quarta-feira, 16 de abril de 2025

TRISTE FIGURINHA DE CRISTÃOS-NOVOS

Ontem e hoje, dois cidadãos tardiamente seduzidos pela intervenção política vieram evidenciar a sua inadaptação ao fato apertado que quiseram vestir. Por um lado, António Costa Silva parece pretender agora entreter o pagode a falar sobre tanto do que em silêncio viu suceder quando era um servil ministro de António Costa – e lá afirma que, afinal, “um pequeno défice não é um problema”, quando bom teria sido se o tivesse feito saber ao seu ex-colega Medina, ou louvar sem critério a maravilha da obra que nos legou nas áreas da Economia e do Mar; chegando até ao ponto de aconselhar a UE quanto à perigosidade de uma retaliação das tarifas de Trump mas à justeza de o fazer nas tecnológicas ou quanto à imperiosidade de nos ligarmos à China e à necessidade de evitarmos que Ursula se assuma como ministra da Guerra da UE. Um verdadeiro poeta do aconselhamento político e da geoestratégia!

 

Por outro lado, o médico urologista Miguel Guimarães (MG) que, após um bem-sucedido desempenho na sua carreira profissional, resolveu ocupar o lugar de bastonário da Ordem dos Médicos e assim ganhou um tão especial gosto pelo protagonismo público que se deixou convencer que uma aproximação ao PSD e alguns fretes correlativos, inclusivamente como irrelevante deputado à Assembleia da República, lhe dariam acesso por direito próprio à sua “cadeira de sonho” na Praça do Município do Porto. Afinal, a sua falta de jeito e alguma dose significativa de presunção e água banda não ajudaram à concretização de um objetivo para que havia outro (Pedro Duarte) com mais razões partidárias para aspirar à função e MG lá vai ter de contentar com a sobra que ainda puder aparecer se se portar bem e o PSD vencer as eleições de maio. Igualmente, uma estranha forma de ser e estar!

 

Intriga-me que esta gente com carreira reconhecida se permita ceder ao brilho das luzes e à inerente vaidade, recusando nesse quadro afirmar a única coisa que neles seria distintiva, o pensamento e as opções que poderiam exprimir em nome do conhecimento e da independência que adquiriram ao longo de décadas de uma atividade específica e largamente exterior à política ativa e partidária. O mesmo se diga, aliás, do(a)s cientistas que largaram os seus laboratórios para se tornarem deputados ou governantes destituídos de quaisquer qualidades suscetíveis de os levar a contributos minimamente pertinentes ou valorosos ou do(a)s empresário(a)s que tiveram o enorme mérito de lograrem criar riqueza (às vezes em dose assinalável) e que depois se arrogam, à luz desses currículos, em grandes e proclamatórios arautos de receituários, quase sempre muito liberalizantes, a impor ao País com vista a colocá-lo em poucos anos, como só a experiência deles indicia e demonstra, num rumo de mudança e felicidade para todos.


OS MICRO (MACRO) COSMOS DA CRISE SOCIAL

 


(Embora oficialmente a campanha eleitoral não tenha ainda começado, a verdade é que o ambiente eleitoral está fervilhante, os debates televisivos assim o determinam e o governo de gestão de Montenegro é-o sobretudo porque está apostado em levar a gestão eleitoral até às últimas consequências. Assistiremos, por isso, ao esgrimir de posições e argumentos sobre a situação económica e social do país, muitos acreditando que o estado da economia marca o sentido de voto de muita gente. Talvez não seja propriamente a economia a determiná-lo, mas antes a forma como essa economia chega aos bolsos dos eleitores, seja na sua folha salarial ou nas suas compras diárias, seja na dificuldade com que consegue pagar a renda ou a prestação mensal dos seus empréstimos, proporcionar aos filhos algum conforto e, mais remotamente para muitos, poder gozar alguns dias de repouso para pelo menos deixar de se atormentar episodicamente com os seus problemas. Para muitos o país está numa crise social penosa para um conjunto muito significativo de famílias. Mas o que parece existir é uma profunda dissonância entre evidências macro e micro dessa crise e é essa dissonância que explica em grande medida a tal contradição entre as perceções e as evidências mais objetivas, designadamente estatísticas, da incidência dos problemas. Do ponto de vista político, a utilização de indicadores estatísticos para cobrir objetivamente esse debate tem de ser concretizada com imensas cautelas. Eles são fundamentais para alimentar um Polígrafo de qualidade, discernindo entre o que é fake e deturpação ignóbil da realidade e o que é objetivamente verdadeiro. Mas as estatísticas oficiais, e há que reconhecer a melhoria significativa da sua qualidade nos últimos anos, tornando incompreensível a recente substituição do Professor Francisco Lima da direção do INE, enfrentam frequentemente dificuldades de alinhamento temporal com o tempo em que o debate político está ao rubro e de cobertura de dimensões mais micro da realidade económica e social.)

É, por isso, que sempre me habituei a ganhar destreza na combinação da informação estatística mais recente e fundamentada possível com o recurso a indicadores indiretos das mesmas situações, alimentados a partir de informação construída a partir da prática das instituições que dificilmente são incorporados nas estatísticas oficiais ou que se isso acontecer será tardiamente.

