(É de todos conhecido o facto inquestionável de que a administração Trump veio baralhar a confiança europeia na relação euro-atlântica, não apenas do ponto de vista das implicações que isso traz quanto aos compromissos sobre a NATO, mas também na perspetiva do posicionamento geopolítico e geoestratégico do bloco europeu no mundo. Sabemos também que as implicações sobre as debilidades europeias da destruição do multilateralismo são extremamente gravosas para o desejado ressurgimento europeu. Pelo que é conhecido de afirmações diplomáticas públicas, sabe-se que, pelo menos no plano estritamente formal, a China tem sido entre as grandes potências aquela que tem mantido um discurso de preservação do multilateralismo. A ponta de indeterminação e dúvida que paira sobre a sinceridade diplomática de Pequim decorre da ambígua posição chinesa relativamente à Rússia de Putin. Além disso, a ameaça que paira sobre Taiwan traz também problemas de confiança. Neste contexto, não espanta que cada vez mais se coloque a questão de saber qual a posição estratégica mais correta que a União Europeia pode assumir face à China. O jornalista Tony Barber do Financial Times na newsletter Europe Express regressa ao tema, sobretudo no contexto de que todos os pressupostos benignos e magnânimos sobre a posição dos EUA de Trump estão obviamente em profunda, não sabemos se definitiva, revisão. O que parece admissível concluir é que, sem ignorar as cautelas que o regime chinês impõe a qualquer um, a China é hoje uma potência mais confiável do que os EUA de Trump e a Rússia de Putin. O absurdo da posição americana, mais propriamente de Vance e de Musk, de apoiar forças de extrema-direita na Europa, como o Rassemblement National de Le Pen e a AfD alemã, que são profundamente hostis ao modelo cultural e de sociedade alemão, exemplifica bem a não confiabilidade da diplomacia americana atual. Por isso, sem me entusiasmar por aí além com a ideia, a questão de discutir qual o posicionamento que a Europa deve manter em relação à China é, em meu entender incontornável, ainda que não tenha resposta fácil e se calhar unívoca. Entretanto, esse debate não pode ignorar a necessidade do pragmatismo de considerar qual o ponto de partida para essa reflexão. Não se trata, assim, de imaginar no abstrato qual o posicionamento mais correto face à China, mas de partir do estado concreto das relações entre a Europa e a China no contexto atual de fratura da economia global. É para esse debate que este post pretende contribuir.)
Queria começar sublinhando uma das grandes implicações de assumirmos uma perspetiva de tempo longo (e para isso também a China é mais confiável), em detrimento de análises curto-prazistas, que se esgotam na espuma dos dias. Fui, devo afirmá-lo sem hesitação alguma, dos que considerei que a entrega de alguns dos nossos ativos empresariais ao investimento chinês, concretizada antes de estar assumido um enquadramento estratégico para as privatizações impostas pela Troika colocou então a economia portuguesa numa posição de grande vulnerabilidade face ao capitalismo de Estado autoritário e repressivo. Mas, ironia da história, quando reavaliarmos essas opções de “rendição” ao capital das grandes empresas chinesas à luz de um tempo mais longo que integre na análise a disrupção americana provocada na relação euro-atlântica, talvez sejamos mais moderados nessa apreciação. Talvez por linhas indevidas e bastante tortas, a posição portuguesa e a europeia tenham mais margem de manobra para encontrar um posicionamento capaz de responder proativamente à disrupção americana.
Ainda há dias, a falência da empresa sueca Northvolt, a grande esperança europeia para a aposta nas baterias elétricas de suporte aos veículos desse tipo, veio colocar de novo no centro do debate a posição europeia face ao fornecimento chinês de baterias elétricas. Por ironia circunstancial, é nesse mesmo domínio que se anuncia o avultado investimento chinês para Sines, que se antevê, a ser concretizado em toda a sua plenitude, com enorme repercussão nas relações inter-industriais portuguesas em matéria de descarbonização da economia e avanço das chamadas tecnologias elétricas.
O gráfico que abre este post é de consulta obrigatória para caracterizarmos sumariamente o ponto de partida da relação Europa-China. O gráfico é eloquente, pois evidencia que a China é o principal parceiro comercial das importações europeias e apenas o terceiro mercado de destino das exportações europeias. O imediatismo truculento de Trump diria que os chineses nos estão a tratar mal e por isso deveriam ser taxados.
O que está em causa neste gráfico é o surto de competitividade chinês que rapidamente inundou os mercados europeus não só de tecnologia, mas também de produtos que integram o coração do modelo de consumo das classes médias e populares europeias, sobretudo nos países como Portugal em que os baixos salários influenciam decisivamente a norma de consumo possível.
Ainda não compreendi totalmente os fumos de corrupção que foram identificados no Parlamento Europeu em torno de opções que mexem com a Huawei e, por isso, toda a cautela será pouca para desenhar o reposicionamento europeu face à China. Mas, não ignorando essas cautelas, o que me parece é que face à perigosa disrupção americana e à falta de respeito dos seus principais personagens políticos relativamente à Europa, isso obrigará a que a União Europeia olhe o relacionamento com a China de outra maneira e sobretudo numa via não seguidista face às tontarias trumpianas. A superioridade chinesa em matéria de tecnologias elétricas não pode ser ignorada. Se os americanos estão tentados a mergulhar no caos e a ignorar essa superioridade é um problema que rigorosamente apenas lhes diz respeito. Se a Europa pretende consolidar posições nessa matéria e sem abandonar a pressão diplomática sobre questões elementares de direitos humanos, existem inúmeras formas de colaboração com o avanço tecnológico chinês nessa matéria. Se a administração Trump imagina que, por magia ou coação, os aliados que neste momento despreza serão seguidistas nas suas cruzadas comerciais contra os chineses estará bem enganada e rapidamente vai chegar à conclusão que a posição de dominância americana estará a ser fortemente questionada por todo o mundo.
Trump ignora que em tecnologia os rendimentos crescentes que colocam alguns países na dianteira são dificilmente combatíveis numa lógica estrita de mercado e de direitos aduaneiros. Até porque, ao decidir destruir tudo o que a administração Biden fez em termos de Chips Act (semicondutores) e de Inflation Reduction Act (descarbonização), abre excelentes oportunidades à União Europeia para de uma vez por todas se deixar de salamaleques em termos de política industrial.
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