quarta-feira, 26 de março de 2025

O MERCANTILISMO, AÍ DE NOVO

 


(Que o mundo está de pernas para o ar, já ninguém o ignora, só mesmo gente muito distraída ou então gente obcecada pelo livre-câmbio, que continua a tomar a realidade pelo mundo das suas próprias convicções, em vez de as rever face ao que se perfila diante dos nossos olhos. Sobretudo nos anos 80 e 90 do século passado, enraizou-se a ideia de que o comércio mundial era um jogo de soma positiva em que todos podiam ganhar. Claro que mesmo nesse contexto, os ideólogos do livre-câmbio sempre ignoraram que esses ganhos do jogo de soma positiva podiam ser fortemente desiguais e também que, implícitos nesses ganhos, podiam estar enraizadas dinâmicas diferenciadas de longo prazo. As vantagens comparativas de longo prazo de uma dada especialização não eram assim indiferentes à eficiência dinâmica das apostas de cada país, já que o potencial de inovação de uma dada especialização não é necessariamente uniforme. Mas de qualquer modo, esse mundo de soma positiva, mesmo que sujeito a desigualdades estruturais de longo prazo, parece estar em agonia profunda, senão mesmo destruído, com uma profunda indeterminação sobre o modelo futuro para a economia mundial. Por outras palavras, a chamada globalização neoliberal já era e existe já investigação diversificada sobre o mundo que vem aí. Esta tentativa de antecipação do futuro para fundamentar a adaptação estratégica dos países ao novo contexto global anda paredes meias com a futurologia económica e geopolítica, pelo que é saudável tentar escapar a essa tentação de fuga para a futurologia. A melhor forma de o evitar é assumir a história do tempo longo como o grande referencial do nosso pensamento, pensar com inteligência o passado para discernir o que pode ser o futuro, mesmo que estejamos em tempos de incerteza dinâmica, ou seja, o mundo da incerteza em que as probabilidades e o cálculo atuarial pouco nos podem ajudar. Economistas como Branko Milanovic estão bem apetrechados para esse exercício e será uma vez mais com recurso à sua fina intuição que abordarei o assunto, até porque está anunciada para novembro de 2025 uma nova obra do autor – The Great Global Transformation: National Market Liberalism in a Multi-polar World, a publicar pela Penguin’s/Allen Lane, que será seguramente um acontecimento editorial a marcar este ano de todas as provações.)

O exercício reflexivo que Milanovic nos propõe é curiosamente desenvolvido no âmbito de uma recensão crítica de uma obra recentemente publicada, de edição francesa da Flammarion, designada sugestivamente de “Le Monde Confisqué - Essai sur le capitalisme de la finitude (XVIᵉ - XXIᵉ siècle)”, de autoria de Arnaud Orain. As palavras “confisco” e “finitude” são cruciais para a discussão que vou tentar desenvolver.


Fiel à tradição do tempo longo, percebe-se que Orain considera que se olharmos para os últimos quatro séculos de evolução do capitalismo veremos diferentes ciclos longos e profundos ajustamentos de evolução à medida que tais períodos se sucedem. A palavra mercantilismo vem naturalmente à baila, porque precisamente o mercantilismo é a velha corrente económica que parte do princípio de que a economia mundial é um jogo de soma zero, no qual por conseguinte os ganhos de uns são inevitavelmente perdas de outros. O mercantilismo interpreta assim o capitalismo como uma forma de comércio armado ou guerreiro. Segundo Orain, o período em que nos encontramos seria uma reedição, com diferenças é óbvio, dos períodos dos séculos XVII-XVIII e de 1880 a 1945. A ideia de comércio armado ou guerreiro significa que a economia mundial se encontra em conflito permanente, em que a força das armas e de outras formas de coerção de países inspira e organiza as políticas comerciais externas dos países que procuram posicionar-se do lado dos ganhos e não do das perdas. A visão guerreira do comércio mundial implica naturalmente o controlo das condições de transporte das mercadorias, especialmente das rotas marítimas, a negação da ideia de cadeia de valor fragmentada a nível mundial, integrando verticalmente produção e comércio e a luta incessante por matérias-primas e alimentação e solo, com destaque para as infraestruturas portuárias e de entrepostos.