Esta questão tem merecido a minha atenção nos últimos dias, sobretudo porque uma catadupa de pequenas, mas relevantes informações, se tem sucedido, trazendo ao debate social tons mais carregados que deveriam atravessar a frequência fervilhante dos debates televisivos, mas que não tem conseguido impressionar os protagonistas.

Uma dessas informações indiretas veio a público a partir da DECO e alerta-nos para que o número de pedidos de ajuda para conseguir pagar a renda da respetiva casa está a aumentar de modo alarmante, sobretudo na sequência dos apoios à renda estarem a acabar e de alguns atrasos no pagamento de outro tipo de subsídios como os do PORTA 65. Este indicador vale o que vale, mas constitui a melhor expressão de uma das expressões mais significativas do problema da habitação em Portugal –a insolvência de uma fração significativa de procura de habitação. E não me venham com a questão do mercado à baila. Este é o exemplo mais flagrante da falha de mercado – a procura existe, mas em grande medida não é solvente, o que significa que o mercado não funciona. Mercado, o tanas.

Na mesma linha de enquadramento, há uns tempos uma outra notícia impressionou-me de sobremaneira. Relatos de serviços da Segurança Social diziam que o número de crianças em risco e sem casa digna estava de modo preocupante a aumentar devido às dificuldades das mães e/ou pais em resolver o seu problema habitacional. E o tema das barracas parece regressar para mal da nossa dignidade como país ou Cidade.

Noutro plano, desde que ingressei nestas lides bloguistas, o fenómeno dos internamentos sociais nos hospitais do SNS está aí para incomodar os bens intencionados. Existe uma dimensão deste problema que está relacionada com a insuficiência de investimento público na área dos cuidados continuados. É talvez aquele que pode ter mais evolução na sua mitigação, haja vontade política para o resolver. Mas uma outra parte do chamado internamento social que penaliza a capacidade de internamento dos hospitais do SNS tem uma dimensão exclusivamente social e está relacionado com a desintegração social e dos laços familiares, alimentando paredes meias o fenómeno das pessoas em situação de sem abrigo (PSSA).

Diria que estamos perante dimensões micro de uma dimensão macro de empobrecimento e de desigualdade, na qual se combinam, explosivamente, um modelo de baixos salários, o envelhecimento galopante e o deslaçamento das relações sociais e de entreajuda.

Uma crise social sistémica complexa exige obviamente abordagens o mais possível integradas, matéria em que a nossa máquina pública não é particularmente ágil e adestrada. Mas complexidade e integração necessária não podem abrir caminho, como muitas vezes acontece, à inépcia e inércia de intervenção. Isso é assim porque há políticas que têm esse efeito de irradiação e de avanço relevante na complexidade. A política de habitação é talvez o melhor exemplo. E, insisto nessa ideia, não me venham uma vez mais com a treta do mercado. Se há política em que a abordagem da AD é um flop de desatino completo é a questão da habitação. E, devo dizê-lo com todas as letras, se a alternativa socialista não conseguir marcar pontos e alcandorar-se a fazer a diferença nesta matéria então podem fazer as malas e dedicar-se a outras ocupações.

 

terça-feira, 15 de abril de 2025

MARIO VARGAS LLOSA

 

(Idígoras y Pachi, http://www.elmundo.es)

(Agustin Sciammarella, http://elpais.com)

 

A morte de Mario Vargas Llosa (MVL), ontem acontecida aos 89 anos na capital do seu país de origem (Lima, Peru), trouxe-me à cabeça memórias difusas de toda uma vida. Para simplificar: um romancista genial, na sua melhor expressão altamente focado na realidade que lhe era mais próxima (a América Latina), que muito contribuiu (com outros, como García-Márquez, Borges, Neruda ou Amado) para me abrir horizontes decisivos na compreensão das especificidades da Região e das vicissitudes políticas que a foram marcando; o autor de duas obras maiores, entre outras igualmente incontornáveis que contribuíram para o seu Prémio Nobel de 2010, como “Conversa na Catedral” (1969) – reportado à experiência social do Peru ditatorial dos anos 50, enraizado nos movimentos de oposição estudantil ao regime autoritário de Adriá, baseado numa conversa entre o filho de um empresário bem-sucedido e o seu motorista e centrado na corrupção como um dos traços mais sistémicos da sociedade em causa  – e “A Festa do Chibo” (2000) – a meio caminho entre ficção e realidade, a narrativa passa-se na República Dominicana e retrata o assassinato do ditador Trujillo (o Chibo) em 1961, os seus antecedentes no apogeu da ditadura durante a década de 1950, a história de uma família ligada ao regime (a de Urania Cabral, que regressa dos Estados Unidos nos últimos dias da ditadura e testemunhará a transição para a democracia), o atentado e as respetivas consequências na Ilha e seus habitantes –, um livro que me permitiu naquele Verão iniciar de modo marcante o gosto pela leitura de duas adolescentes; um intelectual insaciável que se tornaria num cronista versátil e de largo espetro (da crítica literária ao ensaio, de temas de atualidade à política espanhola ou latino-americana, da grande política internacional ao posicionamento ativo e cidadão em matérias de voto, de impacto democrático ou de relevância societal) que acompanhei de perto durante décadas, designadamente no “El País”, e que também se deixou tentar pela incursão direta na política quando, em 1990, decidiu candidatar-se à presidência do seu país contra Alberto Fujimori (que venceria e evoluiria para o autoritarismo e a corrupção); um homem da vida e do mundo que nunca prescindiu da sua irredutível independência, mesmo quando as suas posições de um determinado momento pareciam contraditórias (ou, pelo menos, pouco coerentes) em relação a outras anteriores, fazendo dele um personagem inclassificável – visto à esquerda por força do sentido das suas obras literárias, MVL nunca abandonou um essencial progressismo nos usos e costumes mas também não se coibiu de assumir atitudes (algumas bem discutíveis e até superficiais) lidas como conservadoras em muitas dimensões de incidência política, já para não referir os seus muito criticados aparecimentos nas páginas da “Hola” ao lado da ex-mulher de Julio Iglesias (Isabel Presley), por quem se apaixonou e com quem manteve uma relação altamente polémica e mediatizada, isto numa área em que a pujança das suas paixões sempre tendeu a exceder o convencional e que o levou a acabar os seus dias ao lado da sua prima e mãe dos seus três filhos (Patrícia) em “peregrinação” aos locais mais simbólicos da sua escrita.

