quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

CASAS CARAS E SALÁRIOS BAIXOS

(Elaboração própria a partir de https://ec.europa.eu/eurostat) 

Na sequência de uma interessante conversa com um jovem analista de mercados, vi-me desafiado a procurar avaliar a medida em que o recente problema da explosão dos preços do imobiliário (gráfico acima) revela ou não especificidades sociais marcantes quanto ao caso português no contexto europeu (primeiro gráfico abaixo) e no contexto dos países mais comparáveis com a nossa realidade de ex-PIIGS e/ou dependência turística (segundo gráfico abaixo).

 

Usei para tal um indicador que relaciona a evolução do preço das casas que passaram pelo mercado ao longo dos últimos vinte anos com a evolução do nível de rendimento disponível das famílias durante o mesmo período, tornando-se cristalinamente visível que o referido indicador se posicionou para Portugal bem abaixo da média europeia entre 2005 e 2017/18 para seguidamente registar o forte crescimento (atingindo em 2024 um valor de cerca de 127 contra uma constância em torno de 100, respetivamente) que subjaz à crise habitacional que passou a ser a maior queixa vivencial dos cidadãos portugueses. Confirmando esta indicação, vai no mesmo sentido o gráfico que apresenta o comportamento do referido indicador em seis países tidos por mais próximos das caraterísticas do nosso, todos eles em pior situação no primeiro terço ou na primeira metade do período em causa e todos eles em melhor situação a partir de 2016 e de modo a terminarem 2024 abaixo do nível inicial (nível idêntico para a Grécia) em contraste com os 27% acima observados para Portugal.

 

Assim sendo, e independentemente de a questão da habitação estar generalizada pela Europa fora e em múltiplas áreas do mundo desenvolvido, a conclusão mais objetiva que resulta tende a ser a de que o problema nacional apresenta contornos superiores de gravidade. O assunto merece equacionação séria, tanto mais quanto é simultaneamente um enorme flagelo para os jovens e uma constante fonte alimentadora da ganância seguidista da maioria dos nossos ricos e remediados. 

(Elaboração própria a partir de https://ec.europa.eu/eurostat)

(Elaboração própria a partir de https://ec.europa.eu/eurostat)

A QUEDA ESTRONDOSA DE LARRY SUMMERS

 

(Os ficheiros EPSTEIN com os seus emails reveladores das facetas mais sórdidas do comportamento humano vão fazendo estragos nas personalidades envolvidas, com a exceção de Trump que vai passando pelos pingos da chuva, tentando apagar imagens comprometedoras do passado. Por estes dias, uma personalidade expressiva e poderosa da comunidade americana de economistas, profissional e académica, o tão frequentemente aqui invocado Lawrence (Larry) Summers por alguns contributos nucleares designadamente para compreender o pós-Grande Depressão de 2007-2008, foi inapelavelmente marcado por desvios de comportamento no seu passado em Harvard e revelados pela correspondência com Epstein. A mais importante associação de economistas do mundo, a American Economic Association, decidiu banir da Associação Summers, aceitando a sua resignação voluntária, invocando o Código de Conduta Profissional que rege a Associação. Esta decisão impede Summers para o futuro de participar em todas as atividades, conferências, publicações e recensão de artigos e, muito provavelmente, irá acelerar repercussões na ligação que Summers tem com Harvard, presentemente a não dar aulas, mas mantendo o estatuto de Professor naquela Universidade. A correspondência com Epstein identifica um pedido de conselho sobre a melhor maneira de levar para a cama uma estudante, algo incompatível com o estatuto de professor e mentor. É uma queda estrondosa de uma personalidade que, não obstante a sua valia académica e científica, sempre foi conhecida pelas suas relações não totalmente claras com o sistema financeiro americano, que sempre suscitaram da ala Democrata mais à esquerda as mais profundas reservas, mesmo depois de ter sido Secretário de Estado do Tesouro na presidência de Bill Clinton e fortemente agravadas quando Summers criticou como sendo excessivo o programa de estímulos económicos da administração Biden, invocando o seu potencial inflacionário.)

Assim cai um economista, não tanto pelas suas ideias e investigação, mas por esse mistério insondável que é o comportamento humano e a ferocidade das suas derivas sexuais.

