sábado, 13 de dezembro de 2025

SOBERBIA POLÍTICA OU IMPRUDÊNCIA?

 


(Nos últimos dias a inspiração bloguista não tem abundado, a intensidade de trabalho não ajuda e o contexto político interno e internacional ou suscita comentários desabridos, registo em que tento não entrar, ou desincentiva o encontro com o ecrã em branco. É neste ambiente e na antecâmara de um concerto de Natal na Igreja da Lapa com Bach para massajar a irritação que me salta um tema para a reflexão, neste caso sobre a situação política interna, porque a situação internacional desanima qualquer um disposto a rejeitar a geopolítica das áreas de influência, organizada em torno dos mais fortes. É uma evidência clara que o momentum da ascensão de Trump está claramente em desaceleração, seja por diversos revezes político-legislativos que se têm observado, seja porque grande parte da população está a chegar aquele momento em que não se vive de discurso e propostas inconsequentes. Por isso, fico-me pela soberbia política do Governo, gerada quer por um PS fofinho quanto baste que estimula o ataque do Governo, quer por uma sensação protagonizada por Montenegro e os seus mais próximos, Hugo Soares e Leitão Amaro particularmente, segundo a qual as tendências que vêm de fora abrem caminho e reforçam a tal soberbia. Na influência do contexto internacional, não me refiro apenas ao estilo de governação que grassa por aí, mas também à maneira como a economia portuguesa é vista do exterior, com expressão máxima na já aqui tratada visão da revista The Economist sobre o desempenho mais recente da economia portuguesa.)

A soberba é uma palavra que tem origem no latim, superbia, que não significa nada mais do que arrogância. A soberbia política do atual Governo não resulta de pretender fazer reformas segundo o ideário político-ideológico que professa. Estaria no seu pleno direito de as promover, obviamente com a resposta e resistência democráticas de quem não acredita esse ideário, acaso a sua apresentação ao eleitorado que lhe concedeu a maioria relativa para governar tivesse integrado límpida e cristalinamente essas reformas e o seu alcance. Isso não aconteceu assim, designadamente no que diz respeito à revisão da lei laboral. A verdadeira história da decisão de apresentar uma proposta tão desequilibrada, sem fundamentos no estado da arte da economia portuguesa e com a arrogância de ter procurado dinamitar o diálogo na concertação social está por contar e só seguramente muito mais tarde saberemos o que gerou aquele desplante tão soberbo. Mais ainda não se consegue explicar a apatia com que o Governo e particularmente o primeiro-ministro (já que a ministra Ramalho não é propriamente um exemplo de empatia, antes de rigidez facial e de comportamento) reagiram ao alarido que o texto distribuído provocou. Alguma de coisa de grave se passou no relacionamento com a UGT.

Tenho para mim que este exemplo de soberbia política teve uma emergência cuidadosamente preparada. Durante algum tempo, o Governo piscou o olho descaradamente ao populismo mais imediato, com as questões da imigração e da nacionalidade. Já percebemos que esses devaneios pelo tema da pressuposta pressão imigratória correram mal para o Governo, pois a Comissão Europeia considera que o país não tem de modo algum essa pressão à perna e incluiu naturalmente Portugal nos países que têm de acolher imigrantes para atenuar o fardo pesado que outros países europeus, esses sim segundo a Comissão Europeia, estão a sentir com o fenómeno. Com esse piscar de olho ao populismo mais primário, pretendia o Governo concretizar a muito conhecida manobra de distração para fazer passar a mais desequilibrada reforma laboral dos últimos tempos na legislação portuguesa. Saíram-lhe mal as contas. Espertice, soberba política e arrogância é mais do que cocktail molotov.

A volatilidade mórbida do Chega é outra pedra no sapato. Ventura defende qualquer coisa para no dia seguinte defender o contrário, jurando fidelidade à nova inclinação, mas tudo é venal e volátil. O que comanda é o barómetro populista. Se Ventura estimar que chumbar a desejada reforma laboral e que a pressão para esse chumbo é favorável, dificilmente o Governo terá a vida fácil na Assembleia da República.

Lamentavelmente, o empresariado português, desde os grupos mais organizados até ao tecido de PME em que a aplicação das novas disposições legislativas seria mais trágica para a população trabalhadora, tem-se escondido por detrás de afirmações e avaliações redondas, não permitindo deslindar quais terão sido as pressões desenvolvidas para suscitar junto da ministra do Trabalho uma proposta tão desequilibrada. Aliás, nos tempos que correm, não é fácil discernir quem é o influenciador ideológico dos patrões. Terão Montenegro e os jovens turcos Soares e Amaro assumido o papel de oráculos do empresariado português, pensando que ganharia uns pontos na consolidação da sua maioria relativa?

