sexta-feira, 21 de março de 2025

UM PAÍS VIDEIRINHO E ENTRINCHEIRADO

 


(A notícia SOLVERDE que deu impulso à situação complicada em que Luís Montenegro voluntariamente se envolveu foi publicada pelo Expresso. Numa espécie de estado da arte e de medir o pulso político do País, o mesmo Expresso encomendou agora uma sondagem para avaliar estragos e o clima que antecede estes praticamente dois meses até às eleições de 18 de maio, data que vai acabar por contaminar a justa, mas sempre contida celebração dos meus 76 anos. Pelo que já consegui ler dos resultados obtidos, creio que o jornal terá ficado um pouco insatisfeito com a representatividade das intenções de voto, valendo antes a sondagem pelo que ela nos traz de apreciação ao sentir dos portugueses com toda esta situação. Confirma-se que a maioria dos portugueses não queria eleições, mas esse não é resultado que me espante, atendendo a que o estado global da comunicação social metralhou diariamente os portugueses com essa valoração de que a antecipação de eleições era nesta altura indesejável. O que me impressiona nesta sondagem é a dissonância que ela manifesta em relação à minha própria apreciação dos efeitos que admiti serem gerados pela teimosia de Montenegro em não reconhecer o erro de não ter dissolvido em tempo a sua malfadada empresas de consultoria. Eu sei que um quarto dos votantes AD pensa que Montenegro não se deveria recandidatar e no total da amostra há 46% das pessoas que considera que Montenegro faz mal em candidatar-se. Mas em contrapartida 52% dos inquiridos pensa que a situação de Montenegro ficou na mesma apesar do imbróglio, o que é a mesma coisa que dizer que o erro político do primeiro-Ministro não teve para a maioria dos portugueses consequências sobre a apreciação da sua figura como governante e político. Existem também nuances cuja representatividade não sei avaliar, como, por exemplo, a de que a insatisfação quanto às justificações apresentadas por Montenegro é mais elevada entre os jovens do que na restante população. De qualquer modo, o mantra da indesejabilidade das eleições abafa uma dimensão mais significativa dos efeitos negativos provocados pelo imbróglio e estará nesse ponto a razão da dissonância entre a sondagem e o que penso sobre o assunto.)

O país que se manifesta nesta sondagem, ainda largamente indeciso quanto ao seu comportamento de voto no dia 18 de maio, com 39% de indecisos, um número anomalamente elevado, é no meu entendimento pessimista e algo desencantado um país videirinho e entrincheirado.

Explico-me.

A desigualdade existente e a permanência no tempo longo, para uma elevada percentagem de população portuguesa, de condições de baixo rendimento familiar e baixas remunerações, para não falar já da ameaça persistente da pobreza absoluta, cria um caldo propício à valorização dos expedientes de toda a espécie para lutar pela sobrevivência. A multiatividade do trabalho a tempo parcial em Portugal (o trabalho a tempo parcial nos países do Norte é a aposta num modo de vida alternativo e mais distendido, não a luta pela sobrevivência) é um excelente indicador dessa necessidade permanente de combate ao baixo rendimento e às baixas remunerações. Posso estar a ser injusto, mas esse caldo de luta pela sobrevivência cria condições para que, senão apreciados, os videirinhos e facilitadores sejam pelo menos tolerados e bondosamente avaliados. Para mais, segundo o Público de hoje: “De acordo com as contas divulgadas esta quinta-feira pelo Banco de Portugal, em termos reais, o rendimento disponível das famílias cresceu 7,8%. É um valor que não encontra equivalente nas séries estatísticas das últimas décadas e que, prevê agora o banco central, não ficará sequer perto de se repetir nos próximos anos”. Ou seja, em meu entender, questões estruturais e conjunturais combinam-se para que o conflito de interesses em que Montenegro se colocou seja claramente desvalorizado. Para alguns portugueses, seria melhor que nada disto tivesse acontecido e o próprio Montenegro poderia ter facilitado as coisas, não indo a votos ou não tendo apresentado a moção de confiança. Mas no fundo, bem lá no fundo, não se passa nada, os portugueses encolhem os ombros e estão dispostos a conceder uma segunda oportunidade ao homem de Espinho.

