quarta-feira, 20 de novembro de 2024

O REGRESSO À VIDA DE EX-MINISTROS

 

(Há dias, quando aguardava o início de uma reunião na Fundação Calouste Gulbenkian, vi o ex-Ministro da Ciência e Tecnologia e do Ensino Superior, Manuel Heitor, com o seu capacete de motard ou de simples ciclista na bilheteira, imagino que adquirindo bilhetes para um qualquer espetáculo. Hoje, li com atenção a entrevista ao Público de outra ex-Ministra do mesmo ramo, Elvira Fortunato, também de regresso ao seu laboratório de sempre, imagino não com os mesmos traços de informalidade do seu antecessor na pasta. São de facto duas personalidades bem distintas que regressam às suas vidas universitárias e de investigação depois de uma passagem pela decisão política. Este é um tema que me interessa vivamente e que se desdobra em dois – os termos em que o exercício da própria função política é concretizado e as condições em que o regresso à vida normal é assumido, o que significa que não me interessa de todo o regresso de ex-Ministros à política, após a conclusão do seu serviço público. A experiência de incursão pela decisão política de investigadores e universitários proeminentes não é propriamente um mar azul de êxitos de transformação conseguida. Não direi que esse salto se traduz apenas numa ilusão de resultados de transformação, mas face aos resultados alcançados não estou seguro de que uma análise custo-benefício conduzida apenas do ponto de vista do interesse público proporcione resultados claramente positivos. Imagino que há variáveis a ter em conta, designadamente a consistência das equipas de investigação a partir das quais se concretiza a saída, o que parece ser o caso de Elvira Fortunato, para compreendermos a comparação entre o que se perde e o que se ganha com esta passagem pelo poder de gente proeminente na investigação.)
 

Quanto ao exercício das funções políticas, tenho para mim que nem sempre os protagonistas conseguem manter o equilíbrio entre uma certa informalidade na condução das suas vidas de político (a) e a necessidade de manter uma certa gravitas. Quando, por exemplo, na ânsia de realizar uma política de proximidade, Montenegro decidiu, aconselhado ou por decisão própria, não interessa, acompanhar os socorristas do acidente no Douro no próprio barco de salvamento, acho que ele perturbou esse equilíbrio, além, claro está, de ter introduzido uma perturbação desnecessária na operação.
 

Mas, regra geral, gosto muito de ver os políticos, fora do exercício oficial das suas funções, a assistir a um espetáculo, ou simplesmente a dar uma passeata por uma calçada qualquer. Estou fora do tempo, mas apreciava muito o estilo do Olof Palm na sua informalidade e não era por isso que perdia a sua enorme gravitas. Em sentido contrário, lembro-me do espalhafato do Dr. Fernando Gomes nas suas viagens na TAP ou Portugália, espalhafato que transportou para a sua atividade na SAD do Futebol Clube do Porto, pretensamente branqueando as tropelias de Pinto da Costa em fim de ciclo. Aliás, esse espalhafato valeu-lhe algumas deliciosas críticas na corte de Lisboa, diria eu bem merecidas embora produzidas por centralistas empedernidos da linha. Lembro-me ainda em registo próximo do modelo Olaf Palm do modo como o saudoso Jorge Sampaio vivia a sua experiência política e os momentos de lazer que ensaiava (lembro-me da sua passagem regular pelos Dias da Música no CCB).
 

Quanto à translação de cientistas e investigadores proeminentes para o campo da decisão política, e atenção não estou a falar de trânsfugas que já não viam a investigação há longo tempo ou que praticamente já não davam aulas, porque em relação a eles já não vale a pena perder tempo para realizar análises custo-benefício do ponto de vista do interesse público, é uma questão que vale a pena discutir, senão pelo menos na perspetiva da motivação que justificou a decisão.
 

Imagino que o que leva parte dessa gente a aceitar o salto de funções é a avaliação de que poderão infletir coisas e dar um outro rumo a matérias ou a constrangimentos que experimentaram no exercício anterior das suas práticas. Creio que muitas vezes um bom exercício de autoavaliação sobre as razões para esses constrangimentos ou limitações ditaria que a probabilidade desses fatores serem resistentes e não dependerem apenas de vontade política tenderia a dissipar a ilusão de que meter as mãos na massa será algo de ilusório.
 