A vida política é volátil e nunca se sabe o dia de amanhã … Terão assim pensado os oráculos?

 

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

ECOS DA GREVE GERAL

(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

Paralelamente ao que é tradição em casos de greves ou manifestações – avaliações largamente diferenciadas de participação ou adesão –, a greve geral de ontem e o seu contacto evidenciaram imensos elementos de perplexidade que, a meu ver, mostram bem o estado de perturbação generalizada a que o País chegou. Poderia referir a forma acomodada como reagiram os partidos de Direita exteriores ao Governo (Iniciativa Liberal e Chega, embora este com a salvaguarda das suas incoerências associadas às oscilações que percebe na opinião veiculada pelas redes sociais), assim como vários candidatos presidenciais, ou a forma predominantemente trauliteira como reagiu o estado-maior da governação (chegando até a recorrer a uma historicamente consagrada frase do Almirante Pinheiro de Azevedo – “o povo é sereno!” – para descrever uma situação que objetivamente perturbou a vida dos cidadãos, mais não seja pelas paralisações que sempre ocorrem em áreas de insubstituível serviço público e que levaram ao facto de que, na feliz expressão de David Pontes, "a greve geral existiu") à situação por ele intempestiva e intrigantemente criada de mexer em força na legislação laboral sem que tal parecesse expressivamente reivindicado por líderes empresariais representativos (vejam-se, ao invés, as afirmações de saturação que o presidente do Grupo DST deixou ao Expresso) nem estivesse inscrito em recentes exigências de flexibilidade vindas de revisitadas elaborações académicas ou previamente assumidas na agenda eleitoral da AD de há poucos meses. Mas o que mais pretendo aqui salientar é o que se me afigura ser um misto de soberba e amadorismo por parte dos atuais comandantes de uma embarcação lusitana que navega sem rumo e, talvez pior do que isso, guiada pela pretensa veia política do Chefe (afinal tão arrogante quanto desqualificada, tão pequenina quanto profundamente reacionária), o que promete conduzir-nos a um inevitável naufrágio sob a batuta descontrolada e destrutiva de André Ventura e seus acólitos – pobre país!




quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

TREMIDELAS NO IMOBILIÁRIO

Estou longe de ser um especialista em matéria de mercado imobiliário. Não obstante, tenho vindo a olhar com crescente atenção o que nele se passa por cá e por vários países nossos parceiros europeus, seja porque tal pode ser um importante elemento explicativo da situação de insuficiência estrutural que veio a lume a impensável ponto no domínio da Habitação seja porque tal é também determinante para um melhor entendimento do estado a que chegamos quanto à forma como a acumulação de riqueza tem vindo crescentemente a passar ao lado da respetiva criação em virtude das enormes oportunidades de ganho que a especulação tem fornecido aos nossos ricos e empresários. O acesso quase fortuito que tive a um recente artigo do jornal “ECO” permitiu-me atualizar a situação em presença nas duas principais cidades portuguesas – e também aquelas onde os preços naquele mercado mais explodiram – e, abstraindo do otimismo que cabe aos que nele operam, perspetivar dificuldades no horizonte dos referidos investidores.

 

Os gráficos abaixo, que reproduzo com a devida vénia aos seus autores (que recorreram a informação do INE), evidenciam claramente que a generalidade do mercado de habitação em Portugal continuava em alta no segundo trimestre de 2025 mas que existiam indícios de algum arrefecimento em freguesias dos dois burgos com habitual procura relevante, justificando análises mais cuidadas quanto à ideia de um crescimento generalizado e imparável. Com efeito, há freguesias com registo de sucessivas quebras trimestrais de preços – o que os interessados atribuem, de modo simplista, a pressões decorrentes da entrada de casas novas no mercado –, com destaque para a contração homóloga do valor mediano das vendas no segundo trimestre em 7 das 24 lisboetas e para as quedas de preços no mesmo período no caso da portuense União de Freguesias de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde.