Mas, por outro lado, é um país entrincheirado que se apresenta nesta sondagem. E aqui há que convir que a trincheira em que se encontra o PS de Pedro Nuno Santos não é das mais confortáveis ou melhor construídas. Não tem sentido questionar se os resultados seriam substancialmente diferentes se PNS tivesse já conseguido uma outra empatia com o eleitorado. A política faz-se do que é e não do que poderia ser, refazendo as trajetórias de cada um. A sondagem traz praticamente um empate na atribuição de responsabilidades sobre quem terá desencadeado a crise política e aí a ideia de entrincheiramento é real e incontornável. O esforço comunicacional do Governo e da AD em geral para focar a responsabilidade política no PS foi brutal e representou uma peça essencial para o entrincheiramento de posições.

A reflexão lá para as bandas do Largo do Rato deve estar pesada e atarefada, pois a trajetória de rejuvenescimento de ideias e rostos que o PS pensara com outro horizonte eleitoral está totalmente modificada e existe pouco tempo para um sucedâneo perfeito. Não me parece de todo que a ideia de um novo Relatório Porter tenha sido o tiro certo no alvo mais adequado, mas nestes contextos de pressão mediática há sempre uma ideia que tem de ser apresentada e PNS não resistiu ao revivalismo. Haveria seguramente outras formas de abordar o tema, abrindo por exemplo o caminho do diálogo com meios empresariais e da inteligência nacional, mas o que está feito, está feito.

Os dados estão lançados e admito que esta sondagem tenha sido preciosa para orientar o arranque das máquinas eleitorais.

Terá acentuado o meu pessimismo quanto a isto tudo? Sim, creio que sim.

quinta-feira, 20 de março de 2025

CHEGOU A PRIMAVERA!

(reprodução de “Dance of Spring”, 1937, da autoria de Samuel Joseph Brown e em exposição no “Smithsonian American Art Museum)

Não sei muito bem porquê, certamente também pelas agruras que nos trazem as envolventes externas e internas, mas este é um ano em que tenho esperado com particular ansiedade a chegada da Primavera. E ela aí está de volta! Veremos até cerca do nosso Dia de São João se valeu a pena a expectativa e a esperança que a acompanhava, sendo sempre verdade que uma boa parte desse cumprimento provem de nós próprios e do modo como somos capazes de fruir do tempo de que dispomos e das relações de amizade que fomos construindo.


Ainda assim, e focando-me no entorno exógeno, sempre não deixando de sublinhar quanto ele nos vai surpreendendo e desafiando – largamente em termos negativos, ou mesmo em função da natureza e violência do caráter paradoxal dos choques de que diariamente somos alvo –, opto por aqui reproduzir um extraordinário gráfico recente publicado no “Financial Times”: no momento em que uma questão que nos domina parece passar por uma escolha terrível para os países ligados ao modelo social europeu (guns or butter), na sequência de uma interiorização forçada do papel de guarda-chuva protetor que os EUA desempenharam durante décadas no contexto da segurança e defesa à escala internacional, é abissal a diferenciação que o gráfico nos revela entre a Europa e outros países do chamado mundo ocidental (Japão, Canadá e Austrália) e o seu ex-amigo do Continente Americano – abissal no que toca às evidências de um output social em largo favor dos primeiros, mas também abissal no que toca ao volume da despesa social relativa em que os EUA revelam um grande distanciamento e, portanto, um desvio gritante de desperdício e ineficiência. Esta é uma matéria polémica e de potenciais consequências determinantes para o nosso futuro coletivo e dela não fugiremos nesta Primavera, mesmo que as vidas pessoais nos tragam os benefícios relacionais e de lazer que possam estar ao nosso alcance.

