
(O fim do ano aproxima-se e é tempo do SNS se confrontar de
novo com a organização da formação especializada que o internato dos jovens
médicos deverá assegurar. É um momento de grande relevância, pois é ele que nos
traz evidência sobre o modo como a carreira no SNS está ou não a interessar os médicos
formados nas diferentes Faculdades de Medicina. A procura social pelas
diferentes especialidades revela-se é óbvio também noutras circunstâncias que,
teoricamente, deveria começar a manifestar-se na formação inicial. A procura
manifestada relativamente às diferentes vagas criadas transporta consigo duas
informações essenciais. Primeiro, do ponto de vista global e absoluto tende a
revelar o interesse dos jovens médicos pela carreira no SNS. Segundo, o modo
como as diferentes vagas de especialidades são preenchidas fornece-nos
informação decisiva sobre o tipo de medicina que se quer praticar. A Ordem dos Médicos emitiu por estes dias um comentário de elevada preocupação
sobre a procura que se manifestou para as formações especializadas que se iniciam
nos primeiros dias de janeiro de 2026. Segundo esse comentário, das 2.331 vagas
abertas, ficaram por preencher cerca de 500, cabendo a fava da baixa procura à
Medicina Geral e Familiar, com 229 lugares por preencher e a Medicina Interna
com 98 lugares vazios. Esta insuficiência de procura para estas duas
especialidades é de certo modo recorrente e revela bem o pensamento e vontade dos
jovens médicos. No caso da Medicina Geral e Familiar basta ter em conta o
número de portugueses sem médico de família para compreender o dramatismo da
situação. No que respeita à Medicina Interna, especialidade que muita gente
considera a verdadeira medicina, já há muito tempo é considerada pelos jovens
médicos demasiado exigente e trabalhosa e seguramente com menos perspetivas de
remuneração atrativa se for vontade dos médicos não manter a exclusividade no
setor público.)
Parece não haver dúvida de que estamos perante formações
especializadas que correspondem a necessidades estratégicas de um SNS que seja
organizado a partir da rede de cuidados primários e valorize a perspetiva integrada
de olhar para a doença. Ora, não sendo a primeira vez que a procura dos jovens médicos
se manifesta neste sentido, o sistema continua a acreditar que basta manipular
a variável do número de vagas abertas para atrair os interessados por essas especialidades
a partir da formação básica que recebem nas Faculdades de Medicina.
Primeiro, não existe evidência segura de que os
diferentes cursos de Medicina organizem os seus conteúdos e práticas médicas de
suporte a pensar na resolução do problema atrás mencionado. Há sempre
obviamente um Professor que pela sua personalidade nos estimula a uma certa especialidade,
mas isso não corresponde a qualquer organização deliberada para influenciar a
formação especializada que se pretende atrair.
O modelo continua a ser o da livre escolha, não oferecendo
qualquer antídoto para contrariar a declínio da procura social pelas referidas
especialidades. Pelo que vou ouvindo e lendo a formação do curso de medicina
continua a ser ministrada como se a repartição pelas vagas disponíveis fosse
uma distribuição neutra, apenas dependente do número de vagas abertas. Isto
parece-me ser uma indiferença trágica e incapaz de modelar a procura social.
Depois, uma de duas. Ou tais especialidades não são consideradas
prioritárias (hipótese algo esdrúxula) ou se são entendidas como prioritárias
então não se compreende como que é a organização do SNS não estabelece
incentivos para captar essa atração desejável.
Podem dizer-me que a Medicina Geral e Familiar e a Medicina
Interna são especialidades muito sensíveis ao sistema de valores que deve acompanhar
as práticas médicas e que em contextos de apreço pelo retorno rápido e chorudo
a sua procura social tenderá a diminuir. Penso que o sistema não tem favorecido
a ideia das vocações naturais e que a exiguidade dos contingentes anuais de
entrada nas Faculdades de Medicina, barrando o acesso à medicina a muitos jovens,
corre o risco de agravar o declínio da procura social mais recetiva a tais
especialidades. Ora, seria nessas circunstâncias que os incentivos
influenciadores da procura, remuneratórios, mas não só, de carreira também,
mais se justificariam.
A organização do SNS é atávica, olha para o problema,
reconhece a sua existência e a Ordem dos Médicos também, mas continua a acreditar
que a procura desejada se formará espontaneamente. A queda no abismo está aí, plena
de evidência, e absurdamente não se vislumbra qualquer ideia ou ação para o
evitar.