A entrevista da Professora Elvira Fortunato ao Público é muito esclarecedora a vários níveis. 

Em primeiro lugar, porque o entusiasmo da cientista pela investigação que produzia está intacto e diria mesmo que reforçado. A sua notoriedade na temática dos transístores em papel granjeou-lhe uma reputação internacional indiscutível e pela entrevista percebe-se que está de novo “on the Track”.
 

Depois, porque a sua perspetiva do que se passa em matéria de investigação científica e tecnológica na China vale a pena ser lida com muita atenção e por isso tenho em vários posts alertado para que o ocidente não está a ver bem o cu de boi em que se vai meter se hostilizar totalmente a China nesse campo. Quando uma cientista como Elvira Fortunato declara na entrevista que veio da China “esmagada”, isso quer dizer muita coisa.
 

A um terceiro nível, é muito esclarecedor o testemunho da ex-Ministra sobre a burocracia do Ministério e do ambiente geral em que a ciência e tecnologia se inscrevem. Aliás, a burocracia é apontada pela ex-Ministra como a grande responsável da sua ação ter ficado eventualmente abaixo das expectativas que ela própria criou quando aceitou o desafio que lhe foi colocado.
 

Aqui está um belo exemplo de uma má avaliação de contexto. De facto, todos os cientistas e investigadores que tenho entrevistado em alguns trabalhos profissionais apontam a burocracia como o grande mal do sistema em que operam.
 

Por fim, um pormenor delicioso da entrevista, sobretudo proveniente de alguém do sistema científico e tecnológico localizado na aglomeração da capital. Referindo-se à sua experiência como governante, Elvira Fortunato afirmou, em termos esclarecedores: “Aprendi muita coisa. E houve uma coisa de que gostei muito e disse isso várias vezes ao primeiro-ministro: não conhecia o meu país. Temos um país riquíssimo, mas vivemos um pouco em bolhas. Nunca tinha tido a oportunidade de visitar tantos institutos politécnicos, tantas universidades como visitei nestes dois anos. E temos coisas espetaculares a nível nacional. E também as empresas. Temos empresas fabulosas.”


Pois, isto dos mapas mentais do país é mesmo importante. As bolhas também.

 

terça-feira, 19 de novembro de 2024

FAZEM ESTRAGOS, MAS DIMENSÃO PARA CORLEONES...

Vou atrás do último post do meu colega de blogue para reforçar o que nele escreve à boleia de Fernando Salgado (“Voz de Galícia”) e de Fernando Garea (“El Español”). O pantomineiro acima é o alemão Manfred Weber, um tipo que manda no PPE e inveja até ao tutano o poder de Ursula von der Leyen – os portugueses também não esquecem as suas provocações e maldades durante o período da Troika – e que agora encontrou, através do desesperado Alberto Feijóo (líder do PP espanhol), um eventual caminho de afirmação pessoal à custa do patrocínio de uma mudança histórica no contexto da construção do projeto europeu (a aliança, mais ou menos explícita, entre sociais-democratas e cristãos-democratas, hoje de algum modo ainda representados pelo PPE) segundo a qual o populismo de direita (ECR, desde logo, mas seria o que tivesse que ser) substituiria o S&D na coligação de comando dos destinos europeus (Comissão e Parlamento).

 

Depois há o já referido Feijóo, alguém que quase pôde ser presidente do Governo espanhol não fossem as habilidades de Pedro Sánchez mas que tem vindo a revelar desde aí uma debilidade estratégica e uma sede de vingança não compatíveis com as ambições que ainda ostenta. A nomeação de Teresa Rivera, entretanto posta em banho-maria, foi o expediente que encontrou para hostilizar o seu arqui-inimigo, segurar Mazón, lançar a confusão numa Espanha atordoada com a tragédia de Valência e, em conjunto com Weber, abanar negativamente a situação complexa que se vive no seio da União Europeia. E sim, a esquerda moderada reagiu utilizando a indesejável nomeação do “melonista” Raffaele Fitto (que tinha sido negocialmente engolida em seco) como elemento de contrapartida, assim acabando por ter sido postas em suspenso todas as nomeações de vice-presidentes da Comissão. As jogadas de bastidores prosseguem e já ninguém consegue garantir que a nova Comissão esteja em condições de arrancar no início do mês que vem – há que lhe chame realpolitik, eu prefiro ver em tudo isto uma manifestação inequívoca de quanto impera a falta de valores e a pouca decência nos políticos que hoje se nos deparam.


