga fiscal”? E até que ponto “condutores vão pagar descontos do IRS Jovem”? E o que se quer é “pôr o país a crescer” ou gerir “um Orçamento no fio da navalha”? E, por fim, será mesmo que “não há uma décima de margem para negociar na especialidade” ou que tudo pode acontecer num quadro em que tanto está “em suspenso”? Isto por um lado.

 

Acresce, por outro lado, o PS e o seu líder, Pedro Nuno Santos (PNS). As dificuldades são aqui tremendas, embora mais do que compreensíveis. O problema tem várias cambiantes, mas todas desembocam no grande dilema de PNS: deve o seu partido de centro-esquerda consagrar em definitivo uma estratégia de afrontamento entre um bloco à esquerda que pretenderia dominar e um bloco à direita que teria o PSD por principal força? E como lidar neste quadro com os tantos “moderados” que o rodeiam (entre “costistas”, instalados no politicamente correto e “pensadores livres” mas não o suficiente para prescindirem de uma confortável ocupação de lugares em nome do partido), aceitar sem mais o seu conformismo e/ou oportunismo ou exigir-lhes a disciplina que ele próprio não adotou em tempos passados? E como ligar estas dúvidas à análise concreta da situação concreta, isto é, à hesitação fundamental entre a hipótese de uma derrota patriótica através de um voto abstencionista no OE ou, ao invés, de um chumbo do mesmo e correspondente risco de novas eleições e provável perda adicional de peso eleitoral? 

(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt

Uma única coisa é certa, num contexto recentemente agravado pelo taticismo primário com que Montenegro pensou ser capaz de gerir as diabruras do inconcebível Ventura e garantir a sua manutenção no poder à custa de um misto de conversa fofa para os ouvidos de 50 parlamentares populistas: estamos perante um verdadeiro cu-de-boi, sendo apenas positivo que Marcelo esteja desaparecido em combate (mesmo que por mera consciencialização da sua manifesta impotência). Surprisesurprise, embora correspondendo a algo aparentemente implausível à data de hoje, seria que tudo isto acabasse com o “Chega” a votar favoravelmente o OE sem qualquer negociação e em nome de um estadismo responsável que cada um dos partidos centrais não tenha sido capaz de concretizar – e esta, hein?

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

O QUE MUDAR NA INOVAÇÃO EUROPEIA? AGHION E TIROLE DIXIT

 

(Já não é de agora que o desempenho europeu em matéria de inovação, mais propriamente de I&D e Inovação, a que alguns chamam ID+I, é zurzido por análises mais ou menos impiedosas. É claro que, em alguns casos, oculta nessa análise está a acusação de que a União Europeia regula demais e investe de menos, que frequentemente obedece a preocupações não quanto ao estado da inovação, mas antes a de quem gostaria de ver os mercados da tecnologia menos regulados. E não é por acaso que deparamos frequentemente com coincidências do tipo: regista-se a inexistência na Europa de grandes grupos e conglomerados campeões da inovação, os conhecidos do costume, e ao mesmo tempo se noticiam resultados de processos judiciais regulatórios contra esses mesmos grupos, com a mediatização de multas gigantescas. Mas por vezes há vozes mais grossas e melhor intencionadas a clamar sobre essa insuficiência de desempenho. É esse o caso de Philippe Aghion e Jean Tirole, das vozes mais autorizadas sobre a matéria, que publicam, com Mathias Dewatripon, cujo nome desconhecia em absoluto, no Social Europe uma espécie de sequela lógica do Relatório Draghi sobre a competitividade europeia, já aqui comentado em post anterior. O prestígio académico e a vastíssima audiência que os nomes de Aghion e Tirole suscitam no universo da economia da inovação tornam obrigatória a referência à sua reflexão, cuja relevância para a discussão do futuro europeu transcende em muito a publicação e notoriedade de um relatório como aquele com que Draghi e a sua equipa pretenderam alertar as hostes europeias.)

A comparação com a dinâmica de ID+I nos EUA é confrangedora para a Europa, com o agravo de sabermos que, nestas coisas da inovação, a dinâmica de rendimentos crescentes e do desenvolvimento desigual que lhe anda associado faz temer o pior em termos de evolução natural das coisas. De facto, sabemos que o potencial de investigação americano não é apenas medido pelos indicadores habituais de input (recursos humanos alocados a atividades de I&D) e de output (produção científica de ranking elevado e registo de patentes), onde a superioridade face à Europa é evidente. A superioridade também se mede pelo modelo de organização e institucional que enquadra a inovação, com as universidades de topo mais claramente interligadas com o tecido empresarial, não ignorando o fabuloso potencial de I&D “in house” que os principais conglomerados empresariais apresentam. A lógica dos rendimentos crescentes que enquadra as atividades de inovação faz com que os gaps anteriormente referidos se repercutam continuamente em desempenhos diferenciados, a não ser que haja um esforço enorme para reduzir esses gaps e devolver à inovação europeia.

