(É raríssimo ler um jornal económico nacional. A espécie não abunda e no meu entender talvez excessivamente crítico a sua baixa qualidade média não justifica o dispêndio. Já não estou a referir-me à venalidade manifesta de algumas das notícias por eles veiculadas, basta-me o reconhecimento da baixa literacia económica da maioria dos jornalistas de tais órgãos, em que a combinação da precariedade e da formação em economia às três pancadas é verdadeiramente explosiva, conduzindo a um desastre anunciado. Por isso, este post só tem lugar porque o meu colega de blogue me alertou para uma crónica do Jornal Económico, em que o bom nome de um dos patronos deste blogue, Alfred O. Hirschman, é posto em causa pela pena de Martin Avillez Figueiredo (MAF). Apenas o nome do cronista justificou o enfado de ter de escrever algumas linhas para denunciar a imbecilidade e a ligeireza do referido artigo. De facto, o MAF prometeu muito e chegou a perfilar-se como um intelectual de direita liberal que valia a pena ser lido, pelo menos pelo atrevimento fundamentado de algumas perspetivas de análise. Resumidamente, a crónica de MAF pretende associar o nome de Hirschman a uma das inspirações possíveis de Trump para nele basear a sua política comercial externa disruptiva, estúpida e arrogante com que ameaça destruir não apenas a marca de hegemonia benevolente associada aos EUA, mas também a confiança na economia mundial. A destruição desse argumento é simples, porque ele enviesa o significado e coerência de toda uma obra, concentrando-se numa obra dos anos 40, que aliás interpreta mal.)
Numa crónica por mim publicada neste blogue em 30 de janeiro de 2012, ou seja, há treze anos e picos, trouxe para a reflexão o que me parece ser a interpretação correta da obra que pressupostamente MAF associa à inspiração para as tropelias de Trump: “A obra chama-se “National Power and the Structure of Foreign Trade”. Inicialmente escrito nos primeiros anos da década de 40 e editado em 1945 pela Universidade da Califórnia (Berkeley), com uma reedição e pequena extensão em 1980, o texto é visto como o estudo pioneiro do modo como o comércio internacional pode representar um instrumento de dominação”.
O que Hirschman pretendia nos anos 40 com a sua meticulosidade habitual, era demonstrar como o domínio do comércio mundial representou para o nazismo um instrumento de dominação internacional, através de uma lógica simples: fazer com que as nossas exportações representem uma parcela significativa das importações dos nossos inimigos e que as importações realizadas a partir desses países representem uma mínima expressão das nossas diversificadas importações. A lógica é simples – concentrar para ferir os nossos inimigos e diversificar para reduzir dependências incómodas.
Trata-se, por isso, de uma obra extremamente datada, mas que permite compreender a importância que Hirschman atribuía à análise e à economia estruturais, introduzindo uma variante de que a geografia faz a guerra. A estrutura do comércio internacional é atravessada por lógicas de poder, sendo por isso passível de ser organizada segundo essa mesma lógica e o nazismo seguiu escrupulosamente essa regra na antecâmara da sua ofensiva sobre o mundo livre.
Atribuir a Hirschman a inspiração das tropelias de Trump representa uma abusiva interpretação de toda a vasta obra de um dos patronos deste blogue. É simples encontrar na obra de Hirschman argumentos para destruir essa ideia de inspiração, começando pela atenção que o economista refugiado nos EUA e que participou nos trabalhos de preparação do Plano Marshall concede às relações inter-industriais”, os célebres “linkages” de Hirschman. Com base na compreensão das relações interindustriais, será fácil compreender que alguns dos direitos aduaneiros colocados por Trump fogem a qualquer racionalidade económica, pois atingem materiais que são produtos intermédios cruciais para a economia americana, que nunca será capaz de rapidamente substituir esses produtos intermédios, produzindo-os a nível nacional.
Aliás, imagino que Hirschman terá dado algumas voltas no túmulo, incomodado por esta associação. MAF faz parte daquele grupo de cronistas, economistas e não só, que doutamente tentam encontrar alguma racionalidade no comportamento de Trump e do seu gangue mais próximo. MAF faz referência ao economista Stephen Miran, a que já aludimos neste blogue, cuja argumentação se baseia erradamente numa tautologia, como o são todas as relações que envolvem a balança de pagamentos.
Como temos vindo a desenvolver em várias crónicas, a política económica de Trump é errática e assenta no revivalismo mercantilista que conduzirá em última instância ao isolacionismo americano, incompatível com a continuidade da hegemonia do dólar.
Encontrar racionalidade no mais puro narcisismo patológico e encontrar supostamente na obra de Hirschman a inspiração para esse devaneio é, por um lado, errado e assenta, por outro, numa ligeireza de interpretação de uma obra datada no tempo, concebida para demonstrar como o nazismo tinha uma conceção de poder internacional veiculado primeiro pelas trocas e depois pela força das ocupações. Ora, da crónica do Económico, não transparece que MAF queira associar a Trump a imagem de manipulação nazi do comércio internacional.
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