domingo, 23 de março de 2025

O BLOCO DE ESQUERDA TOCA A REBATE

 


(O Bloco está claramente em dificuldades, não me sendo por agora claro se o declínio das suas posições se deve à incapacidade de ler o contexto mundial e retirar daí as devidas implicações ou se é o novo espectro político nacional gerado com o elefante na sala dos 50 deputados do Chega a explicar que não tenha acertado uma nos últimos tempos. O toque a rebate com a chamada ao ato eleitoral de maio de 2025 de Francisco Louçã, Fernando Rosas e Luís Fazenda em lugares potencialmente elegíveis mostra bem o flop que tem sido a liderança de Mariana Mortágua. Esse flop tanto pode ser devido à incapacidade de se fazer ouvir no atual contexto nacional e internacional, como à dificuldade de suceder a uma Catarina Martins com maior empatia com o eleitorado e, arrisco dizê-lo, mais genuína no modo como comunica com o seu eleitorado, que está a encolher. De facto, os tempos em que a valia intelectual dos seus principais dirigentes se afirmava no plano político e o Bloco gozava dos benefícios de uma comunicação social seduzida pelo seu discurso fraturante são, nos tempos que correm uma recordação nostálgica para os dirigentes atuais. É um facto que as contradições internas vindas a público com a sua política laboral interna em período de encolhimento do número de deputados e do financiamento público correspondente ajudaram a cavar ainda mais o buraco latente, sobretudo pela inábil tentativa de esconder a contradição, ignorando que todas as organizações, incluindo as empresas, enfrentam períodos de rarefação de recursos que exigem respostas consequentes, nas quais é difícil manter a coerência das ideias apregoadas para os outros. Mas o que me espanta neste declínio é que temos de cavar muito para encontrar nos últimos tempos uma ideia política relevante que seja. O Bloco apresenta-se como um partido claramente ultrapassado pelos acontecimentos, incapaz de marcar algumas dimensões do debate político e longe vão os tempos em que, por exemplo, a questão da fiscalidade e da financeirização da economia se destacava no debate político e nem provavelmente este toque a rebate e a chamada ao palco dos velhos nomes do partido colocará o partido a salvo do risco da irrelevância política…)

Espanta-me também que a nível da produção de ideias que espaços como o Ladrão de Bicicletas, espaço de blogosfera em que pressentíamos alguma agitação de pensamento, o conformismo parece estar instalado e nada de substancialmente renovador e entusiasmante. João Rodrigues, economista com algum pensamento, parece perdido nos meandros da academia e Ricardo Paes Mamede (RPM), que continua a ter bom acesso à televisão pública e aos jornais, principalmente o Público, parece neste momento mais rendido às suas funções no ISCTE do que propriamente a contribuir para a renovação sensível do pensamento do Bloco. Os seus recentes escritos no Público sobre a situação europeia, particularmente sobre as questões da defesa e segurança, são um conjunto de banalidades que evidenciam uma preocupante incapacidade de compreender o imbróglio em que a União Europeia está mergulhada. Perante esta guinada revivalista de Pedro Nuno Santos a reclamar um novo relatório Porter para relançar os rumos do país, esperar-se-ia que, face ao conhecimento que RPM possui das questões da inovação tecnológica em Portugal, pudesse aparecer com alguma reflexão relevante nessa matéria e como dessa reflexão está a esquerda necessitada. A norte, o panorama também não é animador. João Teixeira Lopes não está propriamente desaparecido em combate, antes essencialmente voltado para as questões da investigação académica e também não tem animado o panorama de novas ideias.

Todos sabem que nunca morri e não morro de amores pelo pensamento do Bloco, mas custa-me assistir ao seu apagamento, mostrando uma vez mais que a valia intelectual e académica das lideranças e principais nomes de um partido não é condição suficiente para afirmar a sua diferença no espectro político relevante e interveniente.

Regresso á minha interrogação inicial: não consigo por agora discernir se este apagamento resulta da dificuldade de entender a complexidade do contexto mundial e europeu em que a prática política é desenvolvida, se pelo contrário ele faz parte da TPeC (Transição Política em Curso) à esquerda, induzido pelo surgimento do elefante na sala da extrema-direita. 

Mas pensando bem, a ameaça da extrema-direita até poderia revigorar o discurso mais à esquerda do Bloco e não me parece que seja isso que esteja a acontecer. O problema é que as duas questões estão interligadas e daí achar que a transição não está devidamente compreendida pelo Bloco. 

Será que a chamada a terreiro da valia intelectual e experiência política de gente como Louçã, Rosas e Fazenda irá trazer algum ressurgimento de ideias ou o problema é mais vasto e nem sequer essa senioridade tem condições para o resolver ou, pelo menos, mitigar, aguentando?

sábado, 22 de março de 2025

SOBRE O BRANQUEAMENTO DA POLÍTICA ECONÓMICA DE TRUMP

 

                                                                (Financial Times)

(Na imprensa americana que mantém alguns princípios de decência e de liberdade de pensamento e na blogosfera mais especializada está por estes dias instalado um debate interessante que pode resumir-se na seguinte ideia: por detrás da disrupção narcisista de Trump e da necessidade de aparecer frequentemente na televisão existe algum racional de política económica internacional que fundamente as suas erráticas posições? A questão não começou a ser discutida a partir de pronunciamentos públicos do grupo de economistas que lhe é afeto, designadamente do economista-chefe do Council of Economic Advisors Stephem Miran (1). O elemento talvez mais marcante desse acordar para o debate podemo-lo associar a uma longa entrevista da economista do Financial Times, Gillian Tett, concedida ao prestigiadíssimo podcast de Ezra Klein Show. Tett não é uma jornalista qualquer e, por isso, quando ela refere encontrar algo de novo no substrato de toda aquela disruptiva tontaria isso não passaria obviamente despercebido aos analistas mais atentos. As reações mais pesadas em termos de notoriedade equivalente ao de Gillian Tett foram por exemplo as de Adam Tooze, de Bradford DeLong, Paul Krugman e Martin Wolf que, por vias diversas, vieram a terreiro clamar que não é tempo de branquear o que está manifestamente encardido e irrecuperável, sendo antes essencial manter e aprofundar o espírito crítico do que está a ser montado em matéria de política económica internacional. Adam Tooze fala mesmo de risco de que o síndrome de Estocolmo poder estar a acontecer – a tendência para cooperar por medo com os que nos capturam. Admirador de Tett, apetece-me, desolado, dizer, até tu Gillian! O post de hoje é assim uma tentativa de alinhar ideias sobre o referido debate, sobretudo por motivos de saudável precaução. É que, com o desfasamento temporal com que estas coisas chegam a Portugal, apostaria que proximamente o referido branqueamento vai cá chegar muito provavelmente no colinho aconchegado do Observador, que não perde pitada na sua continuada insatisfação por não encontrar cá pelo burgo as forças políticas e os líderes capazes e com tomates para aplicar as suas ideias de um certo libertarismo económico. Vale tudo até transformar-se em órgão explicador da problemática falta de ética democrata de Luís Montenegro.)

A curiosidade da questão está no facto do debate instalado sobre o pretenso racional da política económica internacional de Trump reeditar uma designação de setembro de 1985, conhecida por acordo de Mar-a-Lago. Nessa data, os EUA negociaram a depreciação do dólar então devido à apreciação causada pelas subidas de taxa de juro impulsionadas por Paul Volcker na Reserva Federal. O acordo visava então combater os défices gémeos da economia americana – balança das transações correntes e défice público, através de uma abordagem que depreciava o valor do dólar e sustinha a entrada de capitais no país, tornando a dívida americana mais sustentável.