MAUS PRESSENTIMENTOS SOBRE A CORRIDA ELEITORAL NO PORTO

 


 (O meu colega de blogue já se referiu à matéria e por isso hesitei em acrescentar algo a este tema. Na verdade, não sendo residente no Porto, embora o filho, nora e netos portuenses impliquem uma relação indireta afetiva com a Cidade, as memórias afetivas sobre a mesma são tão intensas, às quais se juntam experiências de trabalho no passado, que se justifica que, na qualidade de cidadão metropolitano, continue a refletir sobre o futuro político da Cidade. Não é que os problemas de residência em Vila Nova de Gaia, embora possa considerar-me privilegiado por viver em zona urbana residencial calma e estabilizada como é a envolvente a Soares dos Reis e Escola António Sérgio, não sejam mais preocupantes que os do Porto, mas talvez um dia destes quando se perfilarem os candidatos tenha oportunidade para dizer algo como cidadão residente. Por agora, fico-me pelo fado das corridas eleitorais ao Porto político estarem muito longe de entusiasmar os cidadãos, particularmente aqueles que pensam que a Democracia nas cidades é algo que a participação política tem desperdiçado como instrumento de aprofundamento da própria Democracia. Desde os tempos em que Fernando Gomes tinha algum carisma e animava a Cidade com a sua peculiar maneira de fazer política, posteriormente toda essa intuição ruiria para passar a defunto político envolvido nos últimos resquícios da administração de Pinto da Costa na SAD do FCP, rumo apenas interrompido pela esperançosa candidatura de Elisa Ferreira, o PS tem-se entregue a uma inércia de representação que tem contribuído ativamente para o definhamento daquele Porto liberal e generoso que conhecíamos e do qual nos orgulhávamos.)

O último mandato de Rui Moreira é, no meu entender metropolitano, uma profunda desilusão. Fica a impressão que o ainda Presidente da Câmara Municipal do Porto viveu este mandato a contragosto, aspirando por algo que não conseguiu definir e perseguir com afinco e coerência. Essa atitude de nem-nem penalizou fortemente o movimento político que o elegeu e muito dificilmente o pressuposto candidato Filipe Araújo, do que aliás tenho as melhores impressões, esclareça-se, terá condições para se sobrepor às candidaturas partidárias que estão perfiladas.

Retirando a expressão da sua animosidade contra a lentidão (benevolamente atrasos inevitáveis de construção e não possíveis ineficiências organizacionais, que podem bem existir) das obras do METRO, Rui Moreira perdeu Voz e gás na sua luta pela descentralização e dignificação política da Cidade, que ansiava recuperar o seu espírito liberal e combativo. Do meu radar político, a vereação das questões educativas e sociais, Fernando Paulo, destacou-se e foi nessa área de intervenção que este mandato de Rui Moreira vai deixar algum rasto. Por outro lado, a passagem de Ricardo Valente pela vereação com as questões do desenvolvimento económico, inovação e promoção internacional da Cidade acabou por ser um equívoco. A sua conceção da Cidade como agente imobiliário deixou muito a desejar e foi sem surpresa que o vejo a prosseguir a sua atividade profissional como Diretor-Geral da Savills Porto, tudo acaba na sua perfeita coerência.

Reconheço que ter uma Cidade agredida durante tanto tempo com obras da dimensão das novas linhas do Metro não é propriamente a condição ideal para deixar marcas urbanísticas e de mobilidade marcantes. Até porque há sítios emblemáticos da Cidade atingidos no seu âmago pelos atrasos do projeto como o são por exemplo a ligação entre a Praça da Liberdade e a Estação de São Bento e subida para a ponte D. Luís, o Carmo e a ligação à Cordoaria, a Praça da Galiza, o Campo Alegre. Mas a história do metrobus na Avenida da Boavista já cheira a ridículo, tantas são as indecisões e não previsibilidade atempada das dificuldades de fornecimento de material circulante ao projeto.

