quarta-feira, 19 de março de 2025

A ESQUERDA E AS QUESTÕES IDENTITÁRIAS

 


 (Em dois posts anteriores, aqui e aqui, chamei a atenção para o processo de adaptação que as forças políticas democráticas à esquerda e à direita irão desenvolver face à presença de um elefante na sala, as forças de extrema-direita que irromperam por diferentes parlamentos na Europa e não só para sujeitar a democracia a uma longa erosão. À falta de melhor designação designei esse processo de TPeC, Transição Política em Curso, que passa a constituir um novo foco de interesse da minha pesquisa para este blogue e sobretudo uma matéria de monitorização permanente, pois tudo indica que o processo será longo e não necessariamente linear. É sob essa orientação que tenho vindo a trabalhar evidência para dar corpo e consistência a essa hipótese de trabalho, fazendo-o à esquerda e à direita, pois entendo que o referido processo adaptativo não será uniforme e apresentará diferenciações relevantes. Em simultâneo, dentro das limitações de captação de evidência que a periferia europeia nos impõe, tenho procurado diversificar também essa procura por diferentes países europeus, já que os diferentes sistemas constitucionais nos trazem variantes interessantes de contexto. Seguindo essa linha de orientação, exploro hoje o que está a acontecer por terras de França, na qual existe um abismo de diferenças entre o que Macron está a procurar desenvolver positivamente na cena europeia e internacional e as misérias da política interna, bem menos refrescantes do que o voluntarismo frenético, não sabemos ainda se consequente ou condenado ao fracasso, do Presidente. A evidência em causa está essencialmente relacionada com a posição relativamente agónica do Partido Socialista Francês, hoje liderado por Olivier Faure, um personagem simpático que herdou uma situação de quase irrelevância que não se recomenda. Pois, ao contrário do que muitos esperariam, o PS de Faure mordeu o isco lançado pelo atual primeiro-Ministro em exercício François Bayrou, não enjeitando a hipótese de entrar no debate sobre as questões identitárias – a identidade nacional da França.)

A caminhada política do novo governo de François Bayrou, desencantado por Macron para assumir este período conturbado, tem sido um processo cheio de espinhos e contradições. Tudo parece tremer em matéria de contradições internas, seja as forças políticas que sustentam o governo de Bayrou, seja a esquerda na oposição com a França Insubmissa a viver um período atribulado e o PS de Faure a tentar capitalizar o pequeno ressurgimento, mais propriamente o estancamento do declínio, que os últimos atos eleitorais lhe proporcionaram. Por sua vez, o Rassemblement National aguarda cinicamente o estilhaçar das contradições, tal qual predador que espera pacientemente a maior vulnerabilidade possível da sua presa. Diga-se, circunstancialmente, que a disrupção de Trump na cena internacional está longe de beneficiar o partido de Le Pen, pois é conhecida a sua aversão ao modelo cultural americano, agora extremado nesta sua nova variante. Por outro lado, a proximidade de Trump a Putin também não beneficia Marine Le Pen, pois esta tem tentado com afinco nos últimos tempos apagar a mancha do pressuposto financiamento do partido por empréstimos de banqueiros russos.

Recentemente, a política interna francesa foi surpreendida com a iniciativa política de Bayrou de trazer para o debate político a questão da identidade nacional da França. Imagina-se a dificuldade política de lançar sob a forma de convenções descentralizadas por todo o território francês a discussão sobre este tema, sobretudo no contexto de uma França submetida a todo um vasto conjunto de influências de culturas externas que entram todos os dias pela França adentro. Dificuldades acrescidas quando o tema da identidade nacional tem sido presa fácil da direita mais reacionária em França, que faz dela uma parede-ricochete face às pressupostas ameaças trazidas pela imigração nos seus diferentes estádios de acolhimento e (des) integração.

À esquerda, tem predominado a ideia de que, quando as questões sociais são a preocupação dominante e é possível em torno delas construir um conjunto coerente de políticas públicas, as questões identitárias se esbatem face ao objetivo superior de respostas sociais positivas. Segundo o Libération, um senador do PS Alexandre Ouizille terá escrito algo que vai nesse sentido: “A experiência histórica mostra-nos que quando a questão social domina a agenda, o espectro da guerra civil identitária parece desaparecer da consciência coletiva. Porque o conflito social organiza-se em torno de interesses materiais a conquistar e não de uma genealogia inata e inultrapassável”.

A posição assumida por Olivier Faure é de difícil caracterização: temerária e corajosa ou simplesmente ingénua?

Compreende-se que o PS francês associe o seu possível ressurgimento a uma tentativa desesperada de encontrar algo de consistente e válido entre a França Insubmissa de Mélenchoin e o Rassemblement National de Le Pen e Bardella, em busca não de um tesouro perdido, mas de uma Nova França, que possa refletir mais fielmente um corpo de valores que dê resposta ao novo contexto da sociedade francesa. Mas se compreendo essa intenção e a correspondente ideia de ir a debate sobre essa matéria, chego rapidamente à conclusão de que transformar essa Nova França num corpo identitário coerente que coloque lá bem no passado as raízes mais profundas do chauvinismo francês é uma tarefa política gigantesca, de um prazo bem mais longo do que o tempo que se abre ao PS francês para suster o seu caminho para a irrelevância.

Por outro lado, reinventar politicamente temas como o da fraternidade num contexto em que as questões da imigração, da integração e da segurança apela a desafios gigantescos de consistência, mas também de habilidade e competência políticas.

É por isso que, em meu entender, o debate em curso no interior do PS francês e de toda a esquerda democrática faz parte do processo adaptativo de que falava no início desta crónica. É conhecida a presa que a extrema-direita tem adquirido em França sobre o tema da identidade nacional, sobre o que é ser francês no mundo de hoje. Assim sendo, a reação face ao tal elefante na sala teria que suscitar necessariamente a entrada no debate sobre os temas identitários, o que não é senão uma outra forma de discutir a imigração, a integração e a segurança.

A posição de Olivier Faure é talvez temerária. Mas cabendo-lhe estar neste contexto a liderar o seu partido, dificilmente ignorar o problema seria melhor solução.


 

Nota complementar:

Já depois de ter publicado este post, dei de caras com este tweet de Sylvie Kaufmann (Les Aveuglés, obra destacada neste blogue) no X, que sublinha a ironia de Uderzo, filho de imigrantes italianos e de Goscinny, filho de imigrante polaco e imigrante ucraniana serem grandes exportadores do espírito francês.

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