sexta-feira, 28 de março de 2025

QUANDO CHEGAMOS À MADEIRA?

Susana Peralta (SP) é uma economista da nossa praça que tem vindo a ganhar notoriedade pública crescente por via de intervenções bastante assíduas na comunicação social falada ou escrita. Não a conheço de todo e, devo confessá-lo, algumas das suas aparições em eventos em que eu também participei deixavam-me algumas dúvidas, quiçá injustificadas, quanto à seriedade e robustez do seu trabalho, como foi o caso de uma situação já distante em que se discutiam as questões regionais e ela me pareceu mais do tipo que aqui a Norte costumamos apelidar de "espirra-canivetes”. O tempo e as suas intervenções em vários momentos foram-me demonstrando quanto as primeiras impressões são perigosas por excessivamente gratuitas e objetivamente pouco fundamentadas (mesmo apesar de o meu “cheiro” raramente me enganar, digo eu). E assim passei a apreciar SP, quer pela sua dominante lucidez analítica quer pela corajosa frontalidade que tem vindo a revelar em várias tomadas de posição político-económicas. Vem toda esta lengalenga a propósito da oportunidade que SP inocentemente me concedeu com a publicação de um artigo interessante e importante na sua coluna do “Público” desta Sexta-Feira (“Paraíso fiscal, inferno democrático”); não que tal já não pudesse ter ocorrido com outros mas porque a profunda eficácia deste a tal me impeliu de modo desenfreado.

 

O tema, especialmente tempestivo, é o da Zona Franca da Madeira (ZFM). E a síntese do seu conteúdo pela própria diz quase tudo: “O embuste da Zona Franca da Madeira não se explica por uma ingenuidade enternecedora dos responsáveis políticos da região, mas por uma promiscuidade de interesses apoteótica”. O historial que nos deixa é preciso, desde a sua criação em 1980 até à atualidade, passando pelo facto de a mesma se ter tornado num dos primeiros paraísos fiscais sujeitos aos chamados requisitos de substância (quer no âmbito dos condicionalismos resultantes das negociações de adesão de Portugal à CEE, quer na sequência de subsequentes imposições da Comissão Europeia, quer no quadro da exigência por parte da Troika que nos tutelou de que “as empresas sediadas na ZFM contribuíssem efetivamente para a economia regional, criando postos de trabalho”). Assentando a sua original contribuição num excelente artigo, assinado em coautoria e resultante de uma investigação que se debruçou sobre o mercado de trabalho na ZFM (de acordo com a Troika, “o montante de lucros que as empresas podiam declarar na ZFM dependia do número de trabalhadores, para garantir que fossem gerados na região”), SP resume lapidarmente o essencial do output da pesquisa que conjuntamente empreendeu, quer no tocante ao período anterior à reforma de 2012 quer quanto ao período posterior, matéria chocante para que remeto o leitor que de tal se queira informar.

 

Concluo com mais três dados factualmente relevantes que SP nos fornece. Cito a própria:

· Em janeiro, o Tribunal de Justiça da União Europeia negou o recurso interposto pela Região Autónoma. Foi a última peripécia da longa contenda judicial que opõe o governo regional às instâncias europeias devido à má aplicação da reforma de 2012, não só na falta de cumprimento das regras relativas ao emprego, que a nossa investigação analisa em detalhe, como na aplicação da simpática taxa de IRC a lucros oriundos do estrangeiro, quando deviam ser gerados na região. A Comissão Europeia começou a investigar em 2018 e decidiu, em 2020, que o Governo português devia exigir às empresas os benefícios de que se apropriaram ilegalmente, num montante total de mil milhões de euros. Depois, começou a saga judicial.”

·  A renovação [da gestão da ZFM pelo Grupo Pestana, que durou 30 anos e foi interrompida em 2021] de 2017 foi decidida pelo Governo de Miguel Albuquerque dois meses depois de o Grupo Pestana ter comprado uma exploração hoteleira que pertencia ao presidente do governo regional e à sua esposa e enfrentava dificuldades financeiras, resolvidas com a venda. Passadas duas semanas, o hotel recebia, das mãos do Governo de Albuquerque, a menção de ‘Utilidade Turística Prévia’, que lhe dá acesso a benefícios fiscais. Esta negociata está no cerne do processo por corrupção no qual Albuquerque é arguido.”

· Em reação à decisão do Tribunal de Justiça da UE de janeiro, Miguel Albuquerque apelidou de situação absurda ‘considerar que empresas que trabalham no mercado internacional tinham de ter os postos de trabalho sediados na Madeira’. Portanto, o agora reeleito presidente do governo reconhece que a ZFM não serve para criar postos de trabalho na Madeira. Miguel Albuquerque lá saberá para que serve a ZFM.”

 

A Região Autónoma da Madeira foi a eleições no Domingo e Albuquerque quase atingiu uma maioria absoluta. Fazendo abstração da inépcia do Partido Socialista, quer proveniente do seu candidato Cafôfo quer visível na forma como a sua liderança lidou com o processo eleitoral antes e depois, o certo é que aquele vencedor foi um dos atingidos pela megaoperação policial de 24 de janeiro de 2024 (um avião da Força Aérea com 140 inspetores da Polícia Judiciária e 10 peritos da polícia científica do Continente a aterrarem no Funchal, aos quais se juntaram dezenas de inspetores da PJ locais para realizarem centenas de buscas), tendo sido então constituído arguido e ficado a aguardar até agora que alguém o chamasse para ser interrogado. Este estado deplorável da Justiça em Portugal cruza-se gritantemente com as extraordinárias e por vezes constrangedoras tropelias políticas de Albuquerque (vale praticamente tudo, dentro e fora do PSD) e com as revelações de SP que, decerto por defeito, também ajudam a evidenciar quanto a Madeira é um território democraticamente especialíssimo (e assaz estável!) dentro de um País já de si igualmente muito especial... 

(cartoons de Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

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