(É difícil por agora antecipar se teremos de “agradecer” aos desmandos de Trump a capacidade de reação que a Europa parece querer evidenciar a partir do momento em que se tornou claro que teria de tratar de vida e pressupor que a colaboração euro-atlântica com os EUA estaria na mais bondosa das hipóteses ficar suspensa por algum tempo ou, pior do que isso, ser lançada para o caixote do lixo. Entre outras manifestações o relacionamento com o Reino Unido alterou-se de modo decisivo, numa espécie de Europa alargada que, sem curar as feridas profundas do BREXIT, permitiu pelo menos ao nível das relações com os países europeus mais proeminentes uma significativa intensificação dos propósitos colaborativos. Este reconhecimento não significa, porém, que o meu otimismo seja desbordante. A União Europeia deu mostras que não estava a dormir, mesmo reconhecendo a posteriori que foi um erro tremendo consentir um cavalo de Troia como a Hungria de Vicktor Orbán no seu seio, já para não falar da inconstante Eslováquia. O meu ponto é que se excetuarmos a passageira crise energética no Norte da Europa, sobretudo na Alemanha, em que os europeus dessas paragens terão tido a perceção do que poderiam ser as consequências de enfrentar a ameaça russa, os Europeus ainda não foram efetivamente obrigados a alterar os seus padrões de comportamento e de consumo para suportar as decisões de levar a sério a proteção do seu território. Os tempos da crise das dívidas soberanas mostraram cruelmente que a solidariedade europeia era uma palavra mais vã do que a letra dos tratados o sugeria. Os países do Norte da Europa não foram muito compreensivos com os reais e estúpidos custos da austeridade que a Europa do Sul teve de suportar e diferentes narrativas foram construídas sobre as razões pelas quais os europeus do sul teriam de suportar os custos da resolução dos seus próprios problemas. Desde os problemas da corrupção endémica até aos mitos de que trabalhamos pouco (trabalhamos muito mas mal, esse é o problema) tudo valeu para que, pelo menos enquanto esses países, sobretudo a Alemanha, não colocaram a salvo os seus capitais, os custos da austeridade a sul não preocupassem as consciências solidárias. Por isso, não será de estranhar que vá levar algum tempo até que as populações do sul compreendam melhor as ameaças que pesam sobre os países integrados no raio de alcance do olhar de Putin e sobre eles próprios.)
As minhas dúvidas vão adensar-se sem margem para dúvidas quando entrarmos mais a fundo nas questões do rearmamento e da segurança civil e militar, isto é, quando passarmos da retórica às decisões concretas e aos impactos que estas terão na afetação de recursos públicos em cada país. Regresso ao artigo de Clara Ferreira Alves no Expresso on line, já citado em post anterior, e no qual a jornalista se coloca no discurso de um jovem de 28 anos que expressa o seu desejo de vir a rumar para os lados da Ásia para prosperar na vida e não ter de dar o corpo ao manifesto para defender os países mais próximos da ameaça russa.
Uma das dimensões do problema está no tradicional não militarismo das forças políticas mais à esquerda que, no contexto das duas Guerras Mundiais, se chamava pacifismo, mas que pela força das circunstâncias atuais talvez não possa continuar a chamar-se assim.
Uma antecipação perfeita desse gordo problema pode ser encontrada nas dificuldades gigantescas que Pedro Sánchez e o PSOE enfrentam por estes tempos em Espanha, tentando convencer os seus aliados parlamentares, esquerdistas e regionalistas, da necessidade de aumentar os gastos públicos em rearmamento e segurança numa dimensão estimada em cerca de 1,8% do PIB espanhol. O rol de contradições que Sánchez é forçado a resolver para se ir mantendo no poder da governação é até hoje tão vasto que o caso espanhol de acordo parlamentar para a governação se arrisca a ser o caso de estudo do século, independentemente de acabar mal ou de evitar eleições antecipadas.
Mas é inequívoco que, pelo menos em termos de reação, e não estou a falar apenas no voluntarismo de Macron que continua fiel ao seu lema de, por via na sua aposta na Europa, continuar a mitigar as amarguras da sua frágil posição política interna, as instituições comunitárias têm evidenciado uma rapidez de reação e movimentação que não é desprezável. Sobretudo a presidência polaca, pour cause, demonstra uma sede de aceleração do tempo político que é visível anotando o calendário político de reuniões sucessivas multiplicadas a diferentes níveis. Da criação do Fundo Europeu de Defesa até à intensa discussão sobre as modalidades de financiamento do rearmamento europeu, indo até ao exemplo do projeto de criação de um banco específico para esse objetivo, a vivacidade de ideias e propostas em discussão oferecem-nos um ambiente bem menos passivo do que o observado nos tempos em que se fez vista grossa aos avisos que Putin deu a toda a gente em 2014 com a Crimeia e com as ameaças na Geórgia.
E embora não fosse a alternativa ideal para tirar os objetivos da reindustrialização da retórica dos documentos programáticos, tenho de aceitar que a resposta aos desafios do rearmamento poderão ser uma das vias a utilizar, ainda que em matéria de software a posição da Europa não seja propriamente de irrelevância, mas que é frágil ninguém tem dúvidas acerca disso. Não esquecendo também, que o rearmamento e a defesa poderão ser espaços para as já aqui comentadas MISSION-based iniciativas em matéria de investigação científica e tecnológica, tal como a Mariana Mazuccato as formulou. Esse é talvez dos temas que pode aguentar melhor a intensificação do relacionamento com o Reino Unido, tal como o sempre lúcido Martin Sandbu recentemente o assinalou na sua divulgadíssima newsletter FREE LUNCH.
Por isso, apesar de tudo e do tempo não nos ser favorável, tudo indica que “E L’EUROPA SI MUOVE”, por fim, forçada pelas circunstâncias, mas mexendo-se.
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