(Ricardo Martínez, http://www.elmundo.es)

(Emilio Giannelli, http://www.corriere.it)

CORLEONES DA POLÍTICA EUROPEIA

 

(O sempre perspicaz jornalista galego Fernando Salgado, a quem recorro frequentemente, tem na VOZ DE GALÍCIA uma inspirada crónica sobre as questões ainda pendentes na composição da “nova” Comissão Europeia de Ursula von der Leyen. A parte fundamental dessas questões pendentes relaciona-se com a ainda não validação do nome da espanhola Teresa Ribera para Comissária e Vice-Presidente de von der Leyen. O que é o mesmo que dizer que, em tempos em que a União Europeia deveria estar unida em torno das preocupações de futuro, como o assinalou Borrel na sua despedida, assiste-se a uma perigosa interdependência entre questões de política nacional, a luta PP-PSOE em Espanha, e as questões europeias. O sal da crónica de Salgado está no facto de ele invocar a máxima de Corleone no Padrinho, de que não são questões pessoais, mas apenas questões de “business”. Como aliás tive desse facto uma ampla premonição, tudo se enraíza na tragédia da Comunidade Valenciana, que apelidei em crónica própria de tragédia da governação multinível em ambiente de resposta a catástrofes. O PP de Feijoo não aguentou bem a incompetência de atuação do líder regional, Mazón, PP de quatro costados e se bem que nestas tragédias não haja, regra geral, nível de governação, nacional, regional ou local que salve o coiro, tentar inverter a origem da incompetência do regional para o nacional mostra bem o desespero que a situação provocou ao PP, cansado de tanto lutar para arredar Sánchez do poder e cada vez mais agoniado pelo estatuto de e “sempre em pé” que Sánchez tem assumido, com os malabarismos mais estranhos e perigosos. A arma que estava mais à mão era precisamente a ida de Teresa Ribera para a Comissão Europeia, já que a política espanhola estava no Governo e tinha responsabilidades de intervenção na resposta à catástrofe.)
 

A crónica de Salgado bate forte e feio na aliança em curso entre o PP de Feijoo e o grupo dos Populares Europeus no Parlamento Europeu, chefiado pelo alemão Manfred Weber. Se existe personalidade europeia em que menos confio sobretudo do ponto de vista de barrar o caminho à normalização da extrema-direita, Manfred Weber personifica bem esse estatuto. Estou claramente com Salgado quando ele refere que “Weber pretende liquidá-los, a Sánchez e a Ursula, ou pelo menos debilitá-los, porque ambos representam os últimos obstáculos que o impedem de alcançar o seu objetivo: incorporar a extrema-direita, uma vez ultrapassado o cordão sanitário, na governação da União Europeia”.
 

Há aqui duas matérias que importa distinguir bem.
 

Uma coisa é a legitimidade do combate político às manobras de resiliência no poder por parte do PP, tanto mais legítimo quanto mais se conhece a estranha heterodoxia e o caráter ziguezaguiante do comportamento de Sánchez para se manter no poder. Permanentemente obrigado a negociar com os seus parceiros regionalistas do acordo parlamentar que mantém o PSOE no Governo, cada traço negocial acrescenta instabilidade à situação política e, nesse contexto, a barganha política é totalmente legítima. Já estender essa barganha política ao “depois” de uma tragédia com as proporções da ocorrida na Comunidade valenciana revela bem o gelo fino em que se desenvolve a política espanhola, tão fino que me espanta não tenha ainda quebrado totalmente.
 

Mas outra coisa bem diferente é transpor essa barganha política para o plano europeu, sobretudo neste contexto. Não acredito que esse passe de mágica de Feijoo, procurando triturar uma das mais competentes peças do governo espanhol, sobretudo na matéria da transição climática, não tenha tido a aprovação e aplauso de Manfred Weber. Certamente que haverá águas passadas entre Weber e Sánchez que tenham ajudado à missa, mas creio que a inspiração de Salgado não deve andar ao lado da raiz do problema.
 

