sábado, 6 de dezembro de 2025

A NOSSA ESQUERDA KAMIKAZE

 

(Tenho uma tendência estranha para me afastar deliberadamente do que me incomoda. As eleições presidenciais do próximo janeiro estão nesse âmbito de autoafastamento. O tempo começa a ser para mim precioso e daí a questão inevitável – porquê perder tempo com o que é desagradável e não tem emenda? Mas há uma matéria sobre a qual para memória futura não posso deixar de registar uma breve análise que seja. Estas eleições revelam uma tendência mórbida da esquerda para o suicídio, com vários matizes. Primeiro, António José Seguro apareceu como o diabo foge da cruz a fugir da sua matriz de centro-esquerda, vá lá saber-se porquê. Segundo, um conjunto já vasto de personalidades do PS aparecem a apoiar, alguns na qualidade de mandatários, o Almirante, confundindo inimizades pessoais com análise política fria e firme. Terceiro, a atomização dos candidatos à esquerda do PS permite concluir que esse pessoal preza mais uns minutos na ribalta dos debates televisivos do que a salvaguarda do regime democrático, fazendo da gente de esquerda parva e proclamando que com sondagens de pequenos dígitos podem chegar a uma segunda volta. Estará tudo louco? Estará a corrosão do tempo político a afetar a lucidez dos protagonistas? Esta gente não saberá ler sinais como o da indicação de Dino Santiago como mandatário cultural de Marques Mendes...)

O desplante com que candidatos como António Filipe, Catarina Martins e Jorge Pinto se apresentam ao eleitorado como se o contexto fosse neutro ou inócuo, arvorando-se o direito de cavalgarem uma hipótese credível de ida a uma segunda volta, cheira a caminhada para o abismo e sem a perceção mínima do que pode acontecer ao país e à esquerda nesta eleição. Já dou de barato a incapacidade manifestada de gerar uma personalidade de esquerda de largo apoio para protagonizar uma prova de coerência. Os cenários possíveis podem ir de mal a pior. O pior seria sem dúvida uma segunda volta entre Gouveia e Melo e André Ventura. Um cenário ligeiramente menos catastrófico seria um destes dois disputar a segunda volta com Marques Mendes. Nestes dois cenários, o centro-esquerda estaria ausente, cavando o declínio que se anuncia. Assim, tendo em conta que Cotrim de Figueiredo pode penalizar Marques Mendes na sua tentativa de fixar o eleitorado do PSD, por muito que a personalidade de António José Seguro seja pouco arrebatadora, a presença do centro-esquerda numa segunda volta e na procura de algum equilíbrio político na conjuntura atual exigiria um acordo deliberado entre Seguro e a restante esquerda para aumentar a probabilidade de lá estar.

Entretanto, a liderança do PS, depois de a contragosto apoiar por fim Seguro, caminha abertamente para um modelo de liderança fofinha. José Luís Carneiro é um bom homem, esforçado e leal, mas a sua reação aos desmandos do Ministério Público que o colocaram, escutado, na praça pública é de bradar aos céus por tão marcada indiferença face à gravidade do sucedido. Reagir a tais desmandos afirmando que não tem nada a esconder não lembraria ao careca mais ingénuo. Vá lá que os candidatos Mendes e Seguro reagiram com alguma veemência.

Mas, contas feitas, impressiona-me e enerva-me a indiferença da esquerda portuguesa face às ameaças que pairam sobre a nossa ainda frágil democracia, das quais estas presidenciais não são mais do que a manifestação de todo um ciclo político. E não adianta enunciar juízos e votos pios quando em matéria de decisões e de prática política a situação permanece igual – atomização até ao limite possível, egos incomensuráveis que se sobrepõem a uma análise política fria, incapacidade de compreender que o combate a tais ameaças pressupõe uma atitude colaborativa entre as diferentes sensibilidades que integram a esquerda. Talvez José Manuel Pureza compreenda essa necessidade mas receio que tenha chegado demasiado tarde ao teatro das operações.

 

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