Apoiando-se no exemplo bem-sucedido das vacinas anti-COVID em que duas das empresas envolvidas eram pequenas organizações (Moderna, americana e BIONTech, europeia e uma só já líder na investigação de vacinas antes da pandemia, consórcio SONAFI/GSK), Aghion, Dewatripont e Tirole escrevem: “Este exemplo fornece um modelo para uma política industrial europeia bem-sucedida. O modelo americano delega o processo de tomada de decisão científica nos cientistas de topo, não finge saber que tecnologias irão funcionar e não garante nenhuma vantagem aos incumbentes. Estes elementos constituem uma solução promissora para algumas das mais graves deficiências do ecossistema de inovação europeu que o antigo presidente do Banco central Europeu sublinhou no seu mais recente relatório sobre a competitividade da UE”.

Tenho dúvidas de que todos estejamos efetivamente conscientes da enorme revolução que esta proposta de mudanças significa, seja em termos de organização da ciência e tecnologia na Europa, seja em termos de alteração da política científica, seja ainda do ponto de vista do abrir dos cordões à bolsa do investimento financiador (Estado e capital de risco). Como é óbvio, os três economistas não deixam de clamar também sobre a transformação dos mecanismos de regulação, acenando com a sua agilização. Mas o esforço de habilidade e de criatividade que será necessário para agilizar esses processos e manter os grandes conglomerados da inovação americana em sentido, não permitindo que a sua influência acabe por se abater sobre o potencial científico europeu, serão obviamente recursos muito escassos na inteligência política europeia e nesta nova Comissão de Von der Leyen por maioria de razão. Grandes conglomerados europeus não se constroem facilmente de raiz, pelo que o exemplo das vacinas COVID deverá continuar a inspirar a abordagem. O problema crítico parece estar na capacidade de identificar os small tech de grande potencial e financiar com cautela o seu desenvolvimento para não serem adquiridos por um tubarão qualquer na primeira esquina. O equilíbrio entre dar aos emergentes boas condições de crescimento e não permitir que a vantagens dos incumbentes se transforme em poder de mercado e de inércia não é fácil para qualquer política industrial, muito menos as que estão rotinadas numa lógica de continuidade e com pouca propensão para se articular com o mercado.

 

OS VEÍCULOS ELÉTRICOS CHINESES E AS NAVEGAÇÕES EUROPEIAS

 

O racional económico surge claramente nos gráficos acima, designadamente no segundo que é relativo às quotas de mercado europeu detidas pelas principais marcas em presença e evidencia indiscutivelmente o crescente peso detido pelas marcas chinesas (que em cinco anos passaram da quase ausência a mais de 10%). Mas o que aqui me parece relevar é menos isso do que três outras questões conexas: (i) a decisão tomada pelas autoridades europeias no sentido de uma imposição de novas tarifas alfandegárias até 35,3% (a somar aos 10% já em vigor) aos produtores chineses de veículos elétricos; (ii) o facto de tal decisão ter resultado de uma votação muito dividida entre os Estados-membros e maioritariamente abstencionista (as aprovações vieram da Alemanha, cujo poderoso setor automóvel exerceu uma forte pressão contra os direitos, e dos seus mais marcantes apêndices na matéria, Eslováquia, Hungria e Eslovénia), assim determinando que a Comissão (e Ursula von der Leyen, em particular) tenha conseguido fazer vingar a sua proposta e sinalizado mais uma manifestação da tendência em curso no sentido de um poder absoluto da presidente, agora no contexto de uma defesa dos interesses alemães e de um endurecimento da estratégia da União relativamente à China; (iii) uma retaliação chinesa que já foi anunciada e dará certamente lugar a uma escalada de guerra comercial que só duvidosamente favorecerá os interesses europeus. Mas não será esta mais uma demonstração visível de que essencialmente não há interesses europeus (antes apenas nacionais) e, portanto, de que a velha política comercial externa dita única não passa de mais um equívoco que disfarça mal a falta de unidade de um bloco que navega ao sabor das conjunturas políticas e pessoais que se lhe vão impondo?