domingo, 7 de dezembro de 2025

A EUROPA COMO INIMIGO

 

(A evidência que serve de mote a este post já andava a ser salivada há muito tempo, pelo menos pelos analistas mais lúcidos e menos propensos a dourar a pílula dos problemas europeus atuais, como por exemplo Teresa de Sousa que regressa ao tema no Público. A indigência europeia, mais visível nas patacoadas da sua representante da política externa Kaja Kallas e António Costa não andará muito longe, vê-se agora confrontada com essa evidência posta preto no branco com a Nova Estratégia para a Segurança dos EUA apresentada nos últimos dias. O olhar da administração americana sobre a Europa mudou radicalmente, deixando de ser baseada na defesa comum dos valores democráticos. Reiterando a grosseria com que J.D. Vance brindou os Europeus em Munique, a Europa é essencialmente vista como uma ameaça aos valores civilizacionais da família e da cultura judaico-cristã. A raiz desse diagnóstico está obviamente na obsessão americana pelos pressupostos malefícios da imigração. Daí a estabelecer como parceiros principais as forças de extrema-direita, também obcecadas com a imigração e com o declínio desses valores civilizacionais, existe uma ponte natural. E estamos conversados. A estratégia de segurança americana regressa aos tempos da geopolítica por áreas de influência e à força militar, económica e política para impor a lei nessa área de influência. A América Latina que se prepare e a Europa que se dane...)

Por mais absurdo que a conclusão possa parecer, a Europa é, neste novo contexto estratégico, mais inimiga do que a Rússia ou a China para a administração Trump. Por isso, quando Kaja Kallas, piedosamente, vem garantir que a ajuda americana continua a ser essencial para a Europa, estamos seguramente num outro filme distinto daquele que queremos efetivamente ver. É o que Noah Smith sintetiza nesta afirmação – “A Europa está cercada. Ameaçada pela Rússia e pela China, abandonada pela América”.

O que muda significativamente com este posicionamento estratégico americano é o aumento de importância das chamadas guerras culturais na lógica da segurança nacional. O cartoon utilizado na 1ª guerra mundial para vencer a resistência americana a não participar no conflito colocava a Alemanha de então na figura do gorila que raptava uma mulher branca. Hoje, se os ideólogos da estratégia americana de segurança ousassem regressar a esse cartaz, o lugar do gorila seria representado pela imigração muçulmana e não branca que segundo Vance e outros estará a ameaçar a civilização europeia. Na perspetiva dessa estratégia de segurança, a ajuda concretizar-se-á pelas alianças preferenciais com as forças políticas que inscrevem essa ameaça inventada nos seus ideários políticos. A preservação das instituições democráticas deixa de funcionar como o elo de cooperação euro-americana. Essa cooperação passa precisamente por estabelecer laços com os que tendem em solo europeu a combater a própria democracia.

Alguém que tivesse hibernado nestes últimos vinte-trinta anos ficaria boquiaberto com esta mudança de contexto que encontraria no seu despertar.

O azar histórico de Zelensky e da Ucrânia resistente é encontrar uma Europa neste estado de sítio, abandonada pelos EUA e ameaçada pela Rússia e pela China. Ainda assim, é muito difícil a um democrata alinhado com o que a civilização europeia representa para a defesa desses valores, ler sem perturbação o artigo de Miguel Sousa Tavares no Expresso desta semana. O cronista do Expresso, que convenhamos nunca alinhou com a posição europeia dominante de abordagem à questão da invasão russa da Ucrânia, atira-se sem subterfúgios de qualquer espécie às autoridades europeias por estas continuarem a apoiar intransigentemente a recusa de Zelensky em aceitar uma solução de negociação para colocar um fim às hostilidades russas. Existem partes do artigo em que MST sugere mesmo que as autoridades europeias têm feito tudo ao seu alcance para dissuadir Zelensky de ceder ao mais efetivo ultimato americano, como se o líder ucraniano não quisesse assumir para o seu país um mínimo de dignidade. A questão é, não a devemos ignorar, que sobretudo Starmer, Macron e Merz, a par de Ursula von der Leyen, o fazem sem oferecer à Ucrânia uma solução convincente que lhe garanta continuar a resistência. É muito discutível a acusação de MST de que as autoridades europeias terão cortado demasiado cedo as pontes de negociação possível com a Rússia. Como é que se negoceia com um invasor, sem beneficiar o infrator?

O drama deste imbróglio está na falta de confiança do papel mediador dos EUA. Ainda por estes dias, o secretário de Estado Marco Rubio errou frontalmente quando referiu a dimensão do território que os ucranianos têm ainda sob o seu controlo. A desproporção com que quantificou para baixo esse território constitui a prova mais evidente de enviesamento do papel de mediador ou de incompetência na avaliação do estado da arte do controlo ucraniano do seu território. Ambas as hipóteses conduzem a uma ausência total de credibilidade na mediação que está a ser realizada pelos EUA.

Se não existissem mais fatores que nos conduzam a compreender e a lamentar este dilema em que Zelensky se encontra, aceitar ou rejeitar a “ajuda” americana, bastaria esta possibilidade de estar a ser induzido a rejeitar o acordo ainda que melhorado para parar a guerra por uma Europa que não é convincente e consistente na alternativa que oferece para o melhor compreender.

Este é dos assuntos em que não quero ter razão. Mas a impressão de que a tragédia da Ucrânia está a começar a tomar forma torna-se cada vez mais forte. E, mais do que isso, a poder representar o primeiro sacrifício imposto  pelo regresso da geopolítica por áreas de influência, nas quais o mais forte manda e submete os mais fracos.

 

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