Mas as expectativas de coesão territorial que andavam associadas ao Master Plan para a zona oriental da Cidade tardam em ganhar forma e expressão concreta, o que se vê é o avanço não sabemos se devidamente regulado dos apetites de valorização imobiliária, sem que estruturalmente as insuficiências associadas a essa zona tenham experimentado correção que se veja. Por sua vez, a ideia do Porto Innovation District em torno do pólo da Asprela da UP e e dos respetivos interfaces de investigação como o INESC TEC, o INEGI e o ISSS e sua ligação aos vazios urbanos de Contumil e zonas adjacentes continua a ser uma miragem.

Significa isto que, estrategicamente, a Cidade continua num limbo e que haveria matéria bastante para animar uma corrida eleitoral com uma outra expressão apelativa. Já não seria pedir muito exigir por exemplo que os candidatos se esforçassem por abordar o tema da turistificação da Cidade, claramente em curso, não apenas com a eterna questão do alojamento local, mas sobretudo agora com o crescimento desmesurado do número de hotéis que vão surgindo como cogumelos em diferentes pontos da Cidade.

Pois o que temos na forja não é apelativo e não desperta qualquer entusiasmo em diferentes grupos de atenção dirigidos para a Cidade.

A candidatura do PS protagonizada por Manuel Pizarro parece apostada na velha convicção de que tantas são as tentativas que alguma haverá de resultar. Perseverança e experiência serão as palavras-chave, mas ideias apelativas sobre o futuro estratégico da Cidade parecem escassear ou então o candidato entende que não é tempo de desperdiçar cartuchos. Continuo a pensar que o PS teria um vasto campo de atuação se fosse mais fundo na sua relação com o movimento associativo que continua a fazer diferença no Porto, que fez a diferença em termos de resiliência aos avanços que Rui Rio protagonizou sobre esse Porto mais livre, por ele confundido com esquerdização da Cidade e elitização excessiva da mesma. Estou pessimista quanto à energia que Pizarro apresente nesta sua terceira tentativa, mas espero benevolamente ser surpreendido.

O PSD optou com pompa e circunstância, a arruada do Bolhão foi paradigmática, por um candidato que não é destituído de intuição política e que ambiciona a mais altos voos no partido. Pedro Duarte cola-se como uma luva ao PSD atual e, embora se sinta incomodado no Princípio da Incerteza por ter ao seu lado direito José Pacheco Pereira com aquele olhar fulminante que mede cada argumento do seu (ainda) colega de partido, lá vai tentando montar uma imagem de político não troglodita e defendendo sobretudo a sua própria imagem da governação de Montenegro. Não será obviamente a sua participação no programa de Carlos Andrade que lhe vai garantir votos na Cidade, mas fica sempre bem aquele patine de comentador aberto ao diálogo político. Não antevejo que dali saiam grandes rasgos para o desenho do futuro da Cidade, mas benevolamente como em relação a Pizarro, espero ainda ser surpreendido.

Quanto aos restantes candidatos, as perspetivas do movimento que levou Rui Moreira ao poder de colocar Filipe Araújo na corrida são bastante interrogadas e não desdenharia que em período de preparativos existisse uma aproximação ao PSD de Pedro Duarte.

Quanto ao PCP e ao Bloco de Esquerda não será seguramente com a campanha no Porto que aquelas duas forças políticas irão recuperar forças. Veremos como sairão do ato eleitoral de 18 de maio para ajuizar se alguma ideia interessante poderá brotar das suas candidaturas à Câmara Municipal.

Onde se nota algum vazio, sinal dos tempos, é no movimento associativo mais basista que continua a preferir a correr por caminhos próprios de resiliência em detrimento de poder ganhar alguma expressão política. É pena, pois considero que é por aqui que passa alguma diferença resiliente do Porto. Claro que o envelhecimento de alguns animadores locais retirou da contenda muita gente que ainda a ter energia é para os seus próprios projetos que bem dela necessitam.

O panorama de definhamento do poder intelectual e de intervenção pela diferença na Cidade parece-me claro e instalado e provavelmente não serão as próximas eleições locais a marcar uma rotura com esse estado das coisas. O que mostra que a tentativa de construir alguma coisa em torno do futebol como marca de afirmação da Cidade parece ter falhado. Por outro lado, projetos como Serralves ou a Casa da Música (parabéns a quem lá trabalha pelos 20 anos) já estarão noutro campeonato, o da internacionalização.

O centralismo da Capital agradece reconhecido esta inação.

Onde estás tu, Ó espirito liberal e combativo de outros tempos?

segunda-feira, 14 de abril de 2025

O TRIPLO YASU OU O FIM DO PRIVILÉGIO EXORBITANTE?

