quinta-feira, 10 de abril de 2025

SARGADELOS EM RISCO

 


(A minha ampla e diversificada coleção de peças de cerâmica de Sargadelos, repartida pelas várias estantes em que parqueio a minha biblioteca, representa um indicador a posteriori de muitas intervenções e conferências que realizei, bons tempos, na Galiza, privando e criando amizade com políticos, planeadores e universitários. Essa memória, hoje de saudade, já que têm escasseado nos últimos tempos essas oportunidades, constitui o que mais de retribuidor no plano afetivo e da interação pessoal pude alcançar na minha já longa vida profissional e também académica. As ofertas dessas peças de Sargadelos eram simbólicas da amizade e da deferência dos galegos para comigo e eu apreciava essas ofertas, não porque seja um colecionador obsessivo, nunca o fui, mas porque compreendia o profundo significado que aquela produção de cerâmica representava para a cultura, autonomia e regionalismo galegos. Ora, por estes tempos, Sargadelos e a fábrica de Cervo vivem uma situação difícil, com ameaça e perspetivas de encerramento da fábrica e suspensão da produção, representando não apenas um problema laboral e de lançamento para o desemprego de trabalhadores, mas a ameaça mais vasta de queda e destruição de um dos símbolos culturais mais afirmativos da autonomia galega. Quando escrevo, parecem estar abertas perspetivas de continuidade de laboração e reabertura das instalações de Cervo, mas a ameaça está lá, regra geral anuncia tempos difíceis e é sobre isso que me apetece refletir.)

A afirmação do projeto e da marca Sargadelos tem uma forte ligação às raízes históricas da autonomia galega e é por isso que se verifica a identificação dos galegos mais cientes e ciosos da sua história com a conceção, design e manufaturação daquelas icónicas peças.

Com ligação remota aos fins do século XVIII em que emergiram os primeiros altos fornos e a produção cerâmica, Sargadelos está indissociavelmente ligado ao trabalho de reabilitação que Isaac Diaz Pardo realizou a partir da Cerâmica do Castro, combinando três dimensões, a de artista plástico, a de ceramista na Galiza e na Argentina e a de relacionamento com o exílio republicano. Tal como o historiador galego Ramon Villares sustenta, associou-se a Sargadelos a ideia de uma autonomia regional também estética, como se o design daquelas icónicas peças representasse algo mais do um artefacto ou peça de cerâmica. Nos meus contactos com os Amigos galegos essa perspetiva era clara, como o foram por exemplo os primeiros avanços das criações de Adolfo Domínguez na moda (La ruja es vieja). Ainda hoje, sem qualquer relação com esse espírito artesanal, quando visto uma peça Domínguez como o casaco que trouxe a uma Lisboa ensoleirada, sinto saudade desses tempos.

Tal como Villares argumenta, Sargadelos, além da sua clara ligação ao movimento Republicano, prefigurou tendências que haveriam de fortalecer-se mais tarde no âmbito das chamadas indústrias criativas, abrindo novos diálogos entre design e indústria e entre cultura e atividade económica. Vestir Adolfo Domínguez nesses tempos era uma manifestação “casual” de diferença cultural e a invocação de Sargadelos pertencia ao mesmo universo de diferenciação identitária. Hoje, a esquerda galega, quase reduzida a uma espécie arqueológica com necessidades de preservação, perdeu esses símbolos identitários e vagueou pelo “wokismo” destes tempos algo perdida e sem referências.

O risco de desaparecimento de Sargadelos, subjugado pela lógica da sobrevivência de mercado causou nesses meios, pelo menos, algum alarido.

Villares chama-lhe um lugar de memória e a manifestação mais visível do que poderia ser uma estética galega.
Posso estar enganado, até porque o meu domínio das fontes de informação galegas à distância é precário, mas não me apercebi que o alarido em torno da crise de de Sargadelos tivesse perturbado o santo sono da Xunta da Galicia. Quando muito terá acordado, mas regressado depois ao repouso. Já lá vão os tempos em que a Xunta se destacava pela defesa intransigente dos valores identitários galegos. A concorrência é fraca e Rueda parece mais apostado em apoiar Feijoo na rampa para o poder, desalojando o PSOE. Mas as suas crises de dureza para com o VOX de Abascal têm adiado esse momento da verdade e as piruetas políticas de Sánchez têm-se multiplicado desafiando a imaginação e o pesar dos analistas.

Como na Galiza o VOX não tem expressão, o PSOE galego está desaparecido em combate e com questiúnculas internas em alguns municípios (Santiago, por exemplo) e o Bloque Nacionalista Galego vocifera mas não morde, Rueda e o PP gozam um descanso prolongado.

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