A síntese do economista Torsten Slock, citada por Tooze, pareceu-me sugestiva para explicar o racional desse acordo e a sua putativa reedição nos tempos atuais:


Na entrevista ao The Ezra Klein Show, Gillian Tett começa por mencionar que a movimentação da administração Trump arranca de uma contradição insanável: por um lado, pretende-se que o dólar se mantenha como moeda de reserva global, assegurando por aí o papel dominante do sistema financeiro baseado no dólar; por outro lado, pensam que o dólar esta sobre apreciado, já que o estatuto de reserva mundial leva as pessoas a procurar dólares, enfraquecendo indiretamente a competitividade americana e adiando a dimensão industrial do MAGA (Make America Great Again). Não esqueçamos que o estatuto de reserva mundial é conseguido através de um endividamento gigantesco: o serviço da dívida anual ultrapassa já o orçamento anual de defesa americano. Espantoso, não?

O problema é que o modelo imposto pela administração de Trump é tudo menos uma negociação devidamente explicada aos seus parceiros mundiais. A disrupção começa por aplicar a ofensiva dos direitos aduaneiros a países amigos como o Canadá, o México e a Europa. Subjacente à disrupção provocada, está a assunção de uma perspetiva mercantilista e a visão de um poder hegemónico que quer controlar não apenas o mundo do dinheiro, mas alcançar também o poder político e cultural (neste caso, aniquilando tudo o que poderia ser perspetiva alternativa e não de senso comum).

Por detrás de toda esta ofensiva, é difícil entender quem no âmbito de cada medida concreta domina a génese da mesma, se o grupo de nacionalismo populista americano à la Steve Bannon, se os tecno-libertários da seita de Elon Musk, se o grupo de congressistas Republicanos mais alinhados com Trump. Esperar que as contradições entre estas tendências implodam consensos talvez seja excesso de ingenuidade.

Alertados pelo comportamento negativo da bolsa americana, os pressupostos ideólogos de Trump vêm avisando que a pretendida desintoxicação da economia americana pode passar inclusivamente pela ocorrência de uma recessão e que o mercado de títulos é hoje mais relevante que a Bolsa.

O processo de branqueamento em curso manifesta-se, por exemplo, na interpretação de que a aposta na guerra dos direitos aduaneiros constitui uma forma subtil (?) de deslocar o poder da política monetária do Banco da Reserva Federal (até aqui independente e não tem sido clara a posição de Trump em relação a esta realidade) como forma de transferência de riqueza. Tenho para mim que o impacto atribuído à guerra dos direitos aduaneiros está claramente sobrevalorizado, tanto mais que em muitos domínios da reindustrialização pretendida os EUA já perderam essa guerra a favor de uma impetuosa terciarização. E ao contrário dos termos do Mar-a-Lago de 1985, o mundo que Trump atacou está bastante menos acomodatício e recetivo a acordos.

Mas a contradição fundamental persiste: o estatuto de reserva mundial do dólar é indissociável do endividamento gigantesco americano. Não parece haver acordo que rompa esta relação indissociável. Por onde romperá então?

Esta parece-me ser a questão essencial.

Last but not the least, Martin Wolf tem carradas de razão quando duvida da capacidade de Trump manter um acordo que tenha celebrado: “Ele, no fim de tudo, abandonou a Ucrânia, colocou em dúvida o seu compromisso para com a NATO e montou uma operação de assalto ao Canadá. Os dois últimos são evidentemente os mais importantes. Será a sua administração capaz de fazer um acordo em que alguma pessoa ou país mentalmente sãos pode confiar? Penso que não.”

(1) Para os leitores mais curiosos, há quem refira um artigo de novembro de 2024 de Miran como um prenúncio do que a administração Trump pretende fazer. Não é um artigo de leitura fácil e parece confundir relações contabilísticas que são meras tautologias com relações causais.

MAIS SOBRE A “OPERAÇÃO MILITAR ESPECIAL”

(Agustin Sciammarella, http://elpais.com)

Acima, um balanço reportado ao final de 2024 das baixas humanas, associadas à invasão da Ucrânia por Putin, para os lados ucraniano e russo. Abaixo, a evidência dos brutais impactos populacionais numa Ucrânia que já vinha sofrendo enorme diminuição desde o fim da época soviética (imigração para a Europa Ocidental) e, para os menos crédulos em relação às dificuldades da Rússia resultantes desta sua incursão, duas informações menos imediatamente economicistas (a significativa quebra verificada nos ativos líquidos do seu Fundo Soberano e a forte evolução negativa registada nas reservas de equipamento existentes nas bases militares russas). No essencial, apenas alguns dados diferenciados sobre a estupidez gratuita sempre decorrente das conflitualidades bélicas, mormente quando as mesmas provêm de exacerbados nacionalismos com motivações expansionistas e tudo menos democráticos.


(https://legrandcontinent.eu)

 


sexta-feira, 21 de março de 2025

UM PAÍS VIDEIRINHO E ENTRINCHEIRADO

 


(A notícia SOLVERDE que deu impulso à situação complicada em que Luís Montenegro voluntariamente se envolveu foi publicada pelo Expresso. Numa espécie de estado da arte e de medir o pulso político do País, o mesmo Expresso encomendou agora uma sondagem para avaliar estragos e o clima que antecede estes praticamente dois meses até às eleições de 18 de maio, data que vai acabar por contaminar a justa, mas sempre contida celebração dos meus 76 anos. Pelo que já consegui ler dos resultados obtidos, creio que o jornal terá ficado um pouco insatisfeito com a representatividade das intenções de voto, valendo antes a sondagem pelo que ela nos traz de apreciação ao sentir dos portugueses com toda esta situação. Confirma-se que a maioria dos portugueses não queria eleições, mas esse não é resultado que me espante, atendendo a que o estado global da comunicação social metralhou diariamente os portugueses com essa valoração de que a antecipação de eleições era nesta altura indesejável. O que me impressiona nesta sondagem é a dissonância que ela manifesta em relação à minha própria apreciação dos efeitos que admiti serem gerados pela teimosia de Montenegro em não reconhecer o erro de não ter dissolvido em tempo a sua malfadada empresas de consultoria. Eu sei que um quarto dos votantes AD pensa que Montenegro não se deveria recandidatar e no total da amostra há 46% das pessoas que considera que Montenegro faz mal em candidatar-se. Mas em contrapartida 52% dos inquiridos pensa que a situação de Montenegro ficou na mesma apesar do imbróglio, o que é a mesma coisa que dizer que o erro político do primeiro-Ministro não teve para a maioria dos portugueses consequências sobre a apreciação da sua figura como governante e político. Existem também nuances cuja representatividade não sei avaliar, como, por exemplo, a de que a insatisfação quanto às justificações apresentadas por Montenegro é mais elevada entre os jovens do que na restante população. De qualquer modo, o mantra da indesejabilidade das eleições abafa uma dimensão mais significativa dos efeitos negativos provocados pelo imbróglio e estará nesse ponto a razão da dissonância entre a sondagem e o que penso sobre o assunto.)

O país que se manifesta nesta sondagem, ainda largamente indeciso quanto ao seu comportamento de voto no dia 18 de maio, com 39% de indecisos, um número anomalamente elevado, é no meu entendimento pessimista e algo desencantado um país videirinho e entrincheirado.

Explico-me.