O que me parece é que a União Europeia se prepara lentamente para acolher o novo período de geopolítica mundial anunciado pelo entronizado Trump. Não sou particular adepto de analogias históricas descontextualizadas, fruto regra geral de pensamento banal e pouco fundamentado. Mas este comportamento de normalização e não de cerrar fileiras das instituições europeias assusta até o cidadão mais afastado da discussão política. 

Nota complementar

Se havia dúvidas da perversidade de tudo isto, chego agora a uma notícia que dá conta da negociação de Sánchez para deixar passar a candidatura de Meloni do ultra-direitista Raffaele Fitto em troca da aprovação de Teresa Ribera. Perversidades de mais para meu gosto.

 

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

À BOLEIA DE ANA SÁ LOPES

Já aqui há dias me referi a Ana Sá Lopes (ASL) como uma jornalista capaz, porque competente e imaginativa, e corajosa, porque voluntarista e afoita. Encontramos hoje a sua assinatura em duas peças do “Público” que nos remetem para questões que marcam a paupérrima atualidade portuguesa: numa crónica (“Não pesam na consciência de Montenegro as mortes no INEM?”), arrasa a reação do primeiro-ministro ao caso das mortes alegadamente ligadas a falhas do INEM e, por conseguinte, da responsabilidade da(s) sua(s) tutela(s); num outro texto (“A decadência da social-democracia e um PS agarrado ao ‘espírito do tempo’”), socorre-se de Paulo Pedroso (PP) para refletir sobre a crise das sociais-democracias e justificar as opções e hesitações de Pedro Nuno Santos (PNS).

 

A questão do INEM é realmente tratada de modo arrasador. Vejam este precioso excerto: “O que são os mortos do INEM perante esse projeto grandioso que é Portugal? Um ponto e vírgula numa história milenar para cujo sucesso Luís Montenegro vai – não sei se acredita mesmo nisso, mas acha conveniente dizer – contribuir. A frase é um triste resumo da nossa desgraçada praia lusitana: ‘Eu quero que todos saibam que, apesar de estarmos preocupados e a resolver esse problema [INEM], há um projeto muito maior do que esse para resolver em Portugal. É o projeto de nós acreditarmos no nosso país, de nós acreditarmos que conseguimos construir mais oportunidades, que conseguimos gerar mais riqueza.’” E este não menos precioso final: “O INEM não funciona, mas se mudarmos de assunto, defende Montenegro, ‘damos esperança’ a Portugal. Não é exatamente a versão rural da frase de Maria Antonieta ‘não têm pão, comam brioches’, mas é andar a brincar com a tropa.” Fica tudo dito, e bem-dito, apesar de a ministra Ana Paula Martins ainda hoje ter declarado com a convicção possível que se levanta todos os dias para cumprir a sua missão de governante porque “a minha missão é dar resposta a problemas e é isso que estou a fazer”. E quando assim é, mesmo dada a improbabilidade de um happy ending, as pessoas insistem, insistem, insistem na esperança vã de que com elas o final venha a ser diferente.


(Luís Afonso, “Bartoon”, https://www.publico.pt)

 

A questão da crise social-democracia, e especialmente da sua derivação lusitana, constitui algo de mais complexo ou menos cristalino. Em termos estruturais, ASL cita PP para sustentar quatro argumentos: (i) que o PS dos governos Costa, mau grado a constituição da “geringonça” em 2015, criou a imagem de “um partido centrista, orçamentalmente responsável”, afastando-se das grandes causas da esquerda e tornando agora visível que “o PS apostou no congelamento do Estado Social para garantir a sustentabilidade da sua estratégia económica”; (ii) que PNS, “com todos os seus defeitos”, tem noção da crise das sociais-democracias e “tem uma visão do papel do PS junto do eleitorado tradicional das classes médias”, procurando “prevenir a transferência do eleitorado para a direita”; (iii) que PNS “está preso” a duas contradições, a de não se demarcar do legado de António Costa segundo a qual “o PS foi vitorioso por causa da ‘gestão responsável’ do Estado” e a de “pertencer a uma geração de dirigentes socialistas que só conheceram o poder e tremem com a ideia de ficar na oposição por muito tempo”; (iv) que, consequentemente, há a tentação no PS de aceitar que “se o discurso é localmente ganhador, não se pode diabolizar”, ou seja, que está entre os socialistas consolidada “a ideia de que o PS não pode afastar-se do espírito do tempo”, sendo que “Ricardo Leão [que PNS não quis deixar cais] é o protótipo do estado de espírito de muitos autarcas por esse país fora. Há o sentimento de que o poder autárquico é a alavanca para o regresso do PS ao poder e isso tem que ser feito com um discurso que se adapte ao espírito do tempo.”

