sábado, 22 de março de 2025

SOBRE O BRANQUEAMENTO DA POLÍTICA ECONÓMICA DE TRUMP

 

                                                                (Financial Times)

(Na imprensa americana que mantém alguns princípios de decência e de liberdade de pensamento e na blogosfera mais especializada está por estes dias instalado um debate interessante que pode resumir-se na seguinte ideia: por detrás da disrupção narcisista de Trump e da necessidade de aparecer frequentemente na televisão existe algum racional de política económica internacional que fundamente as suas erráticas posições? A questão não começou a ser discutida a partir de pronunciamentos públicos do grupo de economistas que lhe é afeto, designadamente do economista-chefe do Council of Economic Advisors Stephem Miran (1). O elemento talvez mais marcante desse acordar para o debate podemo-lo associar a uma longa entrevista da economista do Financial Times, Gillian Tett, concedida ao prestigiadíssimo podcast de Ezra Klein Show. Tett não é uma jornalista qualquer e, por isso, quando ela refere encontrar algo de novo no substrato de toda aquela disruptiva tontaria isso não passaria obviamente despercebido aos analistas mais atentos. As reações mais pesadas em termos de notoriedade equivalente ao de Gillian Tett foram por exemplo as de Adam Tooze, de Bradford DeLong, Paul Krugman e Martin Wolf que, por vias diversas, vieram a terreiro clamar que não é tempo de branquear o que está manifestamente encardido e irrecuperável, sendo antes essencial manter e aprofundar o espírito crítico do que está a ser montado em matéria de política económica internacional. Adam Tooze fala mesmo de risco de que o síndrome de Estocolmo poder estar a acontecer – a tendência para cooperar por medo com os que nos capturam. Admirador de Tett, apetece-me, desolado, dizer, até tu Gillian! O post de hoje é assim uma tentativa de alinhar ideias sobre o referido debate, sobretudo por motivos de saudável precaução. É que, com o desfasamento temporal com que estas coisas chegam a Portugal, apostaria que proximamente o referido branqueamento vai cá chegar muito provavelmente no colinho aconchegado do Observador, que não perde pitada na sua continuada insatisfação por não encontrar cá pelo burgo as forças políticas e os líderes capazes e com tomates para aplicar as suas ideias de um certo libertarismo económico. Vale tudo até transformar-se em órgão explicador da problemática falta de ética democrata de Luís Montenegro.)

A curiosidade da questão está no facto do debate instalado sobre o pretenso racional da política económica internacional de Trump reeditar uma designação de setembro de 1985, conhecida por acordo de Mar-a-Lago. Nessa data, os EUA negociaram a depreciação do dólar então devido à apreciação causada pelas subidas de taxa de juro impulsionadas por Paul Volcker na Reserva Federal. O acordo visava então combater os défices gémeos da economia americana – balança das transações correntes e défice público, através de uma abordagem que depreciava o valor do dólar e sustinha a entrada de capitais no país, tornando a dívida americana mais sustentável.

A síntese do economista Torsten Slock, citada por Tooze, pareceu-me sugestiva para explicar o racional desse acordo e a sua putativa reedição nos tempos atuais:


Na entrevista ao The Ezra Klein Show, Gillian Tett começa por mencionar que a movimentação da administração Trump arranca de uma contradição insanável: por um lado, pretende-se que o dólar se mantenha como moeda de reserva global, assegurando por aí o papel dominante do sistema financeiro baseado no dólar; por outro lado, pensam que o dólar esta sobre apreciado, já que o estatuto de reserva mundial leva as pessoas a procurar dólares, enfraquecendo indiretamente a competitividade americana e adiando a dimensão industrial do MAGA (Make America Great Again). Não esqueçamos que o estatuto de reserva mundial é conseguido através de um endividamento gigantesco: o serviço da dívida anual ultrapassa já o orçamento anual de defesa americano. Espantoso, não?

O problema é que o modelo imposto pela administração de Trump é tudo menos uma negociação devidamente explicada aos seus parceiros mundiais. A disrupção começa por aplicar a ofensiva dos direitos aduaneiros a países amigos como o Canadá, o México e a Europa. Subjacente à disrupção provocada, está a assunção de uma perspetiva mercantilista e a visão de um poder hegemónico que quer controlar não apenas o mundo do dinheiro, mas alcançar também o poder político e cultural (neste caso, aniquilando tudo o que poderia ser perspetiva alternativa e não de senso comum).

Por detrás de toda esta ofensiva, é difícil entender quem no âmbito de cada medida concreta domina a génese da mesma, se o grupo de nacionalismo populista americano à la Steve Bannon, se os tecno-libertários da seita de Elon Musk, se o grupo de congressistas Republicanos mais alinhados com Trump. Esperar que as contradições entre estas tendências implodam consensos talvez seja excesso de ingenuidade.

Alertados pelo comportamento negativo da bolsa americana, os pressupostos ideólogos de Trump vêm avisando que a pretendida desintoxicação da economia americana pode passar inclusivamente pela ocorrência de uma recessão e que o mercado de títulos é hoje mais relevante que a Bolsa.

O processo de branqueamento em curso manifesta-se, por exemplo, na interpretação de que a aposta na guerra dos direitos aduaneiros constitui uma forma subtil (?) de deslocar o poder da política monetária do Banco da Reserva Federal (até aqui independente e não tem sido clara a posição de Trump em relação a esta realidade) como forma de transferência de riqueza. Tenho para mim que o impacto atribuído à guerra dos direitos aduaneiros está claramente sobrevalorizado, tanto mais que em muitos domínios da reindustrialização pretendida os EUA já perderam essa guerra a favor de uma impetuosa terciarização. E ao contrário dos termos do Mar-a-Lago de 1985, o mundo que Trump atacou está bastante menos acomodatício e recetivo a acordos.

Mas a contradição fundamental persiste: o estatuto de reserva mundial do dólar é indissociável do endividamento gigantesco americano. Não parece haver acordo que rompa esta relação indissociável. Por onde romperá então?

Esta parece-me ser a questão essencial.

Last but not the least, Martin Wolf tem carradas de razão quando duvida da capacidade de Trump manter um acordo que tenha celebrado: “Ele, no fim de tudo, abandonou a Ucrânia, colocou em dúvida o seu compromisso para com a NATO e montou uma operação de assalto ao Canadá. Os dois últimos são evidentemente os mais importantes. Será a sua administração capaz de fazer um acordo em que alguma pessoa ou país mentalmente sãos pode confiar? Penso que não.”

(1) Para os leitores mais curiosos, há quem refira um artigo de novembro de 2024 de Miran como um prenúncio do que a administração Trump pretende fazer. Não é um artigo de leitura fácil e parece confundir relações contabilísticas que são meras tautologias com relações causais.

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