A desigualdade existente e a permanência no tempo longo, para uma elevada percentagem de população portuguesa, de condições de baixo rendimento familiar e baixas remunerações, para não falar já da ameaça persistente da pobreza absoluta, cria um caldo propício à valorização dos expedientes de toda a espécie para lutar pela sobrevivência. A multiatividade do trabalho a tempo parcial em Portugal (o trabalho a tempo parcial nos países do Norte é a aposta num modo de vida alternativo e mais distendido, não a luta pela sobrevivência) é um excelente indicador dessa necessidade permanente de combate ao baixo rendimento e às baixas remunerações. Posso estar a ser injusto, mas esse caldo de luta pela sobrevivência cria condições para que, senão apreciados, os videirinhos e facilitadores sejam pelo menos tolerados e bondosamente avaliados. Para mais, segundo o Público de hoje: “De acordo com as contas divulgadas esta quinta-feira pelo Banco de Portugal, em termos reais, o rendimento disponível das famílias cresceu 7,8%. É um valor que não encontra equivalente nas séries estatísticas das últimas décadas e que, prevê agora o banco central, não ficará sequer perto de se repetir nos próximos anos”. Ou seja, em meu entender, questões estruturais e conjunturais combinam-se para que o conflito de interesses em que Montenegro se colocou seja claramente desvalorizado. Para alguns portugueses, seria melhor que nada disto tivesse acontecido e o próprio Montenegro poderia ter facilitado as coisas, não indo a votos ou não tendo apresentado a moção de confiança. Mas no fundo, bem lá no fundo, não se passa nada, os portugueses encolhem os ombros e estão dispostos a conceder uma segunda oportunidade ao homem de Espinho.

Mas, por outro lado, é um país entrincheirado que se apresenta nesta sondagem. E aqui há que convir que a trincheira em que se encontra o PS de Pedro Nuno Santos não é das mais confortáveis ou melhor construídas. Não tem sentido questionar se os resultados seriam substancialmente diferentes se PNS tivesse já conseguido uma outra empatia com o eleitorado. A política faz-se do que é e não do que poderia ser, refazendo as trajetórias de cada um. A sondagem traz praticamente um empate na atribuição de responsabilidades sobre quem terá desencadeado a crise política e aí a ideia de entrincheiramento é real e incontornável. O esforço comunicacional do Governo e da AD em geral para focar a responsabilidade política no PS foi brutal e representou uma peça essencial para o entrincheiramento de posições.

A reflexão lá para as bandas do Largo do Rato deve estar pesada e atarefada, pois a trajetória de rejuvenescimento de ideias e rostos que o PS pensara com outro horizonte eleitoral está totalmente modificada e existe pouco tempo para um sucedâneo perfeito. Não me parece de todo que a ideia de um novo Relatório Porter tenha sido o tiro certo no alvo mais adequado, mas nestes contextos de pressão mediática há sempre uma ideia que tem de ser apresentada e PNS não resistiu ao revivalismo. Haveria seguramente outras formas de abordar o tema, abrindo por exemplo o caminho do diálogo com meios empresariais e da inteligência nacional, mas o que está feito, está feito.

Os dados estão lançados e admito que esta sondagem tenha sido preciosa para orientar o arranque das máquinas eleitorais.

Terá acentuado o meu pessimismo quanto a isto tudo? Sim, creio que sim.

quinta-feira, 20 de março de 2025

CHEGOU A PRIMAVERA!

(reprodução de “Dance of Spring”, 1937, da autoria de Samuel Joseph Brown e em exposição no “Smithsonian American Art Museum)

Não sei muito bem porquê, certamente também pelas agruras que nos trazem as envolventes externas e internas, mas este é um ano em que tenho esperado com particular ansiedade a chegada da Primavera. E ela aí está de volta! Veremos até cerca do nosso Dia de São João se valeu a pena a expectativa e a esperança que a acompanhava, sendo sempre verdade que uma boa parte desse cumprimento provem de nós próprios e do modo como somos capazes de fruir do tempo de que dispomos e das relações de amizade que fomos construindo.


Ainda assim, e focando-me no entorno exógeno, sempre não deixando de sublinhar quanto ele nos vai surpreendendo e desafiando – largamente em termos negativos, ou mesmo em função da natureza e violência do caráter paradoxal dos choques de que diariamente somos alvo –, opto por aqui reproduzir um extraordinário gráfico recente publicado no “Financial Times”: no momento em que uma questão que nos domina parece passar por uma escolha terrível para os países ligados ao modelo social europeu (guns or butter), na sequência de uma interiorização forçada do papel de guarda-chuva protetor que os EUA desempenharam durante décadas no contexto da segurança e defesa à escala internacional, é abissal a diferenciação que o gráfico nos revela entre a Europa e outros países do chamado mundo ocidental (Japão, Canadá e Austrália) e o seu ex-amigo do Continente Americano – abissal no que toca às evidências de um output social em largo favor dos primeiros, mas também abissal no que toca ao volume da despesa social relativa em que os EUA revelam um grande distanciamento e, portanto, um desvio gritante de desperdício e ineficiência. Esta é uma matéria polémica e de potenciais consequências determinantes para o nosso futuro coletivo e dela não fugiremos nesta Primavera, mesmo que as vidas pessoais nos tragam os benefícios relacionais e de lazer que possam estar ao nosso alcance.

QUANDO OS GRÁFICOS EXPRESSAM A INCOMODIDADE DO ÓBVIO

 

(https://www.ft.com/europe-express?emailId=24f23827-4bad-4e5a-8691-1ff3e5f74c5e&segmentId=488e9a50-190e-700c-cc1c-6a339da99cab)

(A brutal invasão da Ucrânia pela Rússia e a disrupção que Trump veio trazer à ordem económica e política internacional colocaram no centro do debate internacional uma diversidade de problemas novos, como a questão da continuidade e/ou sustentabilidade da NATO, o peso do esforço nacional em despesas militares e toda a complexidade do edifício da segurança europeia. É conhecido que o principal cimento da construção europeia, na perspetiva da adesão dos cidadãos, sempre se apoiou na consolidação do chamado modelo do Estado Social. Sabe-se que esse edifício do Estado Social é muito desigual (1)  entre os estados-membros e que, por exemplo, os países da Europa do Sul estão longe de poder contar com uma proteção tão vasta como a observada nos países do Norte da Europa e em França. Mas comparativamente aos modelos de outros países, os Europeus em geral sabem que podem contar com um modelo de proteção social que os diferencia e beneficia. Creio que essa perceção é responsável pelo facto de, apesar de todas as críticas ao modelo europeu e ao seu processo de construção, os cidadãos valoram essa diferença e apostam na sua defesa. A emergência do tema do rearmamento e da defesa militar e em termos globais da Europa vem alterar esse status quo, sobretudo porque emergiu imediatamente a questão da possibilidade do esforço de rearmamento e defesa poder atingir a preservação do Estado Social, mesmo que admitindo as imperfeições da sua construção e a menor velocidade de consolidação da Europa Social. Não me espanta, por isso, que uma grande parte da União Europeia tenha assobiado para o lado em matéria de financiamento da proteção concedida pela NATO, encantada com a evidência do Tio Sam se chegar à frente e continuar a assumir a principal responsabilidade desse financiamento. Não é que a incomodidade desse problema não tenha sido já identificada por outros presidentes americanos antes do inconfiável Trump, agora como se previa em choque aberto com o sistema judicial americano. Mas a intensidade e gravidade desses alertas não foi de molde a alterar comportamentos e por isso a disrupção Putin-Trump foi tão brutalmente sentida, suscitando indevidamente em muitas forças políticas a reedição do velho debate “canhões ou Estado Social”.)

 

(https://www.e-elgar.com/shop/gbp/the-european-social-model-in-crisis-9781783476558.html)

O que o gráfico que abre este post nos mostra com a incomodidade de uma evidência é que esse encolher de ombros quanto à necessidade de (re) pensar a defesa europeia, e paredes meias com isso, o financiamento da NATO, varia significativamente com a distância das capitais à fronteira com a Rússia. Como diria alguém, “history and geography matter”, e assim o peso das despesas militares no PIB dos países varia em razão inversa com essa distância. Não é por acaso que os países Bálticos, a Finlândia e a Polónia que sabem bem por experiência própria o que é a presença russa ocupam o lugar dianteiro em matéria de peso de despesas em defesa no respetivo PIB. Algo de preocupantemente similar ao “longe da vista, longe do empenho na defesa” percorre o referido gráfico, mostrando que tal como noutras dimensões a solidariedade do esforço na defesa é algo de muito problemático na União Europeia. É bom de ver que a questão não pode ser avaliada apenas pela variável do peso percentual no PIB das despesas em defesa. Para alguns países, entre os quais o nosso, o problema deve também ser aferido em função da massa bruta e absoluta de recursos alocados à defesa. O impacto desse esforço absoluto e relativo depende fortemente do estádio de desenvolvimento dos países e, por isso, no caso português, o que vier a acontecer nessa matéria implica que possa ser reconvertido como fator favorável ao processo de mudança estrutural da nossa economia. Questões como a articulação com a indústria dos bens de equipamento, reindustrialização e valorização e algumas dimensões da investigação e desenvolvimento científico e tecnológico terão de ser integradas na equação e quebrar assim os vícios do foco “canhões ou Estado Social”.

