(Se há zona da Cidade com a qual me identifico afetivamente é o conjunto formado pelo Carmo, Praça de Carlos Alberto, Cordoaria, edifício da Reitoria da UP, Praça Guilherme Gomes Fernandes, início de José Falcão e Rua da Fábrica. A ligação é afetiva, pois além de cinco anos no inclassificável sótão da então Faculdade de Ciências, onde funcionava a Faculdade de Economia do Porto,.a ligação vem de muito antes, já que ainda aluno de escola primária e do liceu D. Manuel II, hoje Rodrigues de Freitas, passei infindáveis dias de fim de semana no restaurante do meu avô, o prestigiado Botas, na Travessa do Carmo. Por isso, conheço bem as mesas do Avis e do Estrela, da antiga Primar e da hoje extinta pastelaria Invicta, estando hoje limitado à minha experiência de cliente da barbearia Invicta, fronteira à Igreja e Ordem do Carmo. Como sabem, a sexta-feira é a minha entrada antecipada de fim de semana, em transição não muito acelerada para a vida inativa e habituado ao princípio da manhã para começar a trabalhar dedico regra geral o princípio das manhãs de algumas sextas-feiras para incursões nessa Cidade de que sou próximo, designadamente para transformar a ainda vasta cabeleira em algo de mais apresentável. Por isso, faz parte desse ritual a minha revisitação inevitável das quatro bancadas das esculturas de Juan Muñoz no Jardim da Cordoaria e não há dia que novas interpretações essa passagem não me surjam à cabeça. Aquela atitude de distensão, despreocupação e riso das personagens ali representadas, ninguém conhece o mistério daquele riso que em alguns dias soa a algo de insolente, parece-me ser uma boa e acutilante metáfora das sensações que os tempos e acontecimentos mais recentes me suscitam. Apetece-me por vezes comungar da reação daquelas personagens notáveis que Juan Muñoz trouxe à Cidade. No mundo e no país de hoje há gente tão risível, rasteira e lamentavelmente pequenina a entrar-nos pela casa adentro nos jornais e na televisão que apetece insolentemente rir como expediente para a preservação do equilíbrio mental.)
Sou dos que penso que as esculturas de Juan Muñoz deveriam ter no Jardim da Cordoaria um outro tratamento de enquadramento. Não vou entrar, até porque não sou um estudioso nem um fundamentalismo do rigor histórico dos jardins públicos, no debate que teve o seu tempo e que foi considerado por alguns um atentado de arquitetura paisagista ao espírito romântico da Cordoaria. Cada vez tenho mais dificuldade em compreender o que é o espírito inalterável das marcas urbanas, não sou e nunca serei um patrimonialista da preservação a todo o preço, interrompendo artificialmente a passagem do tempo. Mas sou sensível ao estado larvar da degradação do espaço público e acho que a conservação, limpeza e arranjo da Cordoaria deveriam ser preocupações mais salientes do executivo municipal. A começar pelo lago.
Por tabela, o enquadramento das sugestivas esculturas de Muñoz é fortemente penalizado e dói-me que a Cidade não saiba valorizar o que é a expressão criativa de um artista como Juan Muñoz. Diria que algumas daquelas inquietantes personagens estarão a rir do estado do espaço público que passou a ser a sua morada para nosso gozo e usufruição.
O período também é mau, já que as obras do Metro do Porto continuam a ocupar o belo espaço central entre a Reitoria e o Café Piolho que, embora algo turistificado, continua a resistir. A transição da estrutura comercial de toda aquela zona que marca a minha afetividade com a Cidade também não ajuda, mas o que é espantoso é que os turistas não desarmam e conduzidos sabe-se lá por que guias e fontes de inspiração continuam a assegurar a animação necessária para que aquele espaço se mantenha minimamente vivo. Alguma reabilitação urbana vai acontecendo e passando em romagem de afetos pela Travessa do Carmo reparei que até o Botas do meu avô, mais propriamente a parte superior de habitação em que os meus avós maternos viveram tantos anos, está em reabilitação total e até com bom aspeto.
O tempo talvez não esteja para saudosismos melosos, mas antes para o riso insolente das inquietantes figuras de Muñoz.
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