(Portugal e Espanha são hoje a manifestação mais evidente da deriva da justiça, do ponto de vista da sua intromissão na política, sem escrutínio democrático e, no caso português, perante um poder político atónito, desorientado, amedrontado, que recusa dar o passo fundamental no sentido de colocar o poder judicial no seu lugar. No tempo dos Procuradores-Gerais da República anteriores a Lucília Gago e Amadeu Guerra, o mundo da justiça não seria perfeito, podendo ser acusado de alguma indiferença à degradação da governação nos últimos anos de José Sócrates, mas em matéria de intromissão na vida política nunca se chegou a um sítio tão longe e perigoso como o do estado atual contemporâneo dos dois Procuradores-Gerais atrás mencionados. No tempo de Lucília Gago, foi essencialmente a cruzada do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público que comandou a ofensiva sob a inépcia da Procuradora-Geral. A sua intervenção na demissão de António Costa cada vez que se melhora a informação sobre o entorno do que se passou, mais se percebe que o parágrafo maldito não foi mais do que a lança para marcar terreno. Todo o imbróglio que tem sido desvendado sobre essa adição das escutas como elemento estrutural das investigações gera as maiores preocupações sobre o ataque ao Estado de Direito, mas nem isso demove os políticos acobardados que continuam incapazes de dar um murro na mesa e estimular o mais Alto Magistrado da Nação para um magistério de influência mais proativo e menos fofinho sobre a matéria. O que se antevê nos candidatos presidenciais não me sossega totalmente quanto a uma possível mudança de rumo. O assunto foi tratado em alguns debates, mas bastante ao de leve. O que significa que os políticos estão a pôr-se a jeito. Mas o meu post de hoje versa sobre a situação espanhola que, como seria de espera, é ainda mais intensa do que a nossa, mas reveste-se de uma natureza diferente – a justiça espanhola tem-se prestado a ser atriz no drama da polarização de ódio político e visceral que PSOE e PP estão a travar, com o VOX a acicatar o ambiente.)
A figura do Fiscal General del Estado em Espanha corresponde ao Chefe Supremo do Ministério Fiscal, com a importante atribuição constitucional (artigo 124º) de promoção da ação da justiça para defesa da legalidade, dos direitos dos cidadãos e do interesse público tutelado pela Lei, por sua iniciativa ou a pedido dos interessados, assim como velar pela independência dos Tribunais e assegurar perante estes a satisfação do interesse social. O Fiscal geral é nomeado pelo Rei por proposta do Governo.
Até outubro do presente ano, o cargo era desempenhado por Álvaro Garcia Ortiz até que uma sentença recente do Supremo Tribunal o condenou no âmbito de um complexo processo de fuga ou de disponibilização de informação e correspondência, relativa à infrações fiscais graves de Alberto González Amador, advogado e, nada mais nada menos, do que o companheiro de Isabel Diáz Ayuso a rebelde presidente da Comunidad de Madrid e que tem feito a vida negra ao maneirinho Feijoo, líder do PP.
Cinco juízes mais conservadores do Supremo Tribunal condenaram precocemente Ortiz, correndo o rumor de que a sentença já estava escrita antes da última sessão do julgamento. Meios judiciais e jornalistas sem intervenção ativa na contenda PP-PSOE não hesitam em classificar a condenação como um exemplo muito grave de debilidade probatória. Os dois juízos que votaram vencidos declararam que não foi provado que tivesse sido o próprio Fiscal Geral a protagonizar a fuga de informação. Não é por acaso que a sentença condenatória atribui a fuga de informação a Ortiz ou “a alguém do seu entorno” e esta figura do entorno em termos de demonstração probatória encerra em si toda uma suspeição de que a condenação do Fiscal Geral terá sido premeditada.
Para aquecer ainda mais o ambiente, sabe-se que o Presidente do Tribunal, um tal Martinez Arrieta, despediu-se de um curso organizado e pago por uma das entidades acusadoras dizendo esta maravilha, no relato de um jornalista galego que conheço pessoalmente e em quem tenho a máxima confiança jornalística, Ernesto Pombo: “com isto concluo, caros senhores, que tenho de anunciar a sentença do Fiscal Geral”.
Quer isto significar que a deriva política da justiça espanhola vai ao ponto de influenciar o rigor probatório das sentenças proferidas para ferir neste caso quem propôs a nomeação de Ortiz, Pedro Sánchez.
Como todos sabemos, em Espanha tudo é mais intenso, até a deriva política da justiça.
A Ibéria está um primor.

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