Mas o gráfico é incómodo na sua clareza porque a questão da proximidade ao conflito e à probabilidade da ameaça russa é um problema real na resposta ao desafio de construir uma perceção global e coerente dos cidadãos europeus quanto à necessidade de uma nova política de defesa e segurança. Face ao estado de perigosidade em que a Europa globalmente se encontra, abandonada ao seu destino pela Casa Branca, a importância do “longe da vista” esbate-se totalmente. Toda a distância física é ilusória e mesmo a chamada periferia longínqua, à beira-mar plantada, tem de preocupar-se com o problema. E, desejavelmente, em vez de regressar ao infantil argumento de “Estado Social sim, armamento não” há que capitalizar o mais possível esse esforço do ponto de vista da reestruturação produtiva nacional e, ao contrário do que tenho lido e ouvido, não é apenas uma questão de têxteis técnicos a valorizar.

(1)  É com orgulho e alguma saudade que recordo a minha participação e da minha colega Maria Pilar González na obra coletiva The European Social Model in Crisis -Is Europe Losing its Soul?, editada em 2015 pela prestigiada Edward Elgar de Londres sob coordenação da Daniel Vaugham-Whitehead da International Labour Organisation, experiência das mais gratificantes que tive na minha já longa vida profissional e também académica. Agora em Open Access, recomendo a sua leitura.

quarta-feira, 19 de março de 2025

JULGAMENTO MARCADO, OLÉ, OLÉ?

(cartoon de Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

A notícia foi recebida sem especial ruído público, a despeito do seu conteúdo arrepiante: dez anos e tantos episódios depois, José Sócrates tem finalmente julgamento marcado. Que o mesmo é dizer, realmente, que “vem aí nova temporada do caso Sócrates”... Porque o português médio, o homem da rua digamos assim, já não se emociona com estes atrasos da Justiça nem com a estranheza, por vezes horripilante, das novelas que diariamente lhe são oferecidas no espaço público. Também ninguém se deu ao trabalho de explicar a razão pela qual, se é que ela existe porque não é de todo compreensível, se arranca com as audiências menos de duas semanas antes da paragem dos Tribunais para efeitos de férias judiciais. Quanto ao acusado, a sensação que passa é que ele está saturado das andanças do Processo Marquês em que se meteu e foi metido – pudera, não é para menos! –, deixando-o perpassar de modo cada vez mais notório nos seus aparecimentos junto da comunicação social, com oscilações em torno de um homem amargado pela sua circunstância e daquele “animal feroz” que em tempos tão energicamente assim se apresentou aos portugueses; e mesmo se ele já tem o destino traçado aos olhos da larga maioria dos seus concidadãos (qualquer que seja o veredito judicial), parece algo insensato que não procure recuperar, para efeitos de defesa dos seus interesses de imagem e de legado histórico, um mínimo do capital simbólico que adquiriu quando combativamente disputou o poder no PS e alcançou a primeira maioria absoluta socialista no País.

A ESQUERDA E AS QUESTÕES IDENTITÁRIAS

 


 (Em dois posts anteriores, aqui e aqui, chamei a atenção para o processo de adaptação que as forças políticas democráticas à esquerda e à direita irão desenvolver face à presença de um elefante na sala, as forças de extrema-direita que irromperam por diferentes parlamentos na Europa e não só para sujeitar a democracia a uma longa erosão. À falta de melhor designação designei esse processo de TPeC, Transição Política em Curso, que passa a constituir um novo foco de interesse da minha pesquisa para este blogue e sobretudo uma matéria de monitorização permanente, pois tudo indica que o processo será longo e não necessariamente linear. É sob essa orientação que tenho vindo a trabalhar evidência para dar corpo e consistência a essa hipótese de trabalho, fazendo-o à esquerda e à direita, pois entendo que o referido processo adaptativo não será uniforme e apresentará diferenciações relevantes. Em simultâneo, dentro das limitações de captação de evidência que a periferia europeia nos impõe, tenho procurado diversificar também essa procura por diferentes países europeus, já que os diferentes sistemas constitucionais nos trazem variantes interessantes de contexto. Seguindo essa linha de orientação, exploro hoje o que está a acontecer por terras de França, na qual existe um abismo de diferenças entre o que Macron está a procurar desenvolver positivamente na cena europeia e internacional e as misérias da política interna, bem menos refrescantes do que o voluntarismo frenético, não sabemos ainda se consequente ou condenado ao fracasso, do Presidente. A evidência em causa está essencialmente relacionada com a posição relativamente agónica do Partido Socialista Francês, hoje liderado por Olivier Faure, um personagem simpático que herdou uma situação de quase irrelevância que não se recomenda. Pois, ao contrário do que muitos esperariam, o PS de Faure mordeu o isco lançado pelo atual primeiro-Ministro em exercício François Bayrou, não enjeitando a hipótese de entrar no debate sobre as questões identitárias – a identidade nacional da França.)

A caminhada política do novo governo de François Bayrou, desencantado por Macron para assumir este período conturbado, tem sido um processo cheio de espinhos e contradições. Tudo parece tremer em matéria de contradições internas, seja as forças políticas que sustentam o governo de Bayrou, seja a esquerda na oposição com a França Insubmissa a viver um período atribulado e o PS de Faure a tentar capitalizar o pequeno ressurgimento, mais propriamente o estancamento do declínio, que os últimos atos eleitorais lhe proporcionaram. Por sua vez, o Rassemblement National aguarda cinicamente o estilhaçar das contradições, tal qual predador que espera pacientemente a maior vulnerabilidade possível da sua presa. Diga-se, circunstancialmente, que a disrupção de Trump na cena internacional está longe de beneficiar o partido de Le Pen, pois é conhecida a sua aversão ao modelo cultural americano, agora extremado nesta sua nova variante. Por outro lado, a proximidade de Trump a Putin também não beneficia Marine Le Pen, pois esta tem tentado com afinco nos últimos tempos apagar a mancha do pressuposto financiamento do partido por empréstimos de banqueiros russos.

Recentemente, a política interna francesa foi surpreendida com a iniciativa política de Bayrou de trazer para o debate político a questão da identidade nacional da França. Imagina-se a dificuldade política de lançar sob a forma de convenções descentralizadas por todo o território francês a discussão sobre este tema, sobretudo no contexto de uma França submetida a todo um vasto conjunto de influências de culturas externas que entram todos os dias pela França adentro. Dificuldades acrescidas quando o tema da identidade nacional tem sido presa fácil da direita mais reacionária em França, que faz dela uma parede-ricochete face às pressupostas ameaças trazidas pela imigração nos seus diferentes estádios de acolhimento e (des) integração.

À esquerda, tem predominado a ideia de que, quando as questões sociais são a preocupação dominante e é possível em torno delas construir um conjunto coerente de políticas públicas, as questões identitárias se esbatem face ao objetivo superior de respostas sociais positivas. Segundo o Libération, um senador do PS Alexandre Ouizille terá escrito algo que vai nesse sentido: “A experiência histórica mostra-nos que quando a questão social domina a agenda, o espectro da guerra civil identitária parece desaparecer da consciência coletiva. Porque o conflito social organiza-se em torno de interesses materiais a conquistar e não de uma genealogia inata e inultrapassável”.