Uma coisa sabemos, Summers, sobrinho de dois Nobel de Economia, Paul Samuelson e Kenneth Arrow, não está à altura intelectual, cívica e humana dos seus dois tios.

Que desperdício!

 

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

DE POLÍCIA A LADRÃO

(Idígoras y Pachi, http://www.elmundo.es) 

A expressão “polícia do mundo”, com que em tempos não muito longínquos alguma esquerda internacional brindava acusatoriamente o chamado imperialismo americano, volta a primeiro plano na atuação desta Administração Trump. Com efeito, e apesar de cada vez mais visivelmente dividida entre um Donald voluntarioso e inconsequente e outros agentes – dos que ainda preservam mínimos de bom senso e/ou consciência dos limites aos que estão mais perigosamente ao comando de uma estratégia nacionalista de destruição da ordem internacional –, a verdade é que as ingerências dos EUA aumentam de modo intolerável e largamente ao arrepio das regras e das instituições que supostamente as deveriam evitar ou enquadrar. A política das tarifas – ela própria incompreensível e plena de incoerências, algumas completamente absurdas em termos de uma qualquer lógica que lhe pudesse estar subjacente – correspondeu a um mero ponto de partida, economicamente determinado, de uma deriva que foi sendo alargada a variados domínios de intervenção (geo)política ao sabor de sempre presentes dinâmicas impositivas (dominantemente ameaçadoras e unilaterais, apesar de frequentemente afirmadas como negociais, e discriminatórias em função de (des)amores conjunturais). Da atração pelas terras raras da Ucrânia à peregrina ideia de construção de condomínios de luxo em Gaza, dos ataques mortais a supostos carteis de droga na América Latina às cobiças tornadas patentes em visitas asiáticas ou africanas, Trump e seus muchachos não se têm poupado a esforços para fazer vingar as suas leis e ir deixando as suas marcas. O venezuelano Maduro parece estar agora na mira do aspirante a “poderoso chefão” mundial e, mesmo não sendo o dito merecedor de qualquer simpatia pela forma como indesculpavelmente contribuiu para transformar o seu país numa ditadura grotesca e para conduzir o seu povo a um grau de miséria impensável, sempre haverá que denunciar tudo quanto os EUA venham a patrocinar e forçar no interior de uma nação independente e soberana (com Maria Corina Machado à espreita). Sinais indesmentíveis de um “polícia do mundo” a transfigurar-se assustadoramente num “ladrão do mundo”...

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

QUE PAZ NA UCRÂNIA?

(Emilio Giannelli, http://www.corriere.it)


(Ben Jennings, https://www.theguardian.com) 

2025 aproxima-se do seu final, mas dele ainda temo serem de esperar algumas loucuras mais sob a descabelada batuta dos atuais senhores do mundo. Hoje volto à sacrificada e corajosa Ucrânia onde Zelenski se debate com decisões determinantes e literalmente impossíveis por equivalentes na desgraça perante um louco sem princípios e de ego volúvel, ademais rendido aos encantos – fora o resto que certamente lhe chegará por vias mais diretas! – de um outro louco que vive prisioneiro de uma fixação imperialista de que nunca irá abdicar senão quando alguma força maior o puser na ordem. Um quadro tremendo em que a União Europeia e a vertente europeia da NATO evidenciam a sua impotência, pese embora se deva reconhecer que lograram cumprir os mínimos na circunstância em que tiveram de mostrar cara feia aos acordos que aqueles dois artistas se preparavam para impor sem deixar espaço a quaisquer zebuds por parte dos ucranianos. Mas, como disse atrás, não só não existe uma escolha condigna no horizonte como tudo indica que as chamadas negociações em curso na Florida sejam pouco mais do que uma mera oferta de amendoins do trio de marionetas americanas (Marco Rubio, Steve Witkoff e Jared Kushner) ao indigitado, embaraçado e subserviente responsável ucraniano (Rustem Umerov, que substituiu em emergência o demitido ex-chefe de gabinete de Zelenski Andriy Yermak) para aquelas “conversas produtivas” sempre dependentes da chancela conjugada de Trump e Putin.