 

Pessoalmente, não estou certo de concordar com todos os pontos acima mencionados, mas tal não se me afigura muito relevante na medida em que vejo as dificuldades da atual liderança do PS bem a montante daquela dimensão estrutural – refiro-me, por exemplo, às “cambalhotas” que têm caraterizado o seu posicionamento titubeante e até errático em sede de aprovação ou rejeição do OE para 2025. A última cedência de PNS centra-se agora no seu dito por não dito quanto à aceitação da descida de um ponto percentual do IRC (com a agravante de dar a impressão de o fazer para evitar uma situação em que PSD e Chega votassem juntos uma redução de dois pontos percentuais), assim incompreensivelmente se preparando para viabilizar na especialidade o que o levou a recusar um acordo com o PSD na generalidade. Em conformidade com este estado de coisas, não há mesmo “espírito do tempo” que possa resistir a tanta guinada (lembro o “é praticamente impossível” de janeiro passado e a miríade de sucessivas declarações que se lhe seguiram até à abstenção de 31 de outubro) nem qualquer discussão em torno que possa ter provimento ou efeito útil. E quando assim é...


(a partir de Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

domingo, 17 de novembro de 2024

TEMPOS DIFÍCEIS

 

(Uma reflexão simples de início da noite de um domingo, preparado para mais uma semana de labuta, com mais uma ida a Lisboa, desta vez para apresentar um trabalho de avaliação que coordenei para a Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação Bissaya Barreto do Programa Cidadãos Ativ@s apoiado pelo EEA Grants. O evento do próximo dia 20 de novembro tem alguma envergadura, estima-se uma participação de mais de 400 pessoas identificadas com os temas da cidadania, dos direitos humanos, do empoderamento de públicos vulneráveis e da capacitação de ONG. Inspirado pelo tema e cada vez mais seguro de que ele tem uma extrema atualidade nos tempos que correm, nada melhor de que a confirmação de que as liberdades sociais e políticas estão em queda acelerada e não apenas com o regresso de Trump ao poder. Segundo os dados da Freedom House essa queda vem de há mais longo tempo, podendo por isso dizer-se que o regresso de Trump e de outros personagens aos corredores do poder é ele próprio sintoma e consequência desse processo de erosão da liberdade, paradoxalmente validado em sede de processos eleitorais. O que também significa que confundir as liberdades democráticas apenas com a possibilidade de realização de eleições livres será no futuro próximo cada vez mais redutor. A recomposição da administração americana federal induzida pela vitória de Trump vai trazer ao exercício do poder personalidades que não se inibem de expressar a sua sedução por personalidades autocratas e regimes autoritários, agora que o controlo das instituições é total, Governo, Senado, Congresso e Supremo Tribunal de Justiça.)


O gráfico da Freedom House é bastante ilustrativo e se quiséssemos diversificar as fontes de cobertura da erosão das liberdades que vai sendo observada por todo o mundo, procurando outras fontes prestigiadas e em que possamos confiar, não seria difícil encontrar outros indicadores e gráficos mais ou menos eloquentes do que este, mas seguramente refletindo todos essas sombras que pairam sobre as liberdades sociais e políticas. Caminhamos para um contexto em que as liberdades democráticas se revelam cada vez mais a expressão de uma época relativamente curta no tempo longo e se apresentam cada vez mais rarefeitas geograficamente falando.


O Programa Cidadãos Ativ@s cuja avaliação irei apresentar na Gulbenkian na próxima quarta-feira, inserido num evento bastante mais vasto e relevante do que essa avaliação, atua ao nível micro das ONG e das Organizações da Sociedade Civil (OSC) procurando construir resiliência, capacitação e engenho nesse plano. Mas essa dimensão do fortalecimento da sociedade civil não pode deixar de ter uma mediação para a intervenção política e um diálogo aberto e franco com o exercício da política seja ela praticada a nível nacional ou a nível regional e local. Os mecanismos de valorização da sociedade civil não podem ser entendidos como a última peça da resistência política, dando de barato que a política já não consegue orientar-se para a defesa dos comuns e do interesse público. Esse combate não deve ser abandonado. Esse abandono tornará a política presa fácil dos que têm acedido ao autoritarismo através de eleições, assim como será crucial não deixar de combater os que se perpetuam no poder através do jogo democrático viciado, de esquerda ou de direita não importa.
 