 


(É o assunto económico de momento e este meu espaço de blogue tem dificuldade em escapar à sua influência. Todos os cronistas de renome internacional com presença na blogosfera económica têm escrito sobre o assunto. Dou conta por isso do frenesim interpretativo que circula pelas principais revistas. Também o Economist, pela pena de Adam Roberts, a ele dedica a atenção devida. Fá-lo invocando por comparação com o que foi observado no Japão nos anos 90. Recordo-me que na minha disciplina optativa de Ciclos Económicos que lecionei na FEP e onde estudámos as crises cambiais asiáticas e a situação de estagnação económica prolongada que a economia japonesa atravessou naquele período, o chamado “triplo yasu” aconteceu quando também em simultâneo se registou a queda do mercado bolsista, a subida dos yields dos títulos designadamente dos do Tesouro e a queda do valor do yen. Mas, ao contrário do observado no Japão, em que o yen não era uma moeda hegemónica nas trocas internacionais, algo de similar está a acontecer nos EUA atingindo com algum estrondo a moeda dominante. Quer isto significar que a situação de “privilégio exorbitante”, a quem alguém - Barry Eichengreen, "Exorbitant Privilege: the Rise and Fall of the Dollar and the Future of the International Monetary System", Oxford University Press, 2012, chamou a capacidade do dólar se impor nesse estatuto hegemónico e assim permitir aos EUA o financiamento permanente dos seus défices orçamental e externo corrente, pode estar em risco e assim baralhar as contas da errática administração Trump. Se essa tendência se reforçar, seja por movimentos de pânico e desconfiança irreversível entre os investidores, seja pela teimosia do gangue de Trump, é o próprio sistema financeiro internacional que sofrerá de novo um abalo significativo, pois ele foi concebido no pressuposto que os títulos do Tesouro americanos e os seus derivados representavam um investimento seguro.)

Até aceito que, entre os apaniguados de Trump, a possibilidade de ganhar uns milhões em processos de arbitragem tornados possíveis por informação de “inside trading” a propósito da errática política aduaneira que tem sido praticada terá sido bem apreciada. Mas duvido que essa ganância especulativa tenha pressentido que uma crise financeira sistémica poderia estar a ser gerada e que a hegemonia do dólar pudesse estar em risco.

Em matéria de comunicação, mesmo que insidiosamente trabalhada através dos seus órgãos de estimação, combinar a ambição do MAGA com a queda da hegemonia do dólar e a sua inesperada depreciação não vai ser tarefa fácil. Só posso compreender os sucessivos e imprevistos recuos de Trump em matéria aduaneira à luz da sua incapacidade de antecipação deste pouco canónico comportamento dos mercados. E, como se sabe, até o anunciado e possível efeito de receita fiscal gerado pelos direitos aduaneiros quando eles não conduzem a zero de importações, pode ser engolido pela subida dos yields dos títulos. Além disso, o endividamento líquido do Governo Federal monta já a 100% do PIB americano.

Se este cenário se agravar, teríamos o paradoxo do discurso fanfarrão de Trump que apontava a dobrar os seus principais parceiros (inimigos) comerciais se voltar contra si próprio, provocando mais danos a nível interno do que a nível externo.

E, tal como Adam Roberts o relembra com pertinência, alguns Bancos do sistema da Reserva Federal estão a trabalhar com expectativas de inflação de 3,5 a 4%, sendo as previsões alimentadas pelos consumidores ainda piores, estimando taxas de inflação de 6,7% para o próximo ano.

É conveniente recordar que foi a inflação o principal fator de distorção das perceções quanto à administração Biden. Foi a inflação e a degradação dos rendimentos reais de alguns grupos de população que alimentaram a perceção de que a economia americana estava num mau momento e que a campanha eleitoral dos Democratas não conseguiu inverter.

Tal como o tenho sugerido em posts anteriores, sendo de esperar tudo e mais alguma coisa de uma administração tão arrogante e maléfica como a de Trump, dificilmente a Reserva Federal estará a salvo da tentativa de intromissão política na sua independência. Mas se isso vier a suceder ainda mais compreensivelmente se agravará a perda de confiança internacional na hegemonia do dólar e no sistema financeiro internacional concebido no pressuposto de que os títulos e moeda americanos são porto seguro para os investidores.

AUTÁRQUICAS NO PORTO

Enquanto prossegue animada, embora bastante básica, a discussão em torno das Legislativas, as Autárquicas do Outono já vêm mexendo desde há anos. Primeiro, porque se trata da chegada ao fim de Rui Moreira (RM), impedido de se recandidatar, e de uma sucessão apetecível para qualquer dos lados mais habitualmente ganhadores (PSD e PS). Depois, porque ainda havia algumas ilusões sobre uma eventual continuidade independente no Porto através do movimento que RM protagonizou e a que não soube ou não quis dar a devida e natural sequência, podendo ser o seu vice-presidente Filipe Araújo (FA) o assumido herdeiro do que restou, e não foi muito, dos doze anos transcorridos. Finalmente, porque os socialistas muito cedo permitiram que Manuel Pizarro (MP) fosse avançado como o nome do seu cabeça-de-lista, enquanto os bastidores social-democratas oscilavam à volta de múltiplos nomes (do regresso de Rui Rio ou de alguém por ele lançado, como seria o caso de António Araújo, de António Tavares a Miguel Guimarães, entre outras hipóteses que andaram nas bocas do mundo) para se fixarem no de um Pedro Duarte (PD) que foi preparando cirurgicamente a sua aproximação ao que chamou a sua “cadeira de sonho” (incluindo a notoriedade ministerial, a candidatura à Distrital do partido, a substituição de Miguel Macedo no “Princípio da Incerteza” ou o lançamento no Bolhão em pífia ação mista de governativa e partidária). Em paralelo, importará também perceber o posicionamento definitivo de FA e da “Iniciativa Liberal”, que esteve com RM nos três mandatos, e que se juntará a PD ou apresentará candidatura própria em função dos resultados de 18 de maio, bem assim como perceber aspetos mais marginais como o do conteúdo pessoal e substantivo da candidatura do “Chega” (que não parece suscetível de grande otimismo para as suas hostes) e o das intenções do “Livre”.