 

Assim – e independentemente da interessante investigação em consolidada afirmação quanto ao surgimento de uma Asset Economy e, com ela, de lógicas novas e perversas de investimento e de desigualdade que importa ter em conta (o que aqui explorarei um dia destes) –, a verdade mais basilar é a de que parece começar a ser tempo de alguma “cautela e caldos de galinha” por parte de quem privilegia um ilimitado “venha a mim” em relação à mais trabalhosa decência de um “venha a nós”... 


quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

QUANDO A JUSTIÇA ENTRA MALEVOLAMENTE NA POLÍTICA

 

 (Portugal e Espanha são hoje a manifestação mais evidente da deriva da justiça, do ponto de vista da sua intromissão na política, sem escrutínio democrático e, no caso português, perante um poder político atónito, desorientado, amedrontado, que recusa dar o passo fundamental no sentido de colocar o poder judicial no seu lugar. No tempo dos Procuradores-Gerais da República anteriores a Lucília Gago e Amadeu Guerra, o mundo da justiça não seria perfeito, podendo ser acusado de alguma indiferença à degradação da governação nos últimos anos de José Sócrates, mas em matéria de intromissão na vida política nunca se chegou a um sítio tão longe e perigoso como o do estado atual contemporâneo dos dois Procuradores-Gerais atrás mencionados. No tempo de Lucília Gago, foi essencialmente a cruzada do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público que comandou a ofensiva sob a inépcia da Procuradora-Geral. A sua intervenção na demissão de António Costa cada vez que se melhora a informação sobre o entorno do que se passou, mais se percebe que o parágrafo maldito não foi mais do que a lança para marcar terreno. Todo o imbróglio que tem sido desvendado sobre essa adição das escutas como elemento estrutural das investigações gera as maiores preocupações sobre o ataque ao Estado de Direito, mas nem isso demove os políticos acobardados que continuam incapazes de dar um murro na mesa e estimular o mais Alto Magistrado da Nação para um magistério de influência mais proativo e menos fofinho sobre a matéria. O que se antevê nos candidatos presidenciais não me sossega totalmente quanto a uma possível mudança de rumo. O assunto foi tratado em alguns debates, mas bastante ao de leve. O que significa que os políticos estão a pôr-se a jeito. Mas o meu post de hoje versa sobre a situação espanhola que, como seria de espera, é ainda mais intensa do que a nossa, mas reveste-se de uma natureza diferente – a justiça espanhola tem-se prestado a ser atriz no drama da polarização de ódio político e visceral que PSOE e PP estão a travar, com o VOX a acicatar o ambiente.)

A figura do Fiscal General del Estado em Espanha corresponde ao Chefe Supremo do Ministério Fiscal, com a importante atribuição constitucional (artigo 124º) de promoção da ação da justiça para defesa da legalidade, dos direitos dos cidadãos e do interesse público tutelado pela Lei, por sua iniciativa ou a pedido dos interessados, assim como velar pela independência dos Tribunais e assegurar perante estes a satisfação do interesse social. O Fiscal geral é nomeado pelo Rei por proposta do Governo.

Até outubro do presente ano, o cargo era desempenhado por Álvaro Garcia Ortiz até que uma sentença recente do Supremo Tribunal o condenou no âmbito de um complexo processo de fuga ou de disponibilização de informação e correspondência, relativa à infrações fiscais graves de Alberto González Amador, advogado e, nada mais nada menos, do que o companheiro de Isabel Diáz Ayuso a rebelde presidente da Comunidad de Madrid e que tem feito a vida negra ao maneirinho Feijoo, líder do PP.

Cinco juízes mais conservadores do Supremo Tribunal condenaram precocemente Ortiz, correndo o rumor de que a sentença já estava escrita antes da última sessão do julgamento. Meios judiciais e jornalistas sem intervenção ativa na contenda PP-PSOE não hesitam em classificar a condenação como um exemplo muito grave de debilidade probatória. Os dois juízos que votaram vencidos declararam que não foi provado que tivesse sido o próprio Fiscal Geral a protagonizar a fuga de informação. Não é por acaso que a sentença condenatória atribui a fuga de informação a Ortiz ou “a alguém do seu entorno” e esta figura do entorno em termos de demonstração probatória encerra em si toda uma suspeição de que a condenação do Fiscal Geral terá sido premeditada.

Para aquecer ainda mais o ambiente, sabe-se que o Presidente do Tribunal, um tal Martinez Arrieta, despediu-se de um curso organizado e pago por uma das entidades acusadoras dizendo esta maravilha, no relato de um jornalista galego que conheço pessoalmente e em quem tenho a máxima confiança jornalística, Ernesto Pombo: “com isto concluo, caros senhores, que tenho de anunciar a sentença do Fiscal Geral”.