QUANDO OS GRÁFICOS EXPRESSAM A INCOMODIDADE DO ÓBVIO

 

(https://www.ft.com/europe-express?emailId=24f23827-4bad-4e5a-8691-1ff3e5f74c5e&segmentId=488e9a50-190e-700c-cc1c-6a339da99cab)

(A brutal invasão da Ucrânia pela Rússia e a disrupção que Trump veio trazer à ordem económica e política internacional colocaram no centro do debate internacional uma diversidade de problemas novos, como a questão da continuidade e/ou sustentabilidade da NATO, o peso do esforço nacional em despesas militares e toda a complexidade do edifício da segurança europeia. É conhecido que o principal cimento da construção europeia, na perspetiva da adesão dos cidadãos, sempre se apoiou na consolidação do chamado modelo do Estado Social. Sabe-se que esse edifício do Estado Social é muito desigual (1)  entre os estados-membros e que, por exemplo, os países da Europa do Sul estão longe de poder contar com uma proteção tão vasta como a observada nos países do Norte da Europa e em França. Mas comparativamente aos modelos de outros países, os Europeus em geral sabem que podem contar com um modelo de proteção social que os diferencia e beneficia. Creio que essa perceção é responsável pelo facto de, apesar de todas as críticas ao modelo europeu e ao seu processo de construção, os cidadãos valoram essa diferença e apostam na sua defesa. A emergência do tema do rearmamento e da defesa militar e em termos globais da Europa vem alterar esse status quo, sobretudo porque emergiu imediatamente a questão da possibilidade do esforço de rearmamento e defesa poder atingir a preservação do Estado Social, mesmo que admitindo as imperfeições da sua construção e a menor velocidade de consolidação da Europa Social. Não me espanta, por isso, que uma grande parte da União Europeia tenha assobiado para o lado em matéria de financiamento da proteção concedida pela NATO, encantada com a evidência do Tio Sam se chegar à frente e continuar a assumir a principal responsabilidade desse financiamento. Não é que a incomodidade desse problema não tenha sido já identificada por outros presidentes americanos antes do inconfiável Trump, agora como se previa em choque aberto com o sistema judicial americano. Mas a intensidade e gravidade desses alertas não foi de molde a alterar comportamentos e por isso a disrupção Putin-Trump foi tão brutalmente sentida, suscitando indevidamente em muitas forças políticas a reedição do velho debate “canhões ou Estado Social”.)

 

(https://www.e-elgar.com/shop/gbp/the-european-social-model-in-crisis-9781783476558.html)

O que o gráfico que abre este post nos mostra com a incomodidade de uma evidência é que esse encolher de ombros quanto à necessidade de (re) pensar a defesa europeia, e paredes meias com isso, o financiamento da NATO, varia significativamente com a distância das capitais à fronteira com a Rússia. Como diria alguém, “history and geography matter”, e assim o peso das despesas militares no PIB dos países varia em razão inversa com essa distância. Não é por acaso que os países Bálticos, a Finlândia e a Polónia que sabem bem por experiência própria o que é a presença russa ocupam o lugar dianteiro em matéria de peso de despesas em defesa no respetivo PIB. Algo de preocupantemente similar ao “longe da vista, longe do empenho na defesa” percorre o referido gráfico, mostrando que tal como noutras dimensões a solidariedade do esforço na defesa é algo de muito problemático na União Europeia. É bom de ver que a questão não pode ser avaliada apenas pela variável do peso percentual no PIB das despesas em defesa. Para alguns países, entre os quais o nosso, o problema deve também ser aferido em função da massa bruta e absoluta de recursos alocados à defesa. O impacto desse esforço absoluto e relativo depende fortemente do estádio de desenvolvimento dos países e, por isso, no caso português, o que vier a acontecer nessa matéria implica que possa ser reconvertido como fator favorável ao processo de mudança estrutural da nossa economia. Questões como a articulação com a indústria dos bens de equipamento, reindustrialização e valorização e algumas dimensões da investigação e desenvolvimento científico e tecnológico terão de ser integradas na equação e quebrar assim os vícios do foco “canhões ou Estado Social”.

Mas o gráfico é incómodo na sua clareza porque a questão da proximidade ao conflito e à probabilidade da ameaça russa é um problema real na resposta ao desafio de construir uma perceção global e coerente dos cidadãos europeus quanto à necessidade de uma nova política de defesa e segurança. Face ao estado de perigosidade em que a Europa globalmente se encontra, abandonada ao seu destino pela Casa Branca, a importância do “longe da vista” esbate-se totalmente. Toda a distância física é ilusória e mesmo a chamada periferia longínqua, à beira-mar plantada, tem de preocupar-se com o problema. E, desejavelmente, em vez de regressar ao infantil argumento de “Estado Social sim, armamento não” há que capitalizar o mais possível esse esforço do ponto de vista da reestruturação produtiva nacional e, ao contrário do que tenho lido e ouvido, não é apenas uma questão de têxteis técnicos a valorizar.