Convém referir que um dos aspetos não referenciados por Orain e Milanovic é o tratamento do crescimento dos serviços, em relação aos quais os contributos já aqui citados do economista Richard Baldwin (por exemplo aqui) até há pouco tempo estavam a escapar à estagnação das trocas internacionais. A imaterialidade dos serviços suscita especiais desafios ao dito comércio guerreiro ou armado e merece por isso uma discussão futura. Ou seja, podemos questionar que lugar haverá para a luta pelos mares e rotas marítimas e pela disponibilidade de solo num mundo em que a componente dos serviços se sobrepõe ou, pelo menos, mitiga a estagnação do comércio mundial de bens finais e intermédios.

Ignorando para já esta questão dos serviços, é certo que se acompanharmos de perto a evolução da política comercial externa chinesa rapidamente nos apercebemos que ela segue de perto as orientações mercantilistas. Primeiro, à sua superioridade no comércio de manufaturados rapidamente se juntou a perspetiva do controlo de rotas navais e terrestres, com por exemplo a participação na obra e no financiamento pela China de grandes infraestruturas portuárias e de entrepostos pelo mundo de influência chinesa. Segundo, as divisões entre marinha de guerra e comercial passam a ser distinções mais ténues e vários incidentes em diferentes mares e oceanos entroncam com esta proximidade.

Onde me parece que a intuição analítica de Milanovic está certa é na sua critica ao conceito de capitalismo de finitude assumida por Orain. O historiador francês invoca o conceito de finitude para explicar as razões da viragem mercantilista a que o mundo parece sucumbir. Orai explica a viragem invocando a finitude dos recursos naturais como razão fundamental para que os países tivessem compreendido que o jogo de soma positiva não é já mais possível e que no jogo de soma zero que temos de ganhar à custa de alguém. Acho plenamente que Milanovic tem razão quando afirma que não foi uma descoberta recente de que a finitude física dos recursos fez perceber que não haveria ganhos para todos, mesmo que eventualmente desiguais. De facto, a descoberta é outra e está associada à emergência da China e de todo o mundo asiático. Citemos que é mais direto e mais correto: “O crescimento da China, o novo e grande ator na cena internacional, com um sistema político distinto do Ocidente constitui um desafio hegemónico. Mantendo a globalização no modo neoliberal, o Ocidente compreendeu que isso poderia significar o eventual domínio da China. A perceção do declínio ocidental (se nada entretanto mudar) levou o Ocidente a uma posição mais radical e belicista de que o mundo é de facto visto como finito porque “se há mais para a China há menos para nós”.

Em resumo, a China não é um elefante na sala do comércio internacional apenas pela sua volumosa dimensão. É-o também porque exerce o seu domínio de parte das cadeias de valor através de um regime político que embora ofensivo dos direitos humanos lhe assegura uma outra eficácia de decisões. Penso que o papel de Deng Xiaoping na viragem económica da China deverá ser estudado com maior profundidade, tamanha foi a influência no que estamos a analisar. Entretanto, MiIanovic utiliza a categoria “Ocidente” de modo global e homogéneo, mas as mais recentes posições da administração Trump vieram mostrar que essa categoria é mais problemática do que pensávamos. O que parece evidente é que as relações entre democracia e mercado que dávamos por adquiridas estão em profunda mutação. O meu amigo galego Professor Fernando Laxe, Catedrático da Universidade da Corunha e alguém que pensa sempre com muita lucidez compreendeu bem esse problema e escreveu-o em crónica muito recomendável na Voz de Galicia, a quem vou buscar o cartoon que abre este post.

Como é típico dos ciclos longos não sabemos qual vai ser a duração deste ressurgimento do mercantilismo e das paredes meias erigidas entre belicismo comercial e militar. A Europa está sujeita a um sanduíche de rolos compressores que resultam do elefante na sala chinês e da deriva americana. Sem abandonar os esforços diplomáticos e de união possível entre os seus membros e tratando de tratar a preceito os cavalos de Troia que foram surgindo no seu interior (penso que a União Europeia vai amargar os efeitos da sua tibieza (1) em tratar a tempo as derivas antidemocráticas que se foram anunciando sem pudor), não resta senão à Europa encontrar uma resposta ao tal “capitalismo de finitude” de que falam Orain e Milanovic. Mas seguramente que não será apenas com salamaleques diplomáticos que iremos lá e isso talvez deva ser tido em conta na escolha do futuro Ministro dos Negócios Estrangeiros para o governo que brotar das eleições de 18 de maio.

(1) Ver nesse sentido o excelente Tom Theuns, Protecting Democracy in Europe - Pluralism, Autocracy and the Future of the EU, Hurst, Londres, 2024

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