 

Em suma, temos agora um previsível confronto renhido entre MP e PD, com o “à terceira é de vez” desejado pelo socialista a chocar com o “não há duas sem três” que o social-democrata lhe vaticina. Mas se nos colocarmos na cabeça de um portuense médio, o certo é que os cenários não lhe surgem como auspiciosos, entre optar por um derrotado bem conhecido (e programaticamente vazio) ou por um ministro alinhado e ainda largamente incapacitado de demonstrar do que seria capaz para além da sombra protetora de Montenegro e do seu primeiro ano governativo, avaliado por uns como mais positivo do que era esperado e por outros como resultado de uma boleia do excedente estupidamente deixado por Costa e Medina. E é aqui que entra a entrevista de PD ao “Expresso” do último fim de semana, na medida em que a mesma me parece revelar uma razoável indefinição estratégica, algo perdida entre uma postura aberta e largamente visando a captação de algum eleitorado independente e de centro-esquerda e uma persistente ligação ao muito crítico discurso governativo face ao PS (“o PS ultrapassa em muitas circunstâncias o BE pela esquerda”) e a uma espécie de quadratura do círculo entre o legado de Rui Rio (“coisas bem-feitas” e “fonte de inspiração em muitas áreas”) e o que Rui Moreira pretendeu trazer de rotura em relação ao seu antecessor, aqui valendo-se de personagens que estiveram com um e com o outro mas que já pouco significado terão para a maioria do eleitorado em presença. Veremos se PD conseguirá abrir mais declaradamente à sociedade civil e assim vencer o “mais do mesmo” de MP, se vencerá este por conta de ajustes aritméticos eleitorais que tenham a IL e/ou FA por muletas e o CDS por “custo de contexto” ou se nenhuma das alternativas anteriores prevalecerá e acabará por se não sentar na “cadeira” que diz ter por aspiração de vida.

domingo, 13 de abril de 2025

ESTÁ A AMÉRICA À VENDA?

 


(Se é verdade que a equipa MAGA parece continuar a apoiar o seu treinador e impulsionador, não é menos verdade que os apoiantes não MAGA de Trump estão em fase de debandada, descoroçoados pelo início da governação. Continuo a pensar que será pela via dos efeitos erráticos da política económica de Trump que os fundamentos da sua desabrida ação irão ser perturbados. Os últimos dias configuraram o que pode vir a ser uma primeira brecha nessa pretensa política fora da caixa. A sequência observada foi alarmante: primeiro, vendas alarmantes de ações; segundo, perturbações no mercado de títulos do tesouro com vendas significativas desses títulos, considerados como porto seguro para os investidores; terceiro, emergiu também a tendência para a venda da própria moeda americana. Esta última evidência da passada semana é a mais preocupante, pois perante a subida da taxa de juro efetiva (yields) dos títulos a procura de dólares deveria estar a aumentar e apreciar-se por essa via. Ora o que tivemos foi uma venda de dólares nos mercados. Ou seja, os mercados revelaram nos últimos dias vendas simultâneas em massa de ações, títulos do tesouro e dólares, como se os investidores quisessem ver-se livres da própria América. O que é a mesma coisa que dizer que a hegemonia do dólar foi posta em causa. Isso não significa que possamos ter uma tendência acabada nos próximos tempos. Mas o que interessa assinalar é que a convergência daqueles três padrões de vendas em mercado há muito que não era vista e isso só pode significar estupefação e uma profunda desconfiança com a falta de sustentação da política de aplicação indiscriminada de direitos aduaneiros. A situação registada nos EUA na passa quinta-feira era, assim, muito semelhante à dos casos conhecidos de economias emergentes perante uma crise financeira. As taxas de juro elevadas em vez de atrair mais capital eram entendidas como sinal de pânico financeiro, convidando à venda de dólares e à precipitação da sua cotação. Como foi anteriormente referido, essa libertação de dólares não é uma qualquer. Passa-se com a moeda de referência da economia mundial até agora, pelo que o seu significado não pode ser entendido de ânimo leve e isso teve manifestamente impacto na administração americana.)
O que se terá passado então nos últimos dias da semana passada
?

Não há sinais seguros de que essa tendência vá persistir nos próximos dias. Estima-se que tenham sido estrangeiros proprietários de títulos americanos que tenham vendido esses ativos em busca de moedas que estivessem por esses dias a reforçar o seu valor face ao dólar. Explicação mais complexa, porque essa atividade é mesmo complexa, envolve a atuação dos chamados “hedge funds” (fundos de cobertura em português) e essa dispenso-me de a incluir neste texto, já que este blogue não tem seguramente na complexidade financeira a sua razão de ser.

O que parece, entretanto, de relevar é a extrema volatilidade que a situação evidenciou, sobretudo do ponto de vista do contágio registado entre a tensão e instabilidade no mercado de títulos e a oferta e procura da moeda americana. Estes fenómenos de contágio costumam observar-se nos períodos iniciais de algum pânico financeiro e isso é que parece preocupante do ponto de vista do que aqueles movimentos de quinta e sexta-feira podem querer significar.