Mas o gráfico da Freedom House, independentemente dos dezoito anos serem mais ou menos corretos como datação do início do processo de erosão das liberdades sociais e políticas, mostra também que muito provavelmente o mundo esteve pouco atento aos sinais dessa erosão, encolhendo os ombros ou normalizando o que não pode de todo ser normalizado.


Essa falta de atenção está perversamente presente e visível em muita gente, cidadãos medianos ou gente esclarecida e com poder mediático, que têm vindo sistematicamente a proclamar a velha tese de que afinal eles não são assim tão maus como os pintam (Trump, extrema-direita, Chega e outros que tais). A história é tão clara em fornecer-nos exemplos eloquentes dessa propensão para a banalização do mal que até impressiona
.

 

O QUE PARA AÍ VAI...

 


Duas fotos publicadas pelo “Libération” e que constituem uma prova reafirmada de que uma imagem vale mais do que mil palavras, tendo também qualquer coisa daquele “o gesto é tudo” que marcou uma época. A democracia americana a despedir-se da maior normalidade/estabilidade que Kamala lhe garantia e a Europa em crescente dissonância à medida que espera a chegada de Trump e cada um dos seus líderes se vai preparando para tratar da sua vidinha muito própria (Scholz até já telefonou a Putin!). Ou seja: o mundo a mudar a uma velocidade que é claramente mais estonteante e ameaçadora do que aquilo que ainda parece à vista desarmada do cidadão comum desinformado e enganosamente resguardado neste canto a oeste da Europa – com Zelensky a sinalizar a validação em curso pela União Europeia da derrota do seu país e Netanyahu a exterminar palestinianos, a anexar território e a destruir o Líbano, ambos cientes de que em janeiro haverá Trump para fechar os processos com chave de ouro; Trump esse que se vai entretendo a nomear inconcebíveis governantes e dirigentes em catadupa, concretizando inapelavelmente o que será a composição da sua próxima administração americana comandada por multimilionários e vigaristas (cito o insuspeito Pedro Mexia). Socorro!


(Andrés Rábago García, “El Roto”, http://elpais.com)

sábado, 16 de novembro de 2024

REQUIEM PELA COP?

 


(Quando escrevo não é ainda possível descortinar se a COP a decorrer no Azerbeijão chegará ou não a um acordo financeiro que substitua com um mínimo de decência o acordo de Paris. Mas se quisermos tomar como referência o facto da Conferência se realizar num país que alinha, por necessidade talvez, não interessa, com os interesses fósseis, mesmo que sejam os do gás natural, e as múltiplas ausências de grandes decisores políticos, não é difícil concluir que os maus presságios estão aí para ser interpretados. Ouvi hoje uma notícia perdida que referia que o número de lobistas dos interesses fósseis representados na Conferência era assustador, o que sugere que esse universo que se pretende ver reduzido a expressões mínimas está aí para as curvas e disposto a dar luta, alimentando negacionismos, duvidando do agravamento da questão climática, em suma pintando a macaca para não abdicar do seu poderio e capacidade de geração de lucros. Não sei sinceramente avaliar se o aparente ressurgimento dos interesses lobistas dos combustíveis fósseis está animado pelo que a administração Trump promete. O que toda a gente sabe é que se os EUA fizerem do Inflation Reduction Act de Biden que apontou decisivamente para a revolução verde na economia americana uma peça de museu, as curvas que mostravam o comportamento divergente das renováveis, em crescendo, e dos combustíveis fósseis em diminuição acentuada, podem comportar-se no futuro próximo de forma diversa e fazer regressar a uma estaca zero a opção que parecia irreversível da descarbonização.)


