(As capas do Economist marcam, regra geral, a opinião pública internacional, tamanha é a difusão da revista por todo o mundo e que poder comunicacional oferece esse reconhecido poder de disseminação e notoriedade. Mas todas as semanas as capas têm ainda um outro interesse, que consiste em descobrir as razões editoriais que levam a revista a optar por uma capa para a edição na Europa e uma outra para a edição no mundo não europeu. É o caso da passada semana em que na edição europeia se optou por uma capa que destaca o crescimento da herançocracia, o peso da riqueza herdada, e na edição mundo se optou por uma capa mais agressiva para salientar o estilo mafioso, o universo dos Dons, que caracteriza a nova ordem mundial, com o gangsterismo americano à cabeça. Os dois temas estão obviamente ligados, já que a profunda desigualdade potenciada pela já referida herançocracia reproduz a profunda desigualdade e a cleptocracia, abrindo caminho à luta mafiosa pelo controlo do poder global. A destruição do chamado Ocidente deve-se a essa unidade ficar submersa no mundo em que os diferentes Dons chegam ao poder, bem representadas nas figuras a negro que povoam a capa da edição mundial da revista...)
A minha aprofundada leitura do comentário político a nível mundial, com destaque para a gente que é mais lida nos EUA, permite-me concluir que a linguagem se está a desprender das inibições mais ou menos respeitosas, assumindo cada vez mais agressividade nos termos utilizados e encarando a nova administração americana não como um exotismo circunstancial, mas antes como uma real ameaça.
Assim, por exemplo, Noah Smith que está longe de ser um analista radical, mas antes bastante moderado, não tem dúvidas em classificar o novo status quo em três pontos, cada qual o mais virulento: “(1) Está agora claro que os EUA escolheram um conjunto de leaders que são profundamente imorais e relativamente aos quais não podemos esperar que obedeçam a quaisquer normas de decência comum; (2) a política externa americana mudou dramaticamente desde 1945 até 2024; os EUA são agora efetivamente um estado gangster (o bold é da minha responsabilidade); (3) o encontro de Trump com Zelensky enfatiza também como a administração americana é desajeitada e como já começou a cometer erros”.
O Economist retoma essa agressividade, quando considera que o novo sistema de governação mundial povoado de diferentes Don Corleones assenta numa nova hierarquia da qual os EUA são o número 1, com uma nova sinergia entre o poder de Estado e o mundo dos negócios. A velha distinção que muita da esquerda em Portugal ignorou, entre “pró-market” e “pró-business”, não compreendendo que se pode ser “pró-market” sem ser necessariamente “pró-business” está agora totalmente esmagada com a situação em que o poder se confunde com o mundo dos negócios mais ou menos gangsteriano.
Teresa de Sousa, com a sua lucidez analítica, compreendeu bem o momento e assina uma crónica no Público com uma subtil relação entre o mundo do Padrinho e o que reina hoje na Casa Branca.
Poderíamos prolongar esta análise destacando outras dimensões como a ameaça às liberdades individuais, sobretudo na linha que Matthew Iglesias desenvolve acertadamente de saber se “é possível manter princípios como a liberdade individual e os mercados livres sem um compromisso de respeito pela lei e Estado de Direito”.
Ou seja, demorou algum tempo, mas a linguagem e a inibição começaram finalmente a desprender-se. E aos que continuam teimosa e ingenuamente a acreditar que tudo isto será circunstancial e a desvanecer-se, alerto para que o gangsterismo tem mecanismos de reprodução do poder que o podem dilatar generosamente no tempo. A história americana é relativamente recente, mas existe ainda memória da prática desse modelo de organização social e para os que tenham lapsos da memória há sempre a possibilidade de rever a saga do Padrinho de Francis Ford Coppola.
Nota complementar
Estou estupefacto com uma certa esquerda portuguesa que sempre considerou o imperialismo americano como o principal inimigo e que agora está tontamente boquiaberta com o gangsterismo americano, claramente inibida no seu entendimento.
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