A posição assumida por Olivier Faure é de difícil caracterização: temerária e corajosa ou simplesmente ingénua?

Compreende-se que o PS francês associe o seu possível ressurgimento a uma tentativa desesperada de encontrar algo de consistente e válido entre a França Insubmissa de Mélenchoin e o Rassemblement National de Le Pen e Bardella, em busca não de um tesouro perdido, mas de uma Nova França, que possa refletir mais fielmente um corpo de valores que dê resposta ao novo contexto da sociedade francesa. Mas se compreendo essa intenção e a correspondente ideia de ir a debate sobre essa matéria, chego rapidamente à conclusão de que transformar essa Nova França num corpo identitário coerente que coloque lá bem no passado as raízes mais profundas do chauvinismo francês é uma tarefa política gigantesca, de um prazo bem mais longo do que o tempo que se abre ao PS francês para suster o seu caminho para a irrelevância.

Por outro lado, reinventar politicamente temas como o da fraternidade num contexto em que as questões da imigração, da integração e da segurança apela a desafios gigantescos de consistência, mas também de habilidade e competência políticas.

É por isso que, em meu entender, o debate em curso no interior do PS francês e de toda a esquerda democrática faz parte do processo adaptativo de que falava no início desta crónica. É conhecida a presa que a extrema-direita tem adquirido em França sobre o tema da identidade nacional, sobre o que é ser francês no mundo de hoje. Assim sendo, a reação face ao tal elefante na sala teria que suscitar necessariamente a entrada no debate sobre os temas identitários, o que não é senão uma outra forma de discutir a imigração, a integração e a segurança.

A posição de Olivier Faure é talvez temerária. Mas cabendo-lhe estar neste contexto a liderar o seu partido, dificilmente ignorar o problema seria melhor solução.


 

Nota complementar:

Já depois de ter publicado este post, dei de caras com este tweet de Sylvie Kaufmann (Les Aveuglés, obra destacada neste blogue) no X, que sublinha a ironia de Uderzo, filho de imigrantes italianos e de Goscinny, filho de imigrante polaco e imigrante ucraniana serem grandes exportadores do espírito francês.

terça-feira, 18 de março de 2025

MALEFÍCIOS DO PRR?

 


(O meu colega de blogue já se referiu com pertinência à saga do PRR e ao desajeitado contributo do Presidente Marcelo para que os olhares dos Portugueses estejam concentrados na sua execução e não na qualidade e alcance estratégico do que vai sendo apoiado e concretizado. A obsessão de Marcelo com o PRR faz parte do conjunto de factos e comportamentos que têm feito baixar os índices de popularidade do Presidente a níveis que uns anos atrás julgaríamos fora de questão. Mas a verdade é que um dos Presidentes mais bem preparados para o exercício da função e com um arranque de popularidade nunca alcançado está hoje em dificuldades para acabar o seu mandato com alguma recuperação de aceitação pública. O artigo de Henrique Monteiro no Expresso on line ocupa-se disso e para ele remeto os leitores interessados nesse tema. Não vou discutir as razões que têm levado Marcelo a um abismo de popularidade. Vou antes centrar-me no enorme erro dele ter contribuído e não abdicar dessa deriva para maximizar de forma doentia a obsessão política nacional com a execução do PRR e dos Fundos Europeus em geral, em detrimento de uma saudável e construtiva discussão sobre o alcance estratégico dos projetos ou operações de investimento que têm vindo a ser apoiados. Integro nesta reflexão uma evidência que me foi proporcionada por um painel de discussão realizado com entidades que integram o Comité de Acompanhamento do Programa de Assistência Técnica 2030, inserido nos trabalhos de avaliação da operacionalização daquele Programa que estou a coordenar. Esse painel de discussão foi realizado numa sessão mista presencial e on line, nas magníficas instalações do Museu-Casa Aristides de Sousa Mendes em Cabanas de Viriato, Carregal do Sal, região Centro de Portugal. O debate teve lugar no pequeno e excelente auditório construído a partir da garagem onde o célebre veículo automóvel da família Aristides Sousa Mendes era guardado, um estranho veículo que permitia deslocar 17 pessoas e a vasta prole da família Mendes. Não tive então oportunidade de referir neste blogue a qualidade da Casa-Museu, onde nos foi facultada uma competente visita, mas fica aqui com atraso de alguns dias o voto de que as 24.000 visitas que a Casa-Museu teve desde a sua abertura ao público, pouco mais de 5 meses, possa continuar o seu sustentado ritmo de crescimento, pois o material é excelente e adquire nos tempos que correm uma importância irrecusável.)

A ideia central que esse painel de discussão trouxe à minha já longa reflexão sobre as condições concretas de utilização dos Fundos Europeus e do PRR em particular está relacionada com as questões de comunicação dos Fundos Europeus em geral. Já escrevi repetidas vezes, designadamente em trabalhos de avaliação de acesso aberto e público, que a comunicação dos Fundos Europeus tem um sério problema de relacionamento com as agendas mediáticas dos principais órgãos de comunicação social nacionais. Estas agendas privilegiam despudoradamente todas as questões que evidenciem problemas ou irregularidades de funcionamento ou execução, se houver fraudes então é um festim, claramente em desfavor de comunicar boas práticas e projetos de excelente qualidade que têm sido apoiados e concretizados, já para não falar de casos de políticas públicas praticamente financiadas por Fundos Europeus. Já me aconteceu, com espanto meu, aliás verbalizado nessas sessões, estar a apresentar resultados de trabalhos de avaliação em sessões organizadas por jornais prestigiados, pagos pelos Programas em avaliação para organizar tais sessões e, mesmo assim, a deriva de focar os aspetos menos conseguidos em detrimento das boas práticas e resultados positivos acontecer.


O que a discussão realizada no auditório da Casa-Museu Aristides Sousa Mendes trouxe de novo foi o relato de alguns programas do PT2030 segundo o qual a comunicação do PRR tem canibalizado a comunicação desses programas, tamanha é a pressão pública e política para acentuar os problemas de execução do PRR. O caráter extraordinário do financiamento PRR e o facto da sua execução estar condicionada a um período mais curto do que o do PT2030 criou desde o início um caldo favorável para que a comunicação do PRR canibalize a do PT12030. Mas há um outro facto que tem favorecido a proeminência comunicacional do PRR e não estou a falar neste caso da obsessão de Marcelo. A monitorização do PRR é feita em função de metas (indicadores físicos) e de marcos intermédios a alcançar, o que constitui um irrecusável apelo à comunicação. Pelo contrário, o PT2030 tem insistido fortemente na execução financeira, que não tem o caráter apelativo das metas e dos marcos.

Absurdo dos absurdos, os programas do PT2030 estão também sujeitos a metas finais e intermédias e por isso poderiam partilhar esse aspeto comunicacional apelativo. Mas o que tem acontecido é que o Sistema de Informação PT2030, por razões que a razão desconhece, tem tido dificuldade em publicar de modo atempado indicadores de execução física dos Programas, gerando este enorme absurdo: existem razões apelativas para que a comunicação do PRR canibalize a comunicação dos programas do PT2030 e, apesar disso, este último debate-se com problemas de informação sobre a sua execução física, tendo de refugiar-se na menos apelativa execução financeira.

Como diria o obsessivo Presidente Marcelo, isto não lembraria ao careca …

Obviamente que as minhas críticas ao foco obsessivo na execução dos Fundos e do PRR em particular não significam que não esteja atento a essas questões, sobretudo do ponto de vista das condições de absorção de Fundos. Há essencialmente duas questões que colidem com execuções rápidas e no tempo programado. Por um lado, o setor da construção civil enfrenta uma penúria de mão de obra que está longe de estar resolvida e dizem-me que do ponto de vista empresarial não recuperou ainda da tragédia da Grande Recessão (2007-2008) e crise das dívidas soberanas. A destruição abundante de empresas não foi ainda plenamente reposta. Por outro lado, os aspetos jurídico-políticos da contratação pública estão longe de ter atingido um equilíbrio razoável entre celeridade e preservação de condições anticorrupção, abrindo um campo infindável de imbróglios jurídicos e atrasos de contratualização. Mas enganem-se aqueles que consideram que só existem problemas de execução em projetos que impliquem construção civil. Mas essa é outra conversa, para noutras ocasiões desenvolver.

segunda-feira, 17 de março de 2025

COM AMIGOS DESTES...