(Nicolas Vadot, http://www.levif.be)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

RESISTÊNCIA DE OUTROS TEMPOS

 

(Já por repetidas vezes insisti neste blogue na relevância da resistência polaca durante os tempos da repressão soviética, alicerçada sobretudo em torno do movimento sindical do SOLIDARIEDADE. Existem vários elementos de interesse e valia de análise histórica em torno desse movimento, um dos quais é seguramente o da diversidade ideológica e de pensamento que foi possível fazer convergir numa luta impiedosa pela liberdade. É conhecida por exemplo a formação religiosa de Lech Walesa. Mas uma das perspetivas de análise mais sugestivas que aquela resistência suscitava era a da escolha permanente das margens de transformação possível, e obviamente também de compromisso, que era permanentemente necessário realizar para lidar com a repressão implacável da presença soviética. Se a personalidade de Walesa era a que suscitou maior notoriedade, o movimento era conhecido pela consistência de pensamento, indissociável de reflexão e produção teóricas, não de grandes manuais de ciência política, mas de uma prática reflexiva constante e fundamentada, cuja natureza e alcance reivindico por exemplo para aplicação noutras áreas, das quais destaco o planeamento. Por exemplo, menos afastado dos holofotes mediáticos, o ainda vivo, creio eu, Adam Michnik, diretor do  Gazeta Wyborcza, historiador, filósofo e ensaísta sempre representou um dos pilares da tal consistência de pensamento do Solidariedade. Já a ele me referi em crónicas passadas (por exemplo aqui). Um obituário do New York Times internacional de fim de semana, cuja leitura faz parte das minhas rotinas de sábado ou domingo na praça de Caminha, permite-me aqui invocar mais uma das personalidades, menos mediáticas, que muito contribuiu para a ascensão daquele movimento que venceu as célebres eleições de 1989 depois de uma longa luta cm as autoridades soviéticas.)

A personalidade que hoje invoco assumia funções hoje incompreensíveis e até obsoletas para as gerações mais jovens com impulso para a participação política. Miroslaw Chojecki era um dissidente polaco residente em Paris (tendo passado por Nova Iorque) que se notabilizou em plena preparação das eleições de 1989 pelo envio de cerca de 50 aparelhos de Fax para a Polónia para ajudar à afirmação do voto dissidente no Solidariedade. Esse envio de material para a Polónia aconteceu depois de 15 anos ininterruptos de dissidência interna e depois de exílio em Paris, a ponto de ser considerado como o editor do movimento, com uma intensa atividade em torno de máquinas de impressão para ajudar à disseminação do pensamento político do movimento. Em 1977, Chojecki criou uma editora independente, a NOWa, que haveria de se destacar na disseminação da resistência. Outros tempos, claro. Na sua qualidade de químico imaginativo (licenciatura na Universidade de Varsóvia), o editor chegou a criar a sua própria tinta de impressão, intensificando o poder editorial do movimento, em tempos em que a Internet era uma miragem e nos quais a capacidade, rapidez e mobilidade (para escapar à repressão) de impressão era o poder de fogo da dissidência. Essa atividade teve especial importância nos tempos das célebres greves de Gdansk de 1980 que haveriam de conduzir as autoridades polacas ao reconhecimento do movimento criado em 1976.

A notícia da morte de Miroslaw Chojecki no passado dia 10 de outubro foi publicamente comunicada por uma Associação para a Liberdade de Expressão, da qual Chojecki era Presidente Honorário, já sem a necessidade da sua inventiva de impressão para alargar a sua difusão.

Um exemplo de resistência de outros tempos, que poderia ser replicada com exemplos da resistência portuguesa, materiais e experiências que deveríamos ter sempre presentes, que não seja apenas pela necessidade de barrar o caminho às execráveis tentativas de reescrita da história que as pífias comemorações do 25 de novembro quiseram impor à sociedade portuguesa.

Bom feriado, com impulsos nacionalistas moderados.

