(As minhas impressões e evidências da Turquia limitam-se a uma viagem de cinco dias apenas a Istambul, aliás objeto de reflexões neste blogue, e por isso são coisa pouca para entender a força impressionante das manifestações contra a detenção mais ou menos manhosa e exigindo a sua libertação do adversário de Erdogan, o presidente da Câmara de Istambul, Ekrem Imamoglu. Quem conhece a Turquia com uma outra amplitude de referências diz-me que existe uma enorme diferença entre, por um lado, o autêntico cadinho urbano que Istambul representa e as outras cidades turcas e, por outro lado, entre a Turquia urbana mais laicizada e a Turquia mais tradicionalista e rural, ainda fortemente dominada. Embora sem existir uma correlação perfeita entre estas várias Turquias e a massa popular que tem sustentado o poder de Erdogan, não será por acaso que Ekrem Imamoglu teve já duas vitórias em Istambul nas eleições municipais e é nessa base que se perfilou como candidato suscetível de derrotar Erdogan em eleições livres, acaso elas venham a existir e das mesmas o candidato não seja artificialmente afastado. Como referi nessas crónicas de viagem, por exemplo aqui, achei um verdadeiro espanto de preservação necessária que em Istambul coexistissem ainda os símbolos do laicismo urbano mais arrojado e o tradicionalismo mais ou menos fundamentalista, de que as chamadas sonoras para a mesquita no meio de toda a animação urbana continuam a ser um símbolo representativo. As raparigas e mulheres de burka e de negro carregado passeiam na rua misturadas com a moda de vestuário mais ousado e de afirmação do corpo feminino e foi essa coexistência que me agradou tanto em Istambul, que gostaria ainda de revisitar para uma exploração menos domesticada pelo organizador da viagem. Mas o personagem Erdogan é bem o símbolo das contradições internas da Turquia, mas também do lugar contraditório que ela representa para a União Europeia, Europa em geral e obviamente para a NATO.)
As características autoritárias do modelo de governação e da própria personalidade de Erdogan são passíveis de interpretações não uniformes quanto à sua sustentação. Por um lado, a criatividade e a força de mudança que se respira em Istambul, e imagino que também na restante Turquia urbana e cosmopolita, conviverão sempre mal com um estilo como o de Erdogan e apoiantes mais próximos. A vitória de Imamoglu em Istambul e a força das manifestações dos últimos dias expressam bem essa condição. Mas, por outro lado, o estilo e o modelo de governação de Erdogan revelaram-se ajustados à transição e gestão dos modelos das várias Turquias, assegurando designadamente à Europa um tampão face ao islamismo.
Porém, a evolução acelerada dos últimos acontecimentos mundiais constitui um enorme desafio à sustentação do poder de Erdogan. O tempo passa depressa e já lá vai no passado (2015) o acordo de Erdogan com Angela Merkel e Bruxelas para a Turquia acolher uma massa de refugiados e evitar a sua entrada na Alemanha e no território da União. Desde esse acordo, há muita coisa a acontecer. Desde logo, a NATO atravessa uma convulsão potencial com a posição bizarra e também perigosa dos EUA de Trump e não esqueçamos que a integração da Turquia na NATO representou uma outra oportunidade de tampão, neste caso de tampão face à influência soviética. Aliás, com uma força militar que é a mais importante a seguir aos EUA, o que diz bem do seu papel. Ora tudo está mudado e abre-se um novo espaço que equivalerá a reequacionar o papel da Turquia na própria NATO e na sua convulsão interna. A outro nível, a Turquia de Erdogan assumiu-se como um ator principal na Síria, apoiando o governo agora em funções e reorganizando o espectro de influências naquele território.
Dos últimos desenvolvimentos, o que me inspira mais interrogação sobretudo por não ter informação suficiente para o compreender plenamente, foi o que se passou em fins de fevereiro de 2025: o líder curdo Abdullah Öcalan, preso na Turquia, fez um apelo público para a dissolução do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), circunstância que a verificar-se representaria para Erdogan uma enorme prova de poder de dissuasão. Não sei se esta significativa alteração tem alguma correspondência com os acontecimentos observados na Síria e com a quebra de influência curda nesse novo xadrez, ainda longe de estar estabilizado.
Resumindo, é natural que o nosso espanto pela força das manifestações de Istambul e outras cidades turcas a favor da libertação de Imamoglu esteja ao nível do nosso apreço pelos movimentos pró-liberdade de Hong-Kong, Geórgia, Arménia e outros. Afinal, quando a liberdade está em recessão é necessário defendê-la com toda a energia. Mas será necessário estar atento ao estado de evolução das contradições internas e do papel da Turquia no mundo que irá observar-se neste turbilhão de mundo em que nos encontramos. Não é apenas uma Turquia laica, moderna e marcadamente urbana que está em ebulição. É toda uma outra sociedade que se encontra em transição.
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