 

Às tantas até é verdade que foram cumpridas as obrigações relativas às obras nos apartamentos de Montenegro em Lisboa, mas o que é facto é que a sua credibilidade enquanto cidadão cumpridor não beneficia das intervenções de amigos bem-intencionados mas completamente despropositados como Carlos Moedas. Porque se foi rotineira a vistoria hoje ocorrida nos ditos apartamentos, a mando da Câmara Municipal de Lisboa, e se a mesma obedece a uma programação que é alegadamente aplicada em igualdade de circunstâncias a todos os lisboetas, então como explicar que o “Correio da Manhã” por lá estivesse a recolher imagens, que Moedas logo tenha chamado os jornalistas para anunciar que tudo estava nos conformes e que a declaração do presidente da autarquia tenha sido a tal ponto artificial que o levasse a sublinhar vezes sem conta que o primeiro-ministro é tratado como qualquer concidadão e não obteve qualquer favorecimento e que com ele, Moedas, assim é e tem necessariamente que ser? É que, perante tanta repetição – que nos transporta para um velho ditado popular (“quando a esmola é grande, o pobre desconfia”) –, das duas uma: ou Moedas padece de algum tipo de disfunção neurológica que o faz verbalizar incontidamente a frase com que pretende convencer o interlocutor da sua boa-fé ou Moedas precisa urgentemente de uma formação em comunicação política que lhe permita lograr tal objetivo sem procurar fazer dos portugueses tão parvos quanto ele os imagina...

INTERIORES PRÓXIMOS E REMOTOS

 


(Foi hoje publicado no Jornal de Notícias, mais propriamente na página 23, o meu artigo acima designado, enquanto associado convidado do Círculo de Estudos do Centralismo.

A minha visão sobre o conceito de interior é um pouco crítica e tento fundamentar o meu criticismo, trazendo para a reflexão uma perspetiva mais matizada do território continental. Não sei se o Círculo apreciará muito esta minha perspetiva mais matizada, mas como se diz na série de artigos do JN "as opiniões não vinculam o Círculo".)

"Quando no início dos anos 70 concretizava a minha formação em economia, curiosamente era a obra de um emérito sociólogo, Adérito Sedas Nunes, que inspirava a abordagem inicial à economia portuguesa. O dualismo económico e social, com a sua configuração litoral-interior, dominava o entendimento das assimetrias de desenvolvimento territorial. Um pouco mais tarde, o Professor Simões Lopes, a quem devemos a matriz originária da abordagem do desenvolvimento regional em Portugal, integrando-a virtuosamente num conceito global de desenvolvimento, haveria de aprofundar esse paradigma das assimetrias litoral-interior.

Cerca de 50 anos passados, podemos questionar se esse paradigma de abordagem continua válido ou se, pelo contrário, deveremos ir em busca de um outro modelo de abordagem ou narrativa para compreender os problemas de desenvolvimento territorial do país e as suas profundas assimetrias. Devo aqui explicitar o conflito de interesses de que pertenço ao grupo dos que sentem que a abordagem litoral-interior já não é capaz de nos assegurar satisfatoriamente uma interpretação consistente das dinâmicas territoriais. O âmbito limitado deste artigo impede-me de vos fornecer uma completa demonstração do meu argumento. Quero apenas salientar que a realidade “interior” é demasiado simplista para fundamentar políticas públicas consequentes.

Se, por um lado, o chamado interior remoto está longe de ser homogéneo do ponto de vista do seu potencial de desenvolvimento, exigindo por isso uma inteligente atenção aos ativos que podem fazer a diferença e alavancar desenvolvimento nesses territórios, mais recentemente as dinâmicas territoriais fizeram emergir o que designo de interior próximo ou periferias de proximidade face aos centros mais dinâmicos do litoral. Os incêndios constituem sempre um fator de evidenciação de vulnerabilidades. Os de 2024 mostraram-nos a péssima combinação entre pobreza, densidade de povoamento relativamente elevada e desordenamento flagrante do território e a necessidade de políticas públicas consequentes para combater esse flagelo. Os de 2016 e 2017 mostraram-nos, pelo contrário, a exigência absoluta de promover a resiliência da baixa densidade.

O meu argumento está agora mais claro. O conceito de interior é demasiado homogéneo e redutor para potenciar políticas públicas consequentes. A diferenciação entre interiores remotos e interiores próximos é uma primeira tentativa de ir além desse paradigma redutor. Em ambos, é imperioso combater a atomização de iniciativas, promover a cooperação de recursos e com essa cooperação desafiar o centralismo das políticas públicas a adaptar-se a uma territorialização consequente e a apostar na iniciativa e capacidade de organização do tecido institucional que vai animando o desenvolvimento local desses territórios, com os municípios à cabeça, mas não só e apelando à organização criativa da sociedade civil local. As instituições localizadas nos territórios mais dinâmicos e pujantes do continente, designadamente as de investigação científica e tecnológica, não podem ignorar a responsabilidade cívica e democrática de disseminar o conhecimento que produzem nesses territórios mais desfavorecidos de iniciativa. Mas, para isso, necessitam de ajudar a consolidar parcerias capazes de absorver esse conhecimento. As dinâmicas mais recentes evidenciam que algo de novo está a acontecer na tal diversidade dos territórios interiores. 

A emergência de centros de produção de conhecimento e inovação em torno de recursos endógenos representa uma base alternativa para acolher a cooperação com os centros mais pujantes do território continental. É toda uma mudança de paradigma que esses novos ativos antecipam.

QUESTÕES DE SOCIOGENÉTICA

 


(A leitura atenta do New York Times internacional, edição de fim de semana, na pracinha de Caminha quando o sol é convidativo e o vento não intimida é uma permanente fonte de inspiração e muitos posts deste blogue foram urdidos a partir dessa leitura, sempre que a conversa com amigos não se sobrepõe a esse ato introspetivo. Mas os tempos da convivialidade com Amigos próximos e regulares daquele espaço já foram mais ricos do que agora, ficando sempre com a sensação de que a demografia, o envelhecimento e as maleitas associadas têm contribuído para que menos gente conhecida apareça por aquelas paragens. Há que aproveitar enquanto as maleitas não nos batem à porta e sobretudo a possibilidade do NYT ir resistindo à quebra de liberdades que a disrupção Trump está a trazer aos EUA. O artigo deste fim de semana que despertou a minha atenção é um ensaio relativamente longo de Dalton Conley, professor de sociologia em Princeton e membro associado do Centro de Genoma de Nova Iorque e versa sobre questões de sociogenética, domínio disciplinar que os anglo-saxónicos designam de sociogenomics. Pode perguntar-se porque raio um modesto professor de Economia deve interessar-se pelas questões da genética e da sociogenética? A resposta é simples e cruza-se com os meus velhos interesses da economia da inovação e do conhecimento, aprofundados quando lançámos na FEP essa disciplina e quando tive de mergulhar bem fundo no evolucionismo económico. Nesses saudosos tempos, guiado pela obra-farol do economista recentemente desaparecido, objeto de obituário neste blogue, Richard R. Nelson, tive oportunidade de estudar comparativamente os avanços do evolucionismo económico com outros evolucionismos como o biológico propriamente dito ou o cultural. A sociogenética, independentemente do seu estádio de maturação, que me parece ainda bastante preliminar, vem trazer novas respostas possíveis à questão de saber quem somos e como chegámos até aqui.)