Quer isto significar que a deriva política da justiça espanhola vai ao ponto de influenciar o rigor probatório das sentenças proferidas para ferir neste caso quem propôs a nomeação de Ortiz, Pedro Sánchez.

Como todos sabemos, em Espanha tudo é mais intenso, até a deriva política da justiça.

A Ibéria está um primor.

FLUXOS MIGRATÓRIOS EM PORTUGAL: ALGUMAS EVIDÊNCIAS DISSONANTES

(Elaboração própria a partir de https://www.ine.pt)

(Elaboração própria a partir de https://www.ine.pt)

Gosto de ir de vez em quando à procura do que os números nos mostram e ensinam. Embora sempre dependente da informação estatística disponível – que tem indiscutivelmente melhorado, ainda que a margem de progressão se mantenha enorme –, raramente não encontro evidências curiosas, significativas ou surpreendentes.

 

Decidi desta vez ir em busca de mais alguns elementos associados aos fluxos migratórios recentemente verificados em Portugal (em concreto, desde a crise de 2007/08), concentrando-me em duas dimensões bastante relevantes: a das entradas e saídas ditas permanentes de cidadãos portugueses (primeiro gráfico acima) e a das entradas e saídas ditas permanentes de pessoas jovens (segundo gráfico acima). Uma simples observação permite concluir: (i) que as saídas de nacionais do nosso território foram superiores às entradas até 2018 e passaram subsequentemente a ser crescentemente inferiores – os que regressam aproximam-se atualmente de um valor quase duplo em relação aos que imigram; (ii) que a emigração de jovens do país esteve bastante acima da correspondente imigração até 2017 para passar a assumir valores relativamente estáveis e a ser largamente ultrapassada pelo crescente número de jovens imigrantes registados anualmente (numa relação que se situa entre 3,5 e 4 vezes nos anos de 2022 e 2023). Dois fenómenos que importará estudar de modo mais aprofundado, quer para comprovar o rigor dos números do INE quer para confrontar algumas ideias feitas que se vão espalhando sem o benefício da verificação da devida consistência.

 

Vejamos abaixo o que nos mostram mais agregadamente os dados anteriores. Para o efeito, considerei as entradas e saídas de portugueses em dois períodos distintos de sete anos (2011/2017 e 2018/2023 ou 2024) e subdividi a imigração e emigração de jovens em três quinquénios sucessivos (2009/2013, 2014/2018 e 2019/2023). No primeiro caso, a resultante mais saliente é a que decorre do facto de tudo indicar que existe hoje uma evolução no sentido de um importante regresso dos cidadãos nacionais ao país (à razão de mais de 7500 por ano, contra 2300 no período precedente) e de uma significativa quebra de quase dois terços no tocante à média de saídas de portugueses do país – uma conclusão que, sendo necessariamente provisória, parece ir na contracorrente do que se vai lendo e ouvindo na comunicação social, no discurso político e até na investigação académica.


(Elaboração própria a partir de https://www.ine.pt)

No segundo caso, e um pouco na mesma direção, o que se observa denota que a emigração de jovens parece manter uma estabilidade em sentido moderadamente descendente, enquanto a respetiva imigração aponta para um enorme salto no período 2019/2023 (com os quase 10400 jovens entrados no país a quase triplicarem os cerca de 3500 do quinquénio anterior) – mais uma vez, uma conclusão necessariamente provisória mas que parece ir ao arrepio das convicções adquiridas e nos suscita a obrigação coletiva de apreender este facto e de o aproveitar em proveito de dinâmicas transformadoras da nossa realidade social e económica.


(Elaboração própria a partir de https://www.ine.pt)

Aqui ficam, pois, alguns desafios que reputo de potencialmente pertinentes para quem pretenda conhecer o que por cá vai acontecendo e mudando para assim melhor ser capaz de contribuir com propostas fundamentadas e construtivas para a desejável transformação desse Portugal profundo e tão cheio de assimetrias e disfunções.

