Financial Times Paul Krugman
(Os leitores menos aficionados com as questões da ciência económica e da macroeconomia em particular talvez achem exagerada a minha atenção dedicada à economia americana. Mas como economista que não deixo de ser e sobretudo ainda saudoso dos tempos da academia, a economia americana continua a ser um inesgotável alfobre de debates de ideias, ainda para mais suspeitando eu que será por esta dimensão que a administração Trump irá encontrar obstáculos à concretização da sua perigosa agenda. Por isso, continuarei nesta senda, correndo o risco de algumas crónicas serem mais intragáveis para o leitor não especializado, mais “wonkish” como dizem os anglo-saxónicos, mas aquilo que vai acontecer por aquelas bandas transcende em muito o território americano. Resta dizer, por outro lado, que o debate económico nacional e até europeu continua frágil e sensaborão, concluindo pela minha parte que a academia nacional e europeia está mais domesticada, em proveito do sossego próprio, do que a americana e por isso a administração Trump começa a perseguir com perfídia os universitários americanos mais insubmissos e exuberantes nos seus comentários críticos. Assim, em continuação de post anterior, as contradições em que a administração Trump está a envolver-se defendendo simultaneamente a continuidade da hegemonia do dólar como moeda de referência e a necessidade da sua depreciação é dos tais debates a que não podemos ficar indiferentes. Até porque, graças ao Financial Times, temos agora um valioso ensaio de um dos grandes conhecedores das questões monetárias internacionais, Barry Eichengreen, professor em Berkeley, a escrever doutamente sobre o assunto. Devemos a Eichengreen obras valiosas para compreender a evolução da economia mundial desde a Grande Depressão de 1929-1930. Aprecio principalmente Hall of Mirrors: The Great Depression, The Great Recession, and the Uses-and Misuses-of History (2015), Oxford University Press, How Global Currencies Work – past, present and future (2017), Princeton University Press e The Populist Temptation: Economic Grievance and Political Reaction in the Modern Era (2018), Oxford University Press).
Regressemos ao tema. A dominância do dólar como moeda de referência internacional é indissociável da hegemonia económica e política dos EUA na economia mundial. Mas essa indissociabilidade não pode ser confundida com o peso da economia americana no comércio mundial, esse tem diminuído sistematicamente, com o peso americano nas exportações mundiais a quedar-se hoje pelos 11%. À paridade dos poderes de compra, o PIB americano está hoje nos 15% da economia global. Porém, Wall Street mantém o estatuto de mercado de capitais mais importante do mundo e o dólar continua a ser dominante em matéria de pagamentos e de reservas internacionais.
A incomodidade da administração Trump e dos seus principais ideólogos (se é que eles existem e têm influência no comportamento errático de Trump e apaniguados de primeira linha) é, em linha com outras manifestações da sua agenda, manifestamente contraditória. A contradição está no facto de pretender manter esse estatuto de moeda hegemónica e de referência e, simultaneamente, insurgir-se contra o défice externo das transações correntes da economia americana. O discurso vitimizado de que os EUA têm sido esmifrados no seu relacionamento internacional é do mais básico que tenho visto na cena internacional e assenta numa falácia – querer transformar uma mera relação contabilística, logo uma tautologia, numa relação causal.
A questão é relativamente simples de explicar. O estatuto de moeda de referência faz com que além da vontade de realizar as trocas internacionais (exportações e importações) em dólares, os investidores internacionais acorram ao mercado de capitais americano e aí realizem investimentos em títulos denominados também em dólares. O pressuposto da administração Trump é o de admitir que o défice comercial externo americano tem uma relação determinista e direta com a entrada de capital no país à procura da moeda refúgio. Assim sendo, a tal visão mercantilista de que eu falava no meu último post sobre a matéria, considera que se convencerem os parceiros internacionais a depreciar o dólar isso vai conduzir a uma menor procura de investimento em títulos denominados em dólares e assim induzir uma redução do défice comercial externo.
Nas palavras de Paul Krugman, a questão torna-se bem mais clara: “Os EUA enfrentam grandes défices externos correntes não porque importem muito, mas pelo contrário importam muito porque têm de exportar títulos do tesouro americanos para proporcionar ativos de reserva e facilitar o crescimento global”. Aliás, as evidências históricas disponíveis mostram que o dólar é moeda dominante desde 1940 e durante esse período, pelo menos até 1970, os EUAS não deixaram de apresentaram excedentes correntes externos.
O determinismo da relação entre o comportamento da balança de transações correntes e das entradas de capital na economia americana não resiste de facto a uma análise mais profunda. Tal como Krugman o assinala com pertinência, nem toda a compra por estrangeiros de títulos americanos corresponde aos títulos de curto prazo utilizados como ativos de reserva. Uma grande parte dessas compras materializa-se em títulos de longo prazo. Além de que há capital a entrar nos EUA que não implica a compra de títulos, antes se materializa em tomadas de posição em empresas americanas. E não podemos esquecer ainda que muitos particulares e empresas americanos investem no estrangeiro, dando por conseguinte origem a saídas de capital.
A ideia de obrigar os governos estrangeiros a não comprar títulos americanos é peregrina, pois não há qualquer certeza de que tal operação conduza necessariamente a uma descida do défice corrente americano. Como a balança de pagamentos é uma relação contabilística, ela pode ajustar-se quer aumentando outras formas de entrada de capital, quer reduzindo as saídas de capital de particulares e de empresas e não afetar as exportações e importações de bens e serviços.
Quer isto significar, pura e simplesmente, que face à agenda de Trump, a reabilitação da indústria transformadora americana está apenas dependente da ofensiva dos direitos aduaneiros de proteção à indústria nacional. Mas nesta matéria, respeitando o que a teoria económica tem para nos dizer, a influência dos direitos aduaneiros nessa reabilitação é tudo menos um deux ex machina ou uma inevitabilidade. Os direitos aduaneiros podem ter um papel temporário numa política industrial mais proativa. Mas o que temos é que a administração Trump deitou pela borda fora a política industrial da Bideneconomics (Chips Act and Inflation Reduction Act).
Resumindo, se o convencimento dos governos estrangeiros (normalmente a pressão de bullying internacional não conduz a esse convencimento, antes convida à retaliação) a comprar menos títulos americanos não é solução para a reabilitação industrial americana e se os direitos aduaneiros não são por si só solução para essa reabilitação, então o primarismo das ideias de Trump irá dar proximamente com os burros na água. Por isso, tenho para mim que serão as contradições da economia a colocar limites à disrupção que Trump pretende provocar.
Nota final
Ontem, ao fim da tarde, decidimos abandonar o conforto da casa para ir assistir à Católica no Porto à apresentação do novo livro do Amigo Almiro de Oliveira, Ensaios Prometeicos no domínio da gestão – Edições Sílabo. O Almiro de Oliveira merece essa atenção pois é alguém que pensa a gestão numa perspetiva que me atrai e entusiasma, sendo uma Voz alternativa aos que glorificam a tecnologia e as tecnologias de informação e comunicação e que desprezam a teoria económica. E quem diz tecnologias de informação e comunicação diz também inteligência artificial. É espantoso como alguns ensaios que deram origem a esta obra abordaram estas questões de modo pioneiro nos anos 90 e na década de 2000 e a perspetiva crítica mantém atualidade. Agora menos do que no passado, algumas conversas no Alfa e na Pá Velha de Espinho anunciaram-me como aquele pensamento insubmisso era inovador. Publicado que está, fica disponível para quem pretenda ter uma visão crítica da inércia que vai pelo mundo da gestão.



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