quarta-feira, 16 de abril de 2025

OS MICRO (MACRO) COSMOS DA CRISE SOCIAL

 


(Embora oficialmente a campanha eleitoral não tenha ainda começado, a verdade é que o ambiente eleitoral está fervilhante, os debates televisivos assim o determinam e o governo de gestão de Montenegro é-o sobretudo porque está apostado em levar a gestão eleitoral até às últimas consequências. Assistiremos, por isso, ao esgrimir de posições e argumentos sobre a situação económica e social do país, muitos acreditando que o estado da economia marca o sentido de voto de muita gente. Talvez não seja propriamente a economia a determiná-lo, mas antes a forma como essa economia chega aos bolsos dos eleitores, seja na sua folha salarial ou nas suas compras diárias, seja na dificuldade com que consegue pagar a renda ou a prestação mensal dos seus empréstimos, proporcionar aos filhos algum conforto e, mais remotamente para muitos, poder gozar alguns dias de repouso para pelo menos deixar de se atormentar episodicamente com os seus problemas. Para muitos o país está numa crise social penosa para um conjunto muito significativo de famílias. Mas o que parece existir é uma profunda dissonância entre evidências macro e micro dessa crise e é essa dissonância que explica em grande medida a tal contradição entre as perceções e as evidências mais objetivas, designadamente estatísticas, da incidência dos problemas. Do ponto de vista político, a utilização de indicadores estatísticos para cobrir objetivamente esse debate tem de ser concretizada com imensas cautelas. Eles são fundamentais para alimentar um Polígrafo de qualidade, discernindo entre o que é fake e deturpação ignóbil da realidade e o que é objetivamente verdadeiro. Mas as estatísticas oficiais, e há que reconhecer a melhoria significativa da sua qualidade nos últimos anos, tornando incompreensível a recente substituição do Professor Francisco Lima da direção do INE, enfrentam frequentemente dificuldades de alinhamento temporal com o tempo em que o debate político está ao rubro e de cobertura de dimensões mais micro da realidade económica e social.)

É, por isso, que sempre me habituei a ganhar destreza na combinação da informação estatística mais recente e fundamentada possível com o recurso a indicadores indiretos das mesmas situações, alimentados a partir de informação construída a partir da prática das instituições que dificilmente são incorporados nas estatísticas oficiais ou que se isso acontecer será tardiamente.

Esta questão tem merecido a minha atenção nos últimos dias, sobretudo porque uma catadupa de pequenas, mas relevantes informações, se tem sucedido, trazendo ao debate social tons mais carregados que deveriam atravessar a frequência fervilhante dos debates televisivos, mas que não tem conseguido impressionar os protagonistas.

Uma dessas informações indiretas veio a público a partir da DECO e alerta-nos para que o número de pedidos de ajuda para conseguir pagar a renda da respetiva casa está a aumentar de modo alarmante, sobretudo na sequência dos apoios à renda estarem a acabar e de alguns atrasos no pagamento de outro tipo de subsídios como os do PORTA 65. Este indicador vale o que vale, mas constitui a melhor expressão de uma das expressões mais significativas do problema da habitação em Portugal –a insolvência de uma fração significativa de procura de habitação. E não me venham com a questão do mercado à baila. Este é o exemplo mais flagrante da falha de mercado – a procura existe, mas em grande medida não é solvente, o que significa que o mercado não funciona. Mercado, o tanas.

Na mesma linha de enquadramento, há uns tempos uma outra notícia impressionou-me de sobremaneira. Relatos de serviços da Segurança Social diziam que o número de crianças em risco e sem casa digna estava de modo preocupante a aumentar devido às dificuldades das mães e/ou pais em resolver o seu problema habitacional. E o tema das barracas parece regressar para mal da nossa dignidade como país ou Cidade.

Noutro plano, desde que ingressei nestas lides bloguistas, o fenómeno dos internamentos sociais nos hospitais do SNS está aí para incomodar os bens intencionados. Existe uma dimensão deste problema que está relacionada com a insuficiência de investimento público na área dos cuidados continuados. É talvez aquele que pode ter mais evolução na sua mitigação, haja vontade política para o resolver. Mas uma outra parte do chamado internamento social que penaliza a capacidade de internamento dos hospitais do SNS tem uma dimensão exclusivamente social e está relacionado com a desintegração social e dos laços familiares, alimentando paredes meias o fenómeno das pessoas em situação de sem abrigo (PSSA).

Diria que estamos perante dimensões micro de uma dimensão macro de empobrecimento e de desigualdade, na qual se combinam, explosivamente, um modelo de baixos salários, o envelhecimento galopante e o deslaçamento das relações sociais e de entreajuda.

Uma crise social sistémica complexa exige obviamente abordagens o mais possível integradas, matéria em que a nossa máquina pública não é particularmente ágil e adestrada. Mas complexidade e integração necessária não podem abrir caminho, como muitas vezes acontece, à inépcia e inércia de intervenção. Isso é assim porque há políticas que têm esse efeito de irradiação e de avanço relevante na complexidade. A política de habitação é talvez o melhor exemplo. E, insisto nessa ideia, não me venham uma vez mais com a treta do mercado. Se há política em que a abordagem da AD é um flop de desatino completo é a questão da habitação. E, devo dizê-lo com todas as letras, se a alternativa socialista não conseguir marcar pontos e alcandorar-se a fazer a diferença nesta matéria então podem fazer as malas e dedicar-se a outras ocupações.

 

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