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

O PACOTE LABORAL NÃO TEM FUNDAMENTOS SÉRIOS

 


(É óbvio que a intervenção-rábula do primeiro-Ministro no Parlamento para defender a proposta de revisão da lei laboral que tanto e justamente incomodou as duas centrais sindicais foi preparada tendo já conhecimento do indicador da revista The Economist a que o meu colega de blogue se referiu no seu último post. O artifício retórico de se colocar na pele de um trabalhador sindicalizado para analisar a justeza da greve geral de 11 de dezembro teve naturalmente em conta a benesse que aquele artigo do Economist oferece ao Governo. Não vou analisar criticamente o artificialismo que o brinde do Economist traz à imagem do país, venham muitas dessas notícias, mas a alusão ao impacto que a liderança atribuída a Portugal no referido indicador compósito teve na intervenção do primeiro-Ministro interessa-me porque a fundamentação da proposta de revisão da lei laboral é um desconchavo completo. Se a AD se tivesse apresentado ao eleitorado com a ideia de reformar a lei laboral com esta orientação e se tivesse mantido o seu resultado eleitoral, estaria no seu pleno direito de propor à discussão a sua visão ideológica do balanceamento no mercado de trabalho. Mas isso não aconteceu. Não há uma linha sequer no programa eleitoral da AD sobre a matéria, a proposta surgiu do nada e o que é mais lamentável é que a sua fundamentação assenta num conjunto de argumentos de pacotilha e que não refletem, além do mais a orientação assumida para a reforma. É sobre o embuste da argumentação, transformada em cartilha, que até doeu como um político moderadamente equilibrado como o Pedro Duarte aplicou a cartilha no último Princípio da Incerteza da CNN Portugal...)

O principal embuste da argumentação está na invocação da “modernice” e impacto pretensamente cataclísmico da inteligência artificial e da revolução digital para justificar a necessidade da reforma, quando no documento conhecido não existe uma mínima referência que seja às alterações de legislação que essa revolução vai implicar. A isto chama-se vender gato por lebre em bom português. Aliás, não se conhece a nenhum membro do governo, mesmo aos seus mais esclarecidos elementos, quaisquer reflexões sobre o que a revolução digital significa para o muindo do trabalho. O argumento que tem sido soletrado pela cartilha é de uma indigência de banalidades que até assusta, banalidades em que a anteriormente referida intervenção de Pedro Duarte se afogou, digitalmente também, já que foi feita a partir do Porto e não partilhando fisicamente a mesa com Alexandra Leitão e Pacheco Pereira.

O segundo embuste é a ideia peregrina de que a segmentação do mercado de trabalho em Portugal, que é sem dúvida o seu principal constrangimento estrutural, se combate intensificando a precarização que marca a referida segmentação. A disposição que aparece no documento segundo a qual a realização de contratos a prazo é favorecida praticamente sem qualquer limite promove indiferenciadamente a precarização. A jornalista Raquel Martins explicita claramente no Público que “a proposta do Governo permite que um trabalhador que nunca teve um vínculo permanente possa ser contratado a termo certo, mesmo que não esteja em causa a satisfação de necessidades temporárias da empresa”. Temos por esta via a eternização da precariedade que é exatamente o contrário do combate exigido à segmentação do mercado de trabalho. A literatura diz-nos que a segmentação se combate com a generalização dos contratos sem termo, mas com flexibilização (moderada ou mais liberal consoante os padrões ideológicos dos governos) de despedimentos e uma rigorosa proteção social ao trabalhador. A medida agora proposta é totalmente perversa e eterniza a precarização do mercado de trabalho que é, precisamente, o contrário de um combate sério à precarização. Não admira que gente social-democrata moderada como Silva Peneda ou mesmo Bagão Félix tenham vindo criticar o desplante governamental em curso.

Espero que sindicatos, trabalhadores sindicalizados e trabalhadores não sindicalizados compreendam que a perversidade desta proposta de reforma da legislação laboral a ser encarada com indiferença constituirá a maior injustiça e alarvidade legislativa de todo o direito do trabalho mais recente.

Sem qualquer dúvida, não existirá medida que melhor descreva o padrão ideológico que cimenta este governo. Esta é daquelas que não engana. O espanto governamental quando ao cenário de greve geral indicia bem a perversidade de lançar cá para fora uma proposta legislativa deste calibre sob a capa de uma reforma necessária. E não há indicadores ou benesses do Economist que possam disfarçar o passo em falso protagonizado pela ministra do Trabalho e por todo o governo. Aliás, a benesse do Economist pode ter efeito boomerang. Se estamos tão bem assim, com a atual legislação, porquê eternizar a precarização e a tão vilipendiada segmentação do mercado de trabalho?