(1)  É com orgulho e alguma saudade que recordo a minha participação e da minha colega Maria Pilar González na obra coletiva The European Social Model in Crisis -Is Europe Losing its Soul?, editada em 2015 pela prestigiada Edward Elgar de Londres sob coordenação da Daniel Vaugham-Whitehead da International Labour Organisation, experiência das mais gratificantes que tive na minha já longa vida profissional e também académica. Agora em Open Access, recomendo a sua leitura.

quarta-feira, 19 de março de 2025

JULGAMENTO MARCADO, OLÉ, OLÉ?

(cartoon de Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

A notícia foi recebida sem especial ruído público, a despeito do seu conteúdo arrepiante: dez anos e tantos episódios depois, José Sócrates tem finalmente julgamento marcado. Que o mesmo é dizer, realmente, que “vem aí nova temporada do caso Sócrates”... Porque o português médio, o homem da rua digamos assim, já não se emociona com estes atrasos da Justiça nem com a estranheza, por vezes horripilante, das novelas que diariamente lhe são oferecidas no espaço público. Também ninguém se deu ao trabalho de explicar a razão pela qual, se é que ela existe porque não é de todo compreensível, se arranca com as audiências menos de duas semanas antes da paragem dos Tribunais para efeitos de férias judiciais. Quanto ao acusado, a sensação que passa é que ele está saturado das andanças do Processo Marquês em que se meteu e foi metido – pudera, não é para menos! –, deixando-o perpassar de modo cada vez mais notório nos seus aparecimentos junto da comunicação social, com oscilações em torno de um homem amargado pela sua circunstância e daquele “animal feroz” que em tempos tão energicamente assim se apresentou aos portugueses; e mesmo se ele já tem o destino traçado aos olhos da larga maioria dos seus concidadãos (qualquer que seja o veredito judicial), parece algo insensato que não procure recuperar, para efeitos de defesa dos seus interesses de imagem e de legado histórico, um mínimo do capital simbólico que adquiriu quando combativamente disputou o poder no PS e alcançou a primeira maioria absoluta socialista no País.

A ESQUERDA E AS QUESTÕES IDENTITÁRIAS

 


 (Em dois posts anteriores, aqui e aqui, chamei a atenção para o processo de adaptação que as forças políticas democráticas à esquerda e à direita irão desenvolver face à presença de um elefante na sala, as forças de extrema-direita que irromperam por diferentes parlamentos na Europa e não só para sujeitar a democracia a uma longa erosão. À falta de melhor designação designei esse processo de TPeC, Transição Política em Curso, que passa a constituir um novo foco de interesse da minha pesquisa para este blogue e sobretudo uma matéria de monitorização permanente, pois tudo indica que o processo será longo e não necessariamente linear. É sob essa orientação que tenho vindo a trabalhar evidência para dar corpo e consistência a essa hipótese de trabalho, fazendo-o à esquerda e à direita, pois entendo que o referido processo adaptativo não será uniforme e apresentará diferenciações relevantes. Em simultâneo, dentro das limitações de captação de evidência que a periferia europeia nos impõe, tenho procurado diversificar também essa procura por diferentes países europeus, já que os diferentes sistemas constitucionais nos trazem variantes interessantes de contexto. Seguindo essa linha de orientação, exploro hoje o que está a acontecer por terras de França, na qual existe um abismo de diferenças entre o que Macron está a procurar desenvolver positivamente na cena europeia e internacional e as misérias da política interna, bem menos refrescantes do que o voluntarismo frenético, não sabemos ainda se consequente ou condenado ao fracasso, do Presidente. A evidência em causa está essencialmente relacionada com a posição relativamente agónica do Partido Socialista Francês, hoje liderado por Olivier Faure, um personagem simpático que herdou uma situação de quase irrelevância que não se recomenda. Pois, ao contrário do que muitos esperariam, o PS de Faure mordeu o isco lançado pelo atual primeiro-Ministro em exercício François Bayrou, não enjeitando a hipótese de entrar no debate sobre as questões identitárias – a identidade nacional da França.)

