segunda-feira, 10 de março de 2025

DESCONSTRUINDO O TRIUNFO DA TÁTICA

Um fim de semana chuvoso e repleto de pequenos compromissos pessoais e familiares afastou-me sem remissão deste espaço. Mas permitiu-me, ainda assim, alguns momentos de agradável e remuneradora leitura. Foi o caso da muito recomendável crónica, no “Ipsilon” do “Público” de Sexta-Feira, de António Guerreiro (AG), personalidade já aqui várias vezes elogiado por mim e pelo meu colega do lado como um dos poucos intelectuais que ainda resistem neste país invadido pela ignorância e instantaneidade das redes sociais e seus frequentadores – o texto merece algum tempo de leitura cuidada e a sua densidade não é, por isso, compatível com um qualquer resumo que aqui pudesse fazer. Ainda assim, arrisco alguns highlights eventualmente suscetíveis de dar maior sustentação às minhas afirmações.

 

Começando por escrever que “em tempos já recuados, o pecado capital — ou a suprema virtude, conforme a perspetiva — do discurso político era a retórica”, e acrescentando que “a retórica é consubstancial à democracia” e que “nesse tempo já recuado, a atenção à linguagem — fosse ela a da literatura, da publicidade, ou do discurso político — era um treino obrigatório e possuir as ferramentas analíticas era um bem muito útil e valorizado”, AG evolui para considerar que, “nas novas condições mediáticas”, “o que verificamos é o triunfo de uma competência que é da ordem da tática e não da retórica”. Reportando-se aos acontecimentos nacionais dos últimos dias, AG não se inibe, então, de se estender para mais longe: “É nestes momentos que percebemos com toda a clareza que a retórica, pelo menos aquela com um certo grau de elaboração, não se confunde de modo nenhum com o regime tático do discurso dominante, sob a forma de um infantilismo que faz da vida política uma competição de recreio ou um cenário de desenho animado pueril e regressivo”.

 

E, depois, numa referência brilhante, AG explica-se de modo lapidar: “Mas em que consiste a tática a que me refiro? Antes de mais, devemos notar que a palavra “tática” nunca é pronunciada pelos políticos. Para eles, a palavra-fetiche é “estratégia”. Todos são detentores de uma estratégia, nenhum se move por impulsos táticos. A estranha palavra “tacticismo” serve, aliás, para denegrir os adversários, para dizer que as suas manobras se aproximam da indignidade e têm algo de pecaminoso. Tática e estratégia, pertencendo ambas ao discurso militar, são duas coisas diferentes, mas que se tornou comum confundir.”

 

Mais ainda, e definindo a tática como “um jogo de dissimulação, de ocultação e desvios”, AG infere: “Daí que a política tenha passado a ser vista como uma coisa grosseira, uma vulgaridade de criaturas retardadas que tratam o povo como crianças que ainda não saíram do estado de tutela e não chegaram ao pleno uso da razão.” E conclui: “O triunfo da tática no discurso político corresponde a uma instrumentalização da linguagem que nada tem que ver com a elaboração retórica. É uma maneira enviesada de usar as palavras, de as degradar, ignorando que elas são uma matéria ética e não apenas instrumentos de comunicação. E isso, que se generalizou e normalizou (ao ponto de a chamada “análise política” não passar geralmente da análise e descodificação dos truques táticos dos políticos), é muito mais nefasto do que não cumprir as regras de incompatibilidade e do conflito de interesses.”

 

Desinibidamente vos confesso quanto encaixou na minha cabeça esta reflexão sobre “o domínio da tática” e os seus malefícios, assim se demonstrando como já não exigimos muito mais do que a constatação de uma significativa coincidência de perspetivas para sentirmos alguma dose de conforto na vivência deste mundo cada vez mais desconfortável.


(Cristóbal Fortúnez, https://elpais.com)

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