Em meu modesto entender, o que a volatilidade do fim da semana passada evidencia é a profunda desconfiança dos investidores quanto à lógica subjacente que pode ser descortinada para o descalabro da política aduaneira em curso.
Num post publicado no Bluesky, Joe Politano descrevia com espanto essa ausência total de lógica:

O exemplo de Politano mostra a aberração da decisão de, no que respeita à eletrónica, os produtos intermédios estarem a ser tributados em muito maior escala do que os produtos finais que os incorporam, o que não lembra de facto ao diabo. E como Brad DeLong o assinala com pertinência, mais do que a imposição dos impostos aduaneiros, o que choca mais o mercado é a volatilidade das decisões que acompanham as imposições. Essa volatilidade mina de facto a confiança dos investidores, pois ao contrário dos benevolentes intérpretes das tropelias de Trump essa volatilidade o que significa mais do que tudo é a ausência de racional para as mesmas. Por outro lado, imagina-se a densidade do “inside trading” que estará a acontecer entre os principais apaniguados de Trump. A literatura económica dos direitos aduaneiros mostra com clareza que a principal beneficiária da volatilidade da política aduaneira é a corrupção que o “inside trading” proporciona.

Pertencendo o futuro aos Deuses, o que podemos dizer com segurança é que a semana passada quebrou a costumeira relação observada nos mercados financeiros: yields (taxas de juro efetivas mais altas) significam regra geral um dólar mais forte (apreciado). O que aconteceu foi rigorosamente o contrário.

Não sabemos se por momentos episódicos se, pelo contrário, anunciando perturbações futuras, o dólar deixou de ser moeda de referência para alguns investidores e isso traduziu-se na sua venda em massa.

Será que a libertação de dólares irá continuar? Será que moedas como o euro ou o yen terão a sua oportunidade para equilibrar o seu papel de atractores para os investidores internacionais? Será que os rendimentos dos títulos alemães agora em baixa porque estão a ser procurados como alternativa vão permitir à Alemanha uma outra margem de manobra para o endividamento que acompanha o acordo de governo entre a CDU e o SPD?

São todas elas dúvidas compreensíveis, mas talvez a mais importante seja a de antecipar qual vai ser o comportamento do FED USA (Banco Central)? Vai ele sancionar a desprovida de racionalidade política ação em curso da administração Trump?



COM VITORINO NA MAIA

Numa sessão em que participei ontem, realizada no “Fórum da Maia” e em início de comemoração dos 25 anos da AEBA (Associação Empresarial do Baixo Ave), confirmei ao vivo as qualidades que fariam de António Vitorino (o outro palestrante) um excelente candidato à Presidência da República. Quer na forma, quer no conteúdo, Vitorino esteve muito bem, despretensioso e divertido numa matéria que pouco o proporciona mas também competente e rigoroso na abordagem das atuais tensões geopolíticas e dos seus impactos económicos. Mais em concreto, falou-nos de uma situação de enorme incerteza que apenas nos sugere duas certezas – a de que não voltaremos ao ponto em que estávamos antes da chegada de Trump, um mundo multilateral e de comércio regulado, e a de que este será o ponto de partida de um inevitável retrocesso da globalização – e uma probabilidade – a de que iremos assistir a uma forte crise do multilateralismo, com epicentro na OMC; falou-nos também do facto de a guerra tarifária e comercial constituir um pretexto para o realinhamento das estratégias económicas à escala global; falou-nos ainda do posicionamento da UE num contexto em que vai partir às cegas para negociações cujo alvo é completamente desconhecido e mutável quanto à contraparte americana, sublinhando ademais o eventual erro tático cometido por Trump ao manter uma tarifa única e assim ter ajudado indiretamente a manter a unidade europeia, e referindo adicionalmente a relevância de não serem desprezados os riscos provenientes de uma tentação de incrementar relações com a China e os três tipos de grandes vulnerabilidades e limitações que a afetam (persistente dependência em Defesa, dependência energética por via do grande montante de importações de gás liquefeito americano com que foi concretizado o de-risking em relação à Rússia e ausência de peso no tocante às grandes plataformas digitais globais que se localizam na China e EUA); e falou-nos finalmente de Portugal, sustentando que o nosso caminho tem de ser europeu, que não devemos deixar-nos ofuscar pela geoestratégia mas sim forçar que se encarem as muitas questões internas em presença (com destaque para umas Perspetivas Financeiras 2027/34 que trarão um novo quadro de referência, especialmente no que tal significará de desmembramento da Política de Coesão e da sua futura submissão a uma diversidade de políticas setoriais) e um trabalho de definição de um elenco de interesses nacionais associados à nova situação e capazes de garantir ao País uma consistência adequada nas reconversões a promover e nas oportunidades passíveis de serem coletivamente aproveitadas – toda uma nova agenda, pois, na qual tanto importaria que elegêssemos um Presidente mais sábio do que atento às luzes que brilham à sua volta; Vitorino – talvez menos hesitante do que realisticamente expectante em relação às pretensões, que me parecem totalmente ilusórias, de António José Seguro – seria, como atrás disse, uma hipótese plenamente ganhadora.