A caminhada política do novo governo de François Bayrou, desencantado por Macron para assumir este período conturbado, tem sido um processo cheio de espinhos e contradições. Tudo parece tremer em matéria de contradições internas, seja as forças políticas que sustentam o governo de Bayrou, seja a esquerda na oposição com a França Insubmissa a viver um período atribulado e o PS de Faure a tentar capitalizar o pequeno ressurgimento, mais propriamente o estancamento do declínio, que os últimos atos eleitorais lhe proporcionaram. Por sua vez, o Rassemblement National aguarda cinicamente o estilhaçar das contradições, tal qual predador que espera pacientemente a maior vulnerabilidade possível da sua presa. Diga-se, circunstancialmente, que a disrupção de Trump na cena internacional está longe de beneficiar o partido de Le Pen, pois é conhecida a sua aversão ao modelo cultural americano, agora extremado nesta sua nova variante. Por outro lado, a proximidade de Trump a Putin também não beneficia Marine Le Pen, pois esta tem tentado com afinco nos últimos tempos apagar a mancha do pressuposto financiamento do partido por empréstimos de banqueiros russos.

Recentemente, a política interna francesa foi surpreendida com a iniciativa política de Bayrou de trazer para o debate político a questão da identidade nacional da França. Imagina-se a dificuldade política de lançar sob a forma de convenções descentralizadas por todo o território francês a discussão sobre este tema, sobretudo no contexto de uma França submetida a todo um vasto conjunto de influências de culturas externas que entram todos os dias pela França adentro. Dificuldades acrescidas quando o tema da identidade nacional tem sido presa fácil da direita mais reacionária em França, que faz dela uma parede-ricochete face às pressupostas ameaças trazidas pela imigração nos seus diferentes estádios de acolhimento e (des) integração.

À esquerda, tem predominado a ideia de que, quando as questões sociais são a preocupação dominante e é possível em torno delas construir um conjunto coerente de políticas públicas, as questões identitárias se esbatem face ao objetivo superior de respostas sociais positivas. Segundo o Libération, um senador do PS Alexandre Ouizille terá escrito algo que vai nesse sentido: “A experiência histórica mostra-nos que quando a questão social domina a agenda, o espectro da guerra civil identitária parece desaparecer da consciência coletiva. Porque o conflito social organiza-se em torno de interesses materiais a conquistar e não de uma genealogia inata e inultrapassável”.

A posição assumida por Olivier Faure é de difícil caracterização: temerária e corajosa ou simplesmente ingénua?

Compreende-se que o PS francês associe o seu possível ressurgimento a uma tentativa desesperada de encontrar algo de consistente e válido entre a França Insubmissa de Mélenchoin e o Rassemblement National de Le Pen e Bardella, em busca não de um tesouro perdido, mas de uma Nova França, que possa refletir mais fielmente um corpo de valores que dê resposta ao novo contexto da sociedade francesa. Mas se compreendo essa intenção e a correspondente ideia de ir a debate sobre essa matéria, chego rapidamente à conclusão de que transformar essa Nova França num corpo identitário coerente que coloque lá bem no passado as raízes mais profundas do chauvinismo francês é uma tarefa política gigantesca, de um prazo bem mais longo do que o tempo que se abre ao PS francês para suster o seu caminho para a irrelevância.

Por outro lado, reinventar politicamente temas como o da fraternidade num contexto em que as questões da imigração, da integração e da segurança apela a desafios gigantescos de consistência, mas também de habilidade e competência políticas.

É por isso que, em meu entender, o debate em curso no interior do PS francês e de toda a esquerda democrática faz parte do processo adaptativo de que falava no início desta crónica. É conhecida a presa que a extrema-direita tem adquirido em França sobre o tema da identidade nacional, sobre o que é ser francês no mundo de hoje. Assim sendo, a reação face ao tal elefante na sala teria que suscitar necessariamente a entrada no debate sobre os temas identitários, o que não é senão uma outra forma de discutir a imigração, a integração e a segurança.

