(Algumas almas ingénuas pensaram que os danos da eleição de Trump para um segundo mandato seriam algo confinado ao território norte-americano e que a nível internacional a negociação transacional que lhe é atribuída mudaria as regras do jogo, mas poderia trazer ao mundo alguma estabilidade. Esta ideia peregrina foi rapidamente subvertida pelas evidências. Como referi em post anterior, alguém que é imprevisível por natureza não pode obviamente proporcionar a estabilidade desejada. Até à possível concretização de desfechos mais trágicos, o rodopio da instabilidade está definitivamente instalado. Claro que a soez agressão da Rússia à Ucrânia é anterior à vitória de Trump, mas atrever-me-ia a afirmar que a eleição de Trump estava inserida no conjunto de antecipações racionais que Putin elaborou para ousar avançar pela via da agressão a um país soberano à revelia do direito internacional. A extensão da instabilidade irredutível ao Médio Oriente, com o genocídio em marcha do povo palestiniano e a guerra contra o Irão perpetrada por Israel inserem-se nesse ambiente de antecipações do que Trump poderia fazer. Essa antecipação é mais importante do que saber se Netanyahu avisou ou não antes Trump do ataque ao Irão. A intensificação da guerra com o Irão que a participação ativa dos norte-americanos pode assegurar, sobretudo na perspetiva do possível ataque seletivo às instalações nucleares subterrâneas iraniana que só a tecnologia norte-americana pode assegurar, independentemente de poder ser bem ou mal-sucedida, não é mais do que a generalização do rodopio a uma zona do globo que tem “combustível” que baste para multiplicar infinitamente a incidência da guerra. É interessante discutir as razões de admitirmos hoje a possibilidade efetiva de envolvimento americano, em confronto com os juízos de improbabilidade que, por exemplo, há uma década poderíamos conceber. Mas não é apenas o rodopio de instabilidade que Trump veio trazer que pode explicar essa mudança de apreciação. Algo se terá degradado no poder de dissuasão que o Irão e o seu regime teocrático poderiam opor a essa possibilidade.)
Quando discuto a questão do Irão, costumo distinguir entre as estruturas fundamentais do regime teocrático dos Ayatollahs, ela própria uma estrutura complexa de camadas hierárquicas cujo fundamentalismo islâmico vai variando, da sociedade iraniana que vai resistindo à opressão religiosa fundamentalista, mesmo considerando que parte dessa resistência estará hoje fora do país, numa diáspora que espera melhores condições para um possível regresso. Mas neste caso do início das hostilidades, essa sociedade pouco ou nada poderá fazer, já que em matéria de segurança básica a pressuposta ausência de uma rede aprofundada de abrigos para a população a coloca numa posição de enorme vulnerabilidade.
O que parece evidente é que o poder de dissuasão que o Irão já teve, obrigando Israel ou outro qualquer agressor a ponderar bem a vantagem de iniciar hostilidades, está hoje substancialmente reduzido. Em parte, porque a estrutura de ajudas xiitas no exterior das fronteiras iranianas, o Hamas, o Hezzbolah, os Houtis no Yémen, milícias no Iraque e relações com o xiismo organizado existente na Síria do deposto Bashar al-Assad foi sofrendo o impacto seletivo da ofensiva israelita, dizimando forças, destruindo poder de agressão e obrigando a uma recomposição necessariamente lenta dessas forças. Mais do que integrar uma espécie de escudo alargado defensivo, essas forças faziam parte do já referido poder de dissuasão.
A morte sucessiva de altos responsáveis militares iranianos e o verdadeiro flop que os ataques iranianos a Israel de abril e outubro de 2024 representaram, expondo as fragilidades do seu poder de ataque com mísseis balísticos, completaram o enfraquecimento das suas ajudas de ascendência xiita e reduziram o poder de dissuasão que tanto caracterizou a posição iraniana nos conflitos do Médio Oriente.
Ora, nas condições em que o equilíbrio de forças do Médio Oriente estava alicerçado, qualquer redução do poder de dissuasão dos adversários de Israel tenderia a reforçar a onda manifesta de expansão territorial em que que os partidos apoiantes de Netanyahu estão realmente interessados.
A moratória que Trump se impõe a si próprio para decidir se entra ou não ativamente no conflito é ela própria de difícil entendimento, já que não acredito que essa decisão não esteja preparada há muito tempo.
Uma moratória para poder diluir a oposição interna MAGA ao envolvimento americano numa guerra com o Irão? Para viabilizar cedências do regime teocrático iraniano?
Face à imprevisibilidade de Trump, talvez seja um exercício espúrio e sem sentido.

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