 

domingo, 30 de novembro de 2025

O ABISMO DO SNS

(O fim do ano aproxima-se e é tempo do SNS se confrontar de novo com a organização da formação especializada que o internato dos jovens médicos deverá assegurar. É um momento de grande relevância, pois é ele que nos traz evidência sobre o modo como a carreira no SNS está ou não a interessar os médicos formados nas diferentes Faculdades de Medicina. A procura social pelas diferentes especialidades revela-se é óbvio também noutras circunstâncias que, teoricamente, deveria começar a manifestar-se na formação inicial. A procura manifestada relativamente às diferentes vagas criadas transporta consigo duas informações essenciais. Primeiro, do ponto de vista global e absoluto tende a revelar o interesse dos jovens médicos pela carreira no SNS. Segundo, o modo como as diferentes vagas de especialidades são preenchidas fornece-nos informação decisiva sobre o tipo de medicina que se quer praticar. A Ordem dos Médicos emitiu por estes dias um comentário de elevada preocupação sobre a procura que se manifestou para as formações especializadas que se iniciam nos primeiros dias de janeiro de 2026. Segundo esse comentário, das 2.331 vagas abertas, ficaram por preencher cerca de 500, cabendo a fava da baixa procura à Medicina Geral e Familiar, com 229 lugares por preencher e a Medicina Interna com 98 lugares vazios. Esta insuficiência de procura para estas duas especialidades é de certo modo recorrente e revela bem o pensamento e vontade dos jovens médicos. No caso da Medicina Geral e Familiar basta ter em conta o número de portugueses sem médico de família para compreender o dramatismo da situação. No que respeita à Medicina Interna, especialidade que muita gente considera a verdadeira medicina, já há muito tempo é considerada pelos jovens médicos demasiado exigente e trabalhosa e seguramente com menos perspetivas de remuneração atrativa se for vontade dos médicos não manter a exclusividade no setor público.)

Parece não haver dúvida de que estamos perante formações especializadas que correspondem a necessidades estratégicas de um SNS que seja organizado a partir da rede de cuidados primários e valorize a perspetiva integrada de olhar para a doença. Ora, não sendo a primeira vez que a procura dos jovens médicos se manifesta neste sentido, o sistema continua a acreditar que basta manipular a variável do número de vagas abertas para atrair os interessados por essas especialidades a partir da formação básica que recebem nas Faculdades de Medicina.

Primeiro, não existe evidência segura de que os diferentes cursos de Medicina organizem os seus conteúdos e práticas médicas de suporte a pensar na resolução do problema atrás mencionado. Há sempre obviamente um Professor que pela sua personalidade nos estimula a uma certa especialidade, mas isso não corresponde a qualquer organização deliberada para influenciar a formação especializada que se pretende atrair.

O modelo continua a ser o da livre escolha, não oferecendo qualquer antídoto para contrariar a declínio da procura social pelas referidas especialidades. Pelo que vou ouvindo e lendo a formação do curso de medicina continua a ser ministrada como se a repartição pelas vagas disponíveis fosse uma distribuição neutra, apenas dependente do número de vagas abertas. Isto parece-me ser uma indiferença trágica e incapaz de modelar a procura social.

Depois, uma de duas. Ou tais especialidades não são consideradas prioritárias (hipótese algo esdrúxula) ou se são entendidas como prioritárias então não se compreende como que é a organização do SNS não estabelece incentivos para captar essa atração desejável.

Podem dizer-me que a Medicina Geral e Familiar e a Medicina Interna são especialidades muito sensíveis ao sistema de valores que deve acompanhar as práticas médicas e que em contextos de apreço pelo retorno rápido e chorudo a sua procura social tenderá a diminuir. Penso que o sistema não tem favorecido a ideia das vocações naturais e que a exiguidade dos contingentes anuais de entrada nas Faculdades de Medicina, barrando o acesso à medicina a muitos jovens, corre o risco de agravar o declínio da procura social mais recetiva a tais especialidades. Ora, seria nessas circunstâncias que os incentivos influenciadores da procura, remuneratórios, mas não só, de carreira também, mais se justificariam.

A organização do SNS é atávica, olha para o problema, reconhece a sua existência e a Ordem dos Médicos também, mas continua a acreditar que a procura desejada se formará espontaneamente. A queda no abismo está aí, plena de evidência, e absurdamente não se vislumbra qualquer ideia ou ação para o evitar.