(Por ironia do destino ou talvez por obra de alguém mais preocupado com os contextos em que estudos relevantes são apresentados, a apresentação pública do novo Governo, mais propriamente do recomposto Governo de Luís Montenegro coincidiu com a publicitação dos resultados do estudo sobre a pobreza de autoria de uma equipa da Nova Business School, em que se destaca o nome da Professora Susana Peralta. O estudo respeita ao Balanço Social de Portugal para 2024, envolvendo essencialmente dados de 2023, ou seja incorporando já o pós-pandemia e parte das consequências do terrível surto inflacionário que lhe sucedeu e que marcou significativamente a degradação material das condições de vida de muitas famílias portuguesas. Para lá do rigor e confiança de análise que o relatório transmite e o nome de Susana Peralta é suficiente para lhe assegurar boas condições de divulgação na comunicação social, o estudo é sobretudo relevante porque nas entrelinhas dos resultados que identificam melhorias nas principais variáveis multidimensionais da pobreza em Portugal está sobretudo a continuidade da revelação de que estamos perante um fenómeno de inequívoca dimensão estrutural. Embora ano a ano sejam identificáveis alterações de contexto que vão melhorando ou agravando a posição relativa portuguesa no quadro europeu, convém nunca perdermos de vista que as pessoas e as famílias não “comem” posições relativas, mas antes são sensíveis à dimensão absoluta do fenómeno. É ela que condiciona diretamente as condições de vida e as aspirações de futuro que essas condições “autorizam” as famílias a alimentar. E o que resulta do estudo da NOVA, aliás confirmando estudos anteriores similares com outras autorias, é que apesar das melhorias a dimensão estrutural do problema é preocupante e envolve uma percentagem de população que não estará longe dos 20%. É sobre essa dimensão estrutural que gostaria de refletir um pouco.)
De acordo com a sequência dos estudos disponíveis, além de ser visível a influência das transferências sociais na mitigação do problema, já que antes da incidência dessas transferências a percentagem de população abrangida pelos critérios da pobreza é significativa, importa também assinalar a sensibilidade da border line que define estar ou não em risco de pobreza.
Segundo o relatório da Nova BSE, em 2023 seriam necessários 3,5 mil milhões de euros para retirar todas as famílias da situação de pobreza, um valor que é estimado a partir do chamado rácio do hiato da pobreza, multiplicando esse rácio pelo limiar de pobreza e pela população do país. A erradicação da pobreza equivaleria, assim, a algo ligeiramente inferior do PIB português, suscitando toda a série de comentários, regra geral de sentido contrário – afinal custaria relativamente erradicar o problema ou então olhando esse valor como algo que exigiria uma vontade política e um desígnio nacional de grande expressão.
A situação descrita pelo referido relatório acentua também o facto do fenómeno ser mais grave entre os mais pobres dos que são considerados pobres, aliás com agravamento em 2023 relativamente a 2022. Em cerca de 15 anos, de 2008 a 2023, a intensidade da pobreza medida pela diferença relativa entre o limiar de pobreza e o rendimento mediano das pessoas em risco de pobreza quedou-se pelos 5%. Já a severidade da pobreza, que mede a desigualdade entre a população pobre aumentou ligeiramente de 2,1 para 2,3%.
Parece haver assim alguma incompressibilidade dos valores, o que aponta para dimensões claramente estruturais. Entre essas razões está a incapacidade da economia do país gerar níveis de produtividade e gerar salários compatíveis com situações de rendimento familiar acima do limiar da pobreza. É uma situação que persiste apesar do esforço das políticas sociais, designadamente das que têm podido contar com apoio dos Fundos Europeus e das próprias verbas de orçamento do Estado e dos orçamentos municipais no âmbito da política social de proximidade.
Esta incompressibilidade traz à sociedade portuguesa uma enorme vulnerabilidade, já que à mínima degradação das condições de rendimento das famílias o número de famílias que cai para baixo do limiar de pobreza aumenta.
Como é óbvio todo o esforço de qualificação dos adultos e de qualificação dos jovens que têm o azar de estar inseridos em famílias com o risco de pobreza à porta tenderá a melhorar a ascensão do rendimento dessas famílias (2 em 3 pessoas pobres só têm a educação básica), mas a progressão é, regra geral, lenta e não serve de tampão enquanto em situação evolutiva relativamente a qualquer sinal de degradação das condições em que o rendimento é habitualmente recebido.
Tal como o risco de pobreza ou de exclusão é calculado pelo EUROSTAT, não só a pobreza monetária (rendimento) o influencia, devendo ser acrescentado indicadores de privação material e social (o não acesso a circunstâncias básicas da vida – 11% de famílias nessa situação) e a intensidade laboral, variável em que as políticas ativas de emprego exercem um contributo muito relevante, diminuindo os períodos em que essa intensidade de participação no mercado de trabalho tende a descer (mesmo assim 1 em cada 4 famílias trabalha a tempo inteiro).
O que importa aqui destacar é a grande dificuldade das políticas públicas contribuírem para a redução da pobreza estrutural, a qual exige saltos significativos nas variáveis que a determinam. O que significa que qualquer bloqueio estrutural ao desenvolvimento económico do país se refletirá obviamente na persistência da chamada pobreza incompressível.
Por outras palavras, as melhorias incrementais nos valores dos indicadores do risco da pobreza não afastam a presença do fantasma da sua dimensão estrutural.
Penso cada vez mais que qualquer política pública que ambicione mudanças e desenvolvimento tem de ter presente em permanência esse tal fantasma e contribuir de qualquer modo possível para o erradicar.

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