A posição de Olivier Faure é talvez temerária. Mas cabendo-lhe estar neste contexto a liderar o seu partido, dificilmente ignorar o problema seria melhor solução.


 

Nota complementar:

Já depois de ter publicado este post, dei de caras com este tweet de Sylvie Kaufmann (Les Aveuglés, obra destacada neste blogue) no X, que sublinha a ironia de Uderzo, filho de imigrantes italianos e de Goscinny, filho de imigrante polaco e imigrante ucraniana serem grandes exportadores do espírito francês.

terça-feira, 18 de março de 2025

MALEFÍCIOS DO PRR?

 


(O meu colega de blogue já se referiu com pertinência à saga do PRR e ao desajeitado contributo do Presidente Marcelo para que os olhares dos Portugueses estejam concentrados na sua execução e não na qualidade e alcance estratégico do que vai sendo apoiado e concretizado. A obsessão de Marcelo com o PRR faz parte do conjunto de factos e comportamentos que têm feito baixar os índices de popularidade do Presidente a níveis que uns anos atrás julgaríamos fora de questão. Mas a verdade é que um dos Presidentes mais bem preparados para o exercício da função e com um arranque de popularidade nunca alcançado está hoje em dificuldades para acabar o seu mandato com alguma recuperação de aceitação pública. O artigo de Henrique Monteiro no Expresso on line ocupa-se disso e para ele remeto os leitores interessados nesse tema. Não vou discutir as razões que têm levado Marcelo a um abismo de popularidade. Vou antes centrar-me no enorme erro dele ter contribuído e não abdicar dessa deriva para maximizar de forma doentia a obsessão política nacional com a execução do PRR e dos Fundos Europeus em geral, em detrimento de uma saudável e construtiva discussão sobre o alcance estratégico dos projetos ou operações de investimento que têm vindo a ser apoiados. Integro nesta reflexão uma evidência que me foi proporcionada por um painel de discussão realizado com entidades que integram o Comité de Acompanhamento do Programa de Assistência Técnica 2030, inserido nos trabalhos de avaliação da operacionalização daquele Programa que estou a coordenar. Esse painel de discussão foi realizado numa sessão mista presencial e on line, nas magníficas instalações do Museu-Casa Aristides de Sousa Mendes em Cabanas de Viriato, Carregal do Sal, região Centro de Portugal. O debate teve lugar no pequeno e excelente auditório construído a partir da garagem onde o célebre veículo automóvel da família Aristides Sousa Mendes era guardado, um estranho veículo que permitia deslocar 17 pessoas e a vasta prole da família Mendes. Não tive então oportunidade de referir neste blogue a qualidade da Casa-Museu, onde nos foi facultada uma competente visita, mas fica aqui com atraso de alguns dias o voto de que as 24.000 visitas que a Casa-Museu teve desde a sua abertura ao público, pouco mais de 5 meses, possa continuar o seu sustentado ritmo de crescimento, pois o material é excelente e adquire nos tempos que correm uma importância irrecusável.)

A ideia central que esse painel de discussão trouxe à minha já longa reflexão sobre as condições concretas de utilização dos Fundos Europeus e do PRR em particular está relacionada com as questões de comunicação dos Fundos Europeus em geral. Já escrevi repetidas vezes, designadamente em trabalhos de avaliação de acesso aberto e público, que a comunicação dos Fundos Europeus tem um sério problema de relacionamento com as agendas mediáticas dos principais órgãos de comunicação social nacionais. Estas agendas privilegiam despudoradamente todas as questões que evidenciem problemas ou irregularidades de funcionamento ou execução, se houver fraudes então é um festim, claramente em desfavor de comunicar boas práticas e projetos de excelente qualidade que têm sido apoiados e concretizados, já para não falar de casos de políticas públicas praticamente financiadas por Fundos Europeus. Já me aconteceu, com espanto meu, aliás verbalizado nessas sessões, estar a apresentar resultados de trabalhos de avaliação em sessões organizadas por jornais prestigiados, pagos pelos Programas em avaliação para organizar tais sessões e, mesmo assim, a deriva de focar os aspetos menos conseguidos em detrimento das boas práticas e resultados positivos acontecer.