O artigo de Conley inicia-se invocando a célebre oposição “nature versus nurture” (natureza versus criação) suscitada por Sir Francis Galton há cerca de 150 anos e que iniciava um longo debate entre os que afirmavam a hereditariedade como fonte de todas explicações em contraponto à influência de moldagem do meio em que inscrevemos as nossas vidas. O que a sociogenética vem trazer a este velho debate é a complexa interação entre as influências dos genes e do ambiente. No fundo querendo significar que os genes e o ambiente influenciador não operam isoladamente, mas que se influenciam reciprocamente. O resultado é uma espécie de fusão entre as ciências do comportamento e da genética. O princípio de base a considerar é que a influência dos genes será algo que transcende os efeitos no nosso corpo e personalidade para exercer efeitos também sobre os ambientes em que inscrevemos as nossas vidas. Por outras palavras, tudo se passaria como se os nossos ambientes de inserção (trabalho, cívicos, culturais, políticos, etc.) fossem em parte feitos dos e pelos genes das pessoas que nos rodeiam.

Esta nova abordagem vem reconsiderar tudo o que era esperado a partir dos significativos avanços que a investigação sobre o genoma veio possibilitar. Pensou-se, assim, que a descoberta das origens genéticas de características como a obesidade, a inteligência, a propensão para doenças crónicas e mesmo os traços individuais de personalidade pudessem ser objeto de investigação farmacêutica e clínica, gerando a esperança de erradicação de muitas maleitas.

Duncan Conley fala da prática atual de construção de complexos índices poligénicos, matéria que sinceramente desconhecia, e que tanto podem ser promissores como aterradores. Promissores na condução de terapêuticas e aterradores se, por exemplo, as companhias de seguros os começam a aplicar na seleção dos seus clientes e na determinação dos preços dos mesmos, revolucionando o cálculo atuarial.

De qualquer modo, a possibilidade de aprofundar o conhecimento sobre o modo como os ambientes em que nos integramos moldam a expressão da nossa propensão genética abre novos campos de interação na velha relação de Galton “nature versus nurture”. 

Dei comigo rapidamente a pensar sobre as implicações que a sociogenética pode trazer ao evolucionismo económico. Neste último, como sabemos, o equivalente aos genes são as rotinas organizacionais e procedimentais das empresas que se exercem sobre ambientes de mercado em que a concorrência molda comportamentos futuros. Mas se incluirmos nesta análise a disrupção que a inovação provoca (alterações de rotinas organizacionais e procedimentais para alcançar uma diferenciação e inimitabilidade mais ou menos duradoura), temos de considerar que os ambientes em que as empresas operam serão também influenciados por essa propensão genética. Até porque em certa medida as práticas de inovação visam alterar o ambiente concorrencial, disputando um maior poder de mercado para os mais intensamente inovadores. Nessa mesma medida, a influência do meio sobre as empresas tenderá a ser alterada e assim teremos a relação de interação entre “nature e nurture” também alterada.

Fico com a sensação de que a procissão ainda nem sequer saiu do adro. E aqui fica o resultado de uma reflexão expedita numa manhã fria mas bastante ensoleirada de domingo com a ajuda do New York Times.

domingo, 16 de março de 2025

EXECUTEM LÁ O PÊ-ERRRE-I-ERRRE!!!

(excerto de Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

Ia eu hoje na minha viatura, a caminho de um pequeno aproveitamento do dia solheiro com que fomos brindados a Norte, quando as notícias radiofónicas me informam de que o Presidente da República fora visitar sem aviso (por sorte, estava por lá o ministro da Economia Pedro Reis) a Feira de Turismo e por lá declarara que a crise política em curso não iria afetar a situação económica e a execução do PRR. Quase batia do carro do lado com a irritação! Esta obsessão de Marcelo com o “Pê-ERRRe-i-ERRRe” é verdadeiramente doentia e tem um conteúdo real e prático quase completamente inexistente. A coisa já vem de longe (começou logo que o anúncio de dinheiro extra foi divulgado no pós-pandemia), adquiriu uma dimensão de ridículo com aquele aviso desproporcionado (no tom e no alvo) à então ministra da Coesão (novembro 2022) que Costa qualificou como um "momento de criatividade" e nunca mais deixou de ser matéria a sair da boca do dito em qualquer oportunidade microfónica desde então (abaixo uma incompleta ilustração do facto); com a agravante de que Marcelo insistiu sempre no “guito”, ou seja, na execução e nunca deu qualquer sinal mínimo de atenção ao que é essencial: a justeza substantiva da aplicação dos fundos em causa por contraponto ao seu possível (e muito real) desperdício. A insensibilidade de Marcelo, que o próprio refere absurdamente não mais corresponder do que uma ação útil e necessária de "catalisador positivo", já atingiu limites incomportáveis de insuportabilidade e o pior é que ainda falta quase um ano para ele ir pregar para um outro lado que não nos encha o ouvido e ofenda a razão. 

sábado, 15 de março de 2025

UMA QUESTÃO INCONTORNÁVEL

 


(É de todos conhecido o facto inquestionável de que a administração Trump veio baralhar a confiança europeia na relação euro-atlântica, não apenas do ponto de vista das implicações que isso traz quanto aos compromissos sobre a NATO, mas também na perspetiva do posicionamento geopolítico e geoestratégico do bloco europeu no mundo. Sabemos também que as implicações sobre as debilidades europeias da destruição do multilateralismo são extremamente gravosas para o desejado ressurgimento europeu. Pelo que é conhecido de afirmações diplomáticas públicas, sabe-se que, pelo menos no plano estritamente formal, a China tem sido entre as grandes potências aquela que tem mantido um discurso de preservação do multilateralismo. A ponta de indeterminação e dúvida que paira sobre a sinceridade diplomática de Pequim decorre da ambígua posição chinesa relativamente à Rússia de Putin. Além disso, a ameaça que paira sobre Taiwan traz também problemas de confiança. Neste contexto, não espanta que cada vez mais se coloque a questão de saber qual a posição estratégica mais correta que a União Europeia pode assumir face à China. O jornalista Tony Barber do Financial Times na newsletter Europe Express regressa ao tema, sobretudo no contexto de que todos os pressupostos benignos e magnânimos sobre a posição dos EUA de Trump estão obviamente em profunda, não sabemos se definitiva, revisão. O que parece admissível concluir é que, sem ignorar as cautelas que o regime chinês impõe a qualquer um, a China é hoje uma potência mais confiável do que os EUA de Trump e a Rússia de Putin. O absurdo da posição americana, mais propriamente de Vance e de Musk, de apoiar forças de extrema-direita na Europa, como o Rassemblement National de Le Pen e a AfD alemã, que são profundamente hostis ao modelo cultural e de sociedade alemão, exemplifica bem a não confiabilidade da diplomacia americana atual. Por isso, sem me entusiasmar por aí além com a ideia, a questão de discutir qual o posicionamento que a Europa deve manter em relação à China é, em meu entender incontornável, ainda que não tenha resposta fácil e se calhar unívoca. Entretanto, esse debate não pode ignorar a necessidade do pragmatismo de considerar qual o ponto de partida para essa reflexão. Não se trata, assim, de imaginar no abstrato qual o posicionamento mais correto face à China, mas de partir do estado concreto das relações entre a Europa e a China no contexto atual de fratura da economia global. É para esse debate que este post pretende contribuir.)

Queria começar sublinhando uma das grandes implicações de assumirmos uma perspetiva de tempo longo (e para isso também a China é mais confiável), em detrimento de análises curto-prazistas, que se esgotam na espuma dos dias. Fui, devo afirmá-lo sem hesitação alguma, dos que considerei que a entrega de alguns dos nossos ativos empresariais ao investimento chinês, concretizada antes de estar assumido um enquadramento estratégico para as privatizações impostas pela Troika colocou então a economia portuguesa numa posição de grande vulnerabilidade face ao capitalismo de Estado autoritário e repressivo. Mas, ironia da história, quando reavaliarmos essas opções de “rendição” ao capital das grandes empresas chinesas à luz de um tempo mais longo que integre na análise a disrupção americana provocada na relação euro-atlântica, talvez sejamos mais moderados nessa apreciação. Talvez por linhas indevidas e bastante tortas, a posição portuguesa e a europeia tenham mais margem de manobra para encontrar um posicionamento capaz de responder proativamente à disrupção americana.

