quarta-feira, 5 de março de 2025

THE SHOW MUST GO ON

 


 (Não é por masoquismo indesejável que recomendo a visualização da longa apresentação que Trump realizou no Congresso americano para dar conta do seu arranque de governação. Não é necessário visualizar toda a sessão, isso já seriam requintes de sadomasoquismo, mas vale a pena ver durante alguns minutos para presenciar o festim que reina entre as hostes Republicanas, completamente domesticadas e fascinadas pela imagem de poder absoluto que o presidente irradia na sua torrente verbal. É importante darmo-nos conta daquele ambiente de entusiasmo destruidor que transparece daquelas imagens, num tempo em que não é ainda claro se os Democratas mais moderados estão por conselho dos especialistas de comunicação a fazer-se de mortos ou se os mais radicais e militantes estão ou não a preparar a resistência. Alguns apresentaram na sessão cartazes de protesto e outros abandonaram a sala recusando-se a fazer parte daquele festim. Se tivermos em conta a exceção da reação verbal impetuosa de algumas elites, caso do cientista político Larry Diamond de Stanford cuja voz trouxe a este espaço em post anterior, tenho para mim que a esperança de melhores dias para muitos americanos está no possível, mas não certo, ricochete provocado pelos dois principais eixos de intervenção da revolução trumpiana – a guerra comercial global que a política de direitos aduaneiros irá necessariamente provocar e o desmantelamento de estruturas federais que mais tarde ou mais cedo irão refletir-se em agravamento de condições de vida de muitos americanos...)

A análise racional e teoricamente fundamentada destas duas frentes de intervenção permite antever que o efeito ricochete destas medidas é mais do que plausível. Assim sendo, a acreditar nesta fundamentação, haverá no tempo necessariamente uma altura em que tais medidas vão agravar as condições de vida dos americanos em geral, independentemente de terem ou não votado em Trump. Se excetuarmos os muito ricos que estarão sempre bem e a gozar as benesses da descida de impostos que os Republicanos vão engendrar para confortar a sua base de financiamento, toda a restante população acabará por amargar os efeitos inflacionistas dos direitos aduaneiros às importações e por sentir na pele o desmantelamento de agências federais, a começar pela massa de desempregados que esse desmantelamento tenderá a provocar.

Mas em meu entender convém relativizar o impacto desses efeitos-ricochete. Uma das razões é o ambiente de festim que decorre das imagens a visualizar no Congresso. O clima é triunfal e essa ambiência tende a favorecer o diferimento da perceção dos impactos.

A outra razão prende-se com a própria dimensão temporal dos efeitos-ricochete.

No caso dos direitos aduaneiros, não é possível a priori antecipar se os americanos optarão por continuar a consumir ou a investir os produtos agora taxados (e assim a pressionar ascendentemente os seus preços em dólares) ou se, pelo contrário, irão abdicar desse consumo, estimulando indiretamente a produção nacional dos mesmos, mesmo num cenário idílico de que todos os produtos taxados tenham alternativas credíveis e viáveis na economia americana, o que está longe de acontecer como aliás o primeiro mandato de Trump o evidenciou com clareza.

No caso da sanha persecutória das agências federais e da desregulamentação, a agressividade do discurso é a de combater as burocracias não eleitas, argumento que tem uma ampla cobertura cultural nos EUA, o que tenderá durante algum tempo a diferir as perceções quanto ao impacto nas condições de vida, pois grande parte dos efetivos dessas agências se distribuem por largas faixas do território e não apenas nos gabinetes em Washington.

Last but not the least, convém termos em conta que quanto maior for o atraso com que os efeitos-ricochete venham a fazer-se sentir pior para favorecer o recuo das medidas que os provocam.

A guerra comercial global vai ser uma longa indeterminação e a administração Trump move-se no caos como peixe na água. Esse ambiente de guerra comercial é o pior possível para a estabilização dos horizontes dos projetos de investimento, sendo de estimar que mais tarde ou mercado os mercados bolsistas comecem a acusar negativamente esse ambiente de incerteza. Como em simultâneo, a administração pretende matar todos os ensaios de política industrial concretizados pela administração Biden, não é de prever que a indústria nacional americana vá tirar partido da proteção aduaneira para se reerguer nas cadeias de valor internacionais.

Quando à sanha de destruição das agências federais, a interrogação está em saber quanto tempo o respaldo ideológico das medidas (combater as burocracias não eleitas) irá prevalecer sobre a perceção dos efeitos negativos reais.

Por isso, em resumo, cá por mim não exageraria no otimismo dos efeitos-ricochete das medidas. A clarividência que algumas das elites americanas estão a revelar, denunciando o processo de destruição gratuita em curso não nos deve servir de consolo, já que a esmagadora maioria dos apoiantes de Trump (não os que beneficiam diretamente das suas medidas) despreza essas elites e é incapaz de compreender sequer as suas mensagens de alerta. Sim, Trump teve respaldo democrático, por muito que isso nos custe, um valente sapo, a engolir.

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