O que a discussão realizada no auditório da Casa-Museu Aristides Sousa Mendes trouxe de novo foi o relato de alguns programas do PT2030 segundo o qual a comunicação do PRR tem canibalizado a comunicação desses programas, tamanha é a pressão pública e política para acentuar os problemas de execução do PRR. O caráter extraordinário do financiamento PRR e o facto da sua execução estar condicionada a um período mais curto do que o do PT2030 criou desde o início um caldo favorável para que a comunicação do PRR canibalize a do PT12030. Mas há um outro facto que tem favorecido a proeminência comunicacional do PRR e não estou a falar neste caso da obsessão de Marcelo. A monitorização do PRR é feita em função de metas (indicadores físicos) e de marcos intermédios a alcançar, o que constitui um irrecusável apelo à comunicação. Pelo contrário, o PT2030 tem insistido fortemente na execução financeira, que não tem o caráter apelativo das metas e dos marcos.

Absurdo dos absurdos, os programas do PT2030 estão também sujeitos a metas finais e intermédias e por isso poderiam partilhar esse aspeto comunicacional apelativo. Mas o que tem acontecido é que o Sistema de Informação PT2030, por razões que a razão desconhece, tem tido dificuldade em publicar de modo atempado indicadores de execução física dos Programas, gerando este enorme absurdo: existem razões apelativas para que a comunicação do PRR canibalize a comunicação dos programas do PT2030 e, apesar disso, este último debate-se com problemas de informação sobre a sua execução física, tendo de refugiar-se na menos apelativa execução financeira.

Como diria o obsessivo Presidente Marcelo, isto não lembraria ao careca …

Obviamente que as minhas críticas ao foco obsessivo na execução dos Fundos e do PRR em particular não significam que não esteja atento a essas questões, sobretudo do ponto de vista das condições de absorção de Fundos. Há essencialmente duas questões que colidem com execuções rápidas e no tempo programado. Por um lado, o setor da construção civil enfrenta uma penúria de mão de obra que está longe de estar resolvida e dizem-me que do ponto de vista empresarial não recuperou ainda da tragédia da Grande Recessão (2007-2008) e crise das dívidas soberanas. A destruição abundante de empresas não foi ainda plenamente reposta. Por outro lado, os aspetos jurídico-políticos da contratação pública estão longe de ter atingido um equilíbrio razoável entre celeridade e preservação de condições anticorrupção, abrindo um campo infindável de imbróglios jurídicos e atrasos de contratualização. Mas enganem-se aqueles que consideram que só existem problemas de execução em projetos que impliquem construção civil. Mas essa é outra conversa, para noutras ocasiões desenvolver.

segunda-feira, 17 de março de 2025

COM AMIGOS DESTES...

 

Às tantas até é verdade que foram cumpridas as obrigações relativas às obras nos apartamentos de Montenegro em Lisboa, mas o que é facto é que a sua credibilidade enquanto cidadão cumpridor não beneficia das intervenções de amigos bem-intencionados mas completamente despropositados como Carlos Moedas. Porque se foi rotineira a vistoria hoje ocorrida nos ditos apartamentos, a mando da Câmara Municipal de Lisboa, e se a mesma obedece a uma programação que é alegadamente aplicada em igualdade de circunstâncias a todos os lisboetas, então como explicar que o “Correio da Manhã” por lá estivesse a recolher imagens, que Moedas logo tenha chamado os jornalistas para anunciar que tudo estava nos conformes e que a declaração do presidente da autarquia tenha sido a tal ponto artificial que o levasse a sublinhar vezes sem conta que o primeiro-ministro é tratado como qualquer concidadão e não obteve qualquer favorecimento e que com ele, Moedas, assim é e tem necessariamente que ser? É que, perante tanta repetição – que nos transporta para um velho ditado popular (“quando a esmola é grande, o pobre desconfia”) –, das duas uma: ou Moedas padece de algum tipo de disfunção neurológica que o faz verbalizar incontidamente a frase com que pretende convencer o interlocutor da sua boa-fé ou Moedas precisa urgentemente de uma formação em comunicação política que lhe permita lograr tal objetivo sem procurar fazer dos portugueses tão parvos quanto ele os imagina...