O que parece hoje evidente é que a notoriedade dos números que anunciam a marcha vitoriosa das renováveis, largamente favorecida por evoluções tecnológicas que têm facilitado por via de custos e preços as escolhas tecnológicas em favor de soluções produtivas e tecnológicas de maior descarbonização para as economias, enfrenta problemas de afirmação e de convencimento junto da classe política. E, diria eu, não apenas junto da classe política. Continua a existir gente com qualificação a remeter para a inevitabilidade das questões da física do universo as perturbações climáticas cada vez mais gravosas que se têm vindo a sentir, proclamando que seria mais sensato investir na engenharia do controlo e gestão de catástrofes do que procurando lutar contra as mudanças climáticas. Os fenómenos trágicos da Comunidade Valenciana e também de algumas zonas do território americano anunciam-nos um padrão. Os negacionistas e saudosos dos combustíveis fósseis têm conseguido algo de assombroso. Capitalizam politicamente tais acontecimentos, embora negando a sua origem explicativa. Duvido mesmo que alguma dessa gente se por infortúnio for algum dia atingido por alguma forma de destempero climático mesmo nessas circunstâncias inventará a tradição ou qualquer outra explicação oculta para negar o inevitável.


Se comparamos o tempo em que Trump chegou pela primeira vez ao poder com o que se passa hoje, as energias limpas passaram de uma preocupação de pormenor para um nível bastante mais abrangente de produção e utilização. Quer isso dizer que não será fácil hoje ignorar essa transformação, até porque os larguíssimos investimentos já realizados terão de ser rendibilizados e não me parece que o negacionismo tenha o poder de sobreposição ao cálculo económico.


E ao contrário do que muito boa gente pensa, principalmente a que tende a ficar ofuscada pelo brilho das revoluções tecnológicas, a grande esperança (ou ameaça definitiva) da inteligência artificial tem determinado que alguns grupos empresariais, que tinham entrado numa trajetória que parecia irreversível de geração de menos emissões de gases com efeito de estufa, têm invertido esse processo devido à procura de energia que a inteligência artificial exige. O que sugere uma contradição insanável. Parte da revolução tecnológica assume-se como uma parceira relevante da descarbonização, mas eis que senão quando se percebe que o mundo digital e da inteligência artificial está longe de ser neutro em matéria de emissões, antes pelo contrário as agrava pelas necessidades de energia que transporta consigo. Como é óbvio, isto não significa ignorar o que a inteligência artificial pode trazer de positivo à resolução do problema climático. Basta uma simples pesquisa do Google para encontrar gente entusiasmada com esse potencial.


Se a Europa enfrenta um cu de boi dos antigos em matéria de geopolítica, não está em posição mais confortável em matéria de trajetórias e compromissos para a descarbonização. A União Europeia liderou a marcha para a neutralidade carbónica e grande parte dos países da União seguiram esse caminho, embora do ponto de vista dos modelos de consumo e adaptação dos processos produtivos haja países como Portugal que enfrentam uma transição difícil e que será penosa para algumas indústrias. O combate à adversidade climática dificilmente será vitorioso se o compromisso, embora com taxas de evolução diferenciadas, não for mais ou menos generalizado. Além de que a necessidade de abrir aos países em desenvolvimento oportunidades de crescimento implique obviamente uma estratégia de redução de emissões que não os pode colocar desde já na primeira linha das exigências.


Tudo isso parece estar ameaçado com uma COP tão vazia de intenções como a que está a decorrer no Azerbeijão. 


E gostaria de terminar com uma referência aos reflexos de uma eventual viragem na política energética de Trump face à da administração Democrata anterior no que respeita ao posicionamento da China. Sabemos que a possibilidade do crescimento das emissões na China ter já atingido um pico, devido ao ajustamento promovido pelas autoridades chinesas, principalmente em matéria de veículos elétricos, foi um poderoso elemento de debate nos EUA. Houve quem referisse que a ameaça chinesa não era essencialmente tecnológica, mas antes a dos seus avanços em matéria de evolução para a economia verde.
Por isso, apetece perguntar, se uma viragem da administração americana para uma desvalorização da questão climática e da aposta na descarbonização poderá ou não fazer as autoridades chinesas repensar as decisões já tomadas.


O que parece evidente é que do ponto de vista do que era esperado em termos de influência das tragédias climáticas nos vulgares mortais as expectativas mais favoráveis ter-se-ão revelado ingénuas ou demasiado esperançosas. O comportamento político eleitoral dessa massa populacional parece ignorar essa questão e o que de positivo tem sido feito em matéria de redução de emissões.


Confrangedor? Sim, bastante.