sábado, 12 de abril de 2025

A IMBECILIDADE E A LIGEIREZA FEITAS CRÓNICA

 


(É raríssimo ler um jornal económico nacional. A espécie não abunda e no meu entender talvez excessivamente crítico a sua baixa qualidade média não justifica o dispêndio. Já não estou a referir-me à venalidade manifesta de algumas das notícias por eles veiculadas, basta-me o reconhecimento da baixa literacia económica da maioria dos jornalistas de tais órgãos, em que a combinação da precariedade e da formação em economia às três pancadas é verdadeiramente explosiva, conduzindo a um desastre anunciado. Por isso, este post só tem lugar porque o meu colega de blogue me alertou para uma crónica do Jornal Económico, em que o bom nome de um dos patronos deste blogue, Alfred O. Hirschman, é posto em causa pela pena de Martin Avillez Figueiredo (MAF). Apenas o nome do cronista justificou o enfado de ter de escrever algumas linhas para denunciar a imbecilidade e a ligeireza do referido artigo. De facto, o MAF prometeu muito e chegou a perfilar-se como um intelectual de direita liberal que valia a pena ser lido, pelo menos pelo atrevimento fundamentado de algumas perspetivas de análise. Resumidamente, a crónica de MAF pretende associar o nome de Hirschman a uma das inspirações possíveis de Trump para nele basear a sua política comercial externa disruptiva, estúpida e arrogante com que ameaça destruir não apenas a marca de hegemonia benevolente associada aos EUA, mas também a confiança na economia mundial. A destruição desse argumento é simples, porque ele enviesa o significado e coerência de toda uma obra, concentrando-se numa obra dos anos 40, que aliás interpreta mal.)

Numa crónica por mim publicada neste blogue em 30 de janeiro de 2012, ou seja, há treze anos e picos, trouxe para a reflexão o que me parece ser a interpretação correta da obra que pressupostamente MAF associa à inspiração para as tropelias de Trump: “A obra chama-se “National Power and the Structure of Foreign Trade”. Inicialmente escrito nos primeiros anos da década de 40 e editado em 1945 pela Universidade da Califórnia (Berkeley), com uma reedição e pequena extensão em 1980, o texto é visto como o estudo pioneiro do modo como o comércio internacional pode representar um instrumento de dominação”.

O que Hirschman pretendia nos anos 40 com a sua meticulosidade habitual, era demonstrar como o domínio do comércio mundial representou para o nazismo um instrumento de dominação internacional, através de uma lógica simples: fazer com que as nossas exportações representem uma parcela significativa das importações dos nossos inimigos e que as importações realizadas a partir desses países representem uma mínima expressão das nossas diversificadas importações. A lógica é simples – concentrar para ferir os nossos inimigos e diversificar para reduzir dependências incómodas.

Trata-se, por isso, de uma obra extremamente datada, mas que permite compreender a importância que Hirschman atribuía à análise e à economia estruturais, introduzindo uma variante de que a geografia faz a guerra. A estrutura do comércio internacional é atravessada por lógicas de poder, sendo por isso passível de ser organizada segundo essa mesma lógica e o nazismo seguiu escrupulosamente essa regra na antecâmara da sua ofensiva sobre o mundo livre.

Atribuir a Hirschman a inspiração das tropelias de Trump representa uma abusiva interpretação de toda a vasta obra de um dos patronos deste blogue. É simples encontrar na obra de Hirschman argumentos para destruir essa ideia de inspiração, começando pela atenção que o economista refugiado nos EUA e que participou nos trabalhos de preparação do Plano Marshall concede às relações inter-industriais”, os célebres “linkages” de Hirschman. Com base na compreensão das relações interindustriais, será fácil compreender que alguns dos direitos aduaneiros colocados por Trump fogem a qualquer racionalidade económica, pois atingem materiais que são produtos intermédios cruciais para a economia americana, que nunca será capaz de rapidamente substituir esses produtos intermédios, produzindo-os a nível nacional.

Aliás, imagino que Hirschman terá dado algumas voltas no túmulo, incomodado por esta associação. MAF faz parte daquele grupo de cronistas, economistas e não só, que doutamente tentam encontrar alguma racionalidade no comportamento de Trump e do seu gangue mais próximo. MAF faz referência ao economista Stephen Miran, a que já aludimos neste blogue, cuja argumentação se baseia erradamente numa tautologia, como o são todas as relações que envolvem a balança de pagamentos.

Como temos vindo a desenvolver em várias crónicas, a política económica de Trump é errática e assenta no revivalismo mercantilista que conduzirá em última instância ao isolacionismo americano, incompatível com a continuidade da hegemonia do dólar.

Encontrar racionalidade no mais puro narcisismo patológico e encontrar supostamente na obra de Hirschman a inspiração para esse devaneio é, por um lado, errado e assenta, por outro, numa ligeireza de interpretação de uma obra datada no tempo, concebida para demonstrar como o nazismo tinha uma conceção de poder internacional veiculado primeiro pelas trocas e depois pela força das ocupações. Ora, da crónica do Económico, não transparece que MAF queira associar a Trump a imagem de manipulação nazi do comércio internacional.