Ainda há dias, a falência da empresa sueca Northvolt, a grande esperança europeia para a aposta nas baterias elétricas de suporte aos veículos desse tipo, veio colocar de novo no centro do debate a posição europeia face ao fornecimento chinês de baterias elétricas. Por ironia circunstancial, é nesse mesmo domínio que se anuncia o avultado investimento chinês para Sines, que se antevê, a ser concretizado em toda a sua plenitude, com enorme repercussão nas relações inter-industriais portuguesas em matéria de descarbonização da economia e avanço das chamadas tecnologias elétricas. 

O gráfico que abre este post é de consulta obrigatória para caracterizarmos sumariamente o ponto de partida da relação Europa-China. O gráfico é eloquente, pois evidencia que a China é o principal parceiro comercial das importações europeias e apenas o terceiro mercado de destino das exportações europeias. O imediatismo truculento de Trump diria que os chineses nos estão a tratar mal e por isso deveriam ser taxados. 

O que está em causa neste gráfico é o surto de competitividade chinês que rapidamente inundou os mercados europeus não só de tecnologia, mas também de produtos que integram o coração do modelo de consumo das classes médias e populares europeias, sobretudo nos países como Portugal em que os baixos salários influenciam decisivamente a norma de consumo possível.

Ainda não compreendi totalmente os fumos de corrupção que foram identificados no Parlamento Europeu em torno de opções que mexem com a Huawei e, por isso, toda a cautela será pouca para desenhar o reposicionamento europeu face à China. Mas, não ignorando essas cautelas, o que me parece é que face à perigosa disrupção americana e à falta de respeito dos seus principais personagens políticos relativamente à Europa, isso obrigará a que a União Europeia olhe o relacionamento com a China de outra maneira e sobretudo numa via não seguidista face às tontarias trumpianas. A superioridade chinesa em matéria de tecnologias elétricas não pode ser ignorada. Se os americanos estão tentados a mergulhar no caos e a ignorar essa superioridade é um problema que rigorosamente apenas lhes diz respeito. Se a Europa pretende consolidar posições nessa matéria e sem abandonar a pressão diplomática sobre questões elementares de direitos humanos, existem inúmeras formas de colaboração com o avanço tecnológico chinês nessa matéria. Se a administração Trump imagina que, por magia ou coação, os aliados que neste momento despreza serão seguidistas nas suas cruzadas  comerciais contra os chineses estará bem enganada e rapidamente vai chegar à conclusão que a posição de dominância americana estará a ser fortemente questionada por todo o mundo.

Trump ignora que em tecnologia os rendimentos crescentes que colocam alguns países na dianteira são dificilmente combatíveis numa lógica estrita de mercado e de direitos aduaneiros. Até porque, ao decidir destruir tudo o que a administração Biden fez em termos de Chips Act (semicondutores) e de Inflation Reduction Act (descarbonização), abre excelentes oportunidades à União Europeia para de uma vez por todas se deixar de salamaleques em termos de política industrial.

UNS PERIGOSOS ESQUERDISTAS OU O PODER SEMPRE AFRODISÍACO?

Ricardo Costa, Bernardo Ferrão, Paulo Baldaia, Ângela Silva, Rui Calafate, Nuno Santos, Margarida Davim, Anselmo Crespo, Anabela Neves, António José Teixeira, Eunice Lourenço, David Dinis, Maria Castello Branco, João Maria Jonet, Maria Henrique Espada, Gonçalo Ribeiro Telles, Pedro Mexia, Miguel Santos Carrapatoso, Inês Serra Lopes, Rui Pedro Antunes e Natália Carvalho, eis apenas alguns dos nomes que constituem a cambada de jornalistas esquerdistas que indecentemente dominam a opinião pública neste nosso país à beira-mar plantado. Uma denúncia de que merecem ser alvo, fruto das posições que foram assumindo no processo que conduziu à queda do governo de Luís Montenegro (LM) – para que conste!

 

Falemos seriamente. O caso da moção de censura não foi provocado por um Pedro Nuno Santos (PNS) que, por muitas culpas que tenha no cartório (e indiscutivelmente que tem, pela postura que assume e pela empatia que não deixa passar!), todos proclamavam que era a última personagem a ter vantagem em que se realizassem eleições antecipadas (as sondagens eram-lhe desfavoráveis, a Esquerda persistia largamente minoritária e uns Estados Gerais preparatórios de uma renovação da proposta do PS estavam ainda em fase de lançamento). O que me remete para uma dúvida essencialmente metódica em relação ao racional (a existir) associado à atuação de LM: aposta num reforço eleitoral que tinha por certo ou receio de continuar a ser cozido em lume brando e/ou eventualmente acusado de factos mais gravosos e ainda desconhecidos?

 

É claro que, cumpridas as etapas que conduziram à dissolução do Parlamento e convocação de novas eleições legislativas por parte de um Marcelo tornado irrelevante aos olhos da maioria dos portugueses que não para levar a cabo os trâmites necessários à prossecução das determinações constitucionais, estamos agora em face de um PSD que se apresenta a cerrar fileiras (pudera!) atrás do seu atual líder e distribuidor de lugares e pequenos ou médios poderes, enquanto outros agentes ligados ao partido laranja aguardam uma ocasião mais propícia (desde logo, uma derrota eleitoral ou uma “vitória pequenina”) para se exprimirem com maior propriedade e potencial eficácia – Jorge Moreira da Silva recordou há dias que foram dadas todas as condições à atual liderança e avançou ser “penoso” o que está a acontecer e recear que o PSD “não tenha percebido bem o impacto desta crise”, Rui Rio deu alguns sinais de já ter estado mais longe de uma solução de “bloco central” e Passos continua predominantemente calado e, presume-se, a afiar a faca através da qual dará entrada à extrema-direita.

(cartoons de António Antunes, “Cartoon do António”, https://expresso.pt) 

Neste quadro, a campanha eleitoral será incontornavelmente lamacenta. Não serão regateados esforços tendentes a chamuscar ou queimar PNS, ao mesmo tempo que não faltará a lamúria dos apaniguados de LM e a sua insistência na qualidade de uma governação de dez meses que pouco mais fez do que aplicar distributivamente o excedente deixado por Costa e Medina. Esta certeza impõe ao PS uma particular responsabilidade quanto ao modo como conduzirá a sua campanha, tanto mais que à sua esquerda não escassearão “bocas foleiras” e declarações objetivamente autopunitivas. Uma situação que arrisca a tornar-se desoladora e até profundamente deplorável.

 

Volto aos jornalistas e comentadores. Não para me escudar argumentativamente em gente reconhecida pela sua independência e não afiliação político-partidária como Miguel Sousa Tavares ou Manuel Carvalho. Mas tão-só para acrescentar ao conjunto dos nomes acima as opiniões acabadas de expressar pelos inesperadamente novos e inconfessados esquerdistas que são titulares de colunas que ontem e hoje encontrei nas páginas do “Expresso” e do “Público”, como João Vieira Pereira ou João Miguel Tavares. E por aqui decerto me ficaria não fora a brilhante e honrosa exceção de Daniel Bessa que, sempre pragmático e um passo à frente do resto da malta, nos veio explicar a banalidade do problema havido (a constituição de uma empresa por LM versus a sua continuidade como profissional liberal mais uma divergência de 30 dias na duração de uma CPI) e comunicar que o seu voto cidadão permaneceria entregue ao PSD porque “a alternativa continua a parecer-me pior”...