quarta-feira, 15 de agosto de 2012

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E POLÍTICA



Raquel Marín (El País)
A divisão norte-sul no interior da zona euro é hoje cada vez mais evidente, revelando-se com maior intensidade do que no momento da sua criação. Os níveis de desenvolvimento económico e social representam bem essa divisão, confirmando as velhas teses de que uma união monetária e mesmo uma zona de mercado livre, quando concebida a partir de desníveis de desenvolvimento, dificilmente corrige os desequilíbrios iniciais. Agrava-os ou, quando muito, tende a gerar novos desequilíbrios. Essa tendência agrava-se quando as paridades monetárias entre as “velhas” moedas e a “nova” são concebidas essencialmente em função do potencial económico dos mais desenvolvidos. Tudo isto apesar dos efeitos positivos de mercado que a união económica e monetária abriu às economias do sul, hoje praticamente esgotados em termos de quotas de mercado.
Mas a divisão é mais ampla e projeta-se também no domínio dos modelos institucionais e de governança da coisa pública.
Esta reflexão ocorre-me na sequência da leitura da “La Cuarta Página” do El País de hoje, assinada por um professor da Universidade de Gotemburgo, Víctor Lapuente Giné. O tema é apresentado como uma espécie de doença institucional espanhola, identificada com as condições de politização da administração pública e com as suas consequências sobre a legitimidade do sistema democrático.
A reflexão de Lapuente Giné tem alguns aspetos inovadores e era sobre esses que me queria concentrar. É sobretudo relevante a relação dupla que estabelece entre a administração pública e a política, mais propriamente entre as carreiras que uma e outra proporcionam aos protagonistas.
A primeira relação é mais conhecida. Trata-se da característica comum às economias do sul (obviamente com especificidades nacionais) de apresentarem administrações públicas mais politizadas e mais rotativas com as alternâncias democráticas do que as prevalecentes nos modelos do norte. Apesar das tentativas mais recentes (do presente governo) de tornar o recrutamento mais profissionalizado e menos dependente das influências políticas de quem ocupa o poder, os resultados à vista não permitem concluir que a mudança esteja assegurada. Todos lemos há dias as declarações do Professor João Bilhim, responsável por esta nova unidade de recrutamento, e ficou visível a dificuldade da transformação que se pretende concretizar.
Aliás, no pós imediato das alternâncias democráticas, o fervilhar nas concelhias e distritais partidárias é intenso. Joga-se uma espécie de dança das cadeiras que se tornaram disponíveis e, com mais ou menos influência, lá se vão ocupando os postos e definindo os novos poderes. Não tenho evidências que o problema seja substancialmente diferente nas alternâncias da direita para a esquerda e vice-versa. Nesse aspeto, as máquinas políticas de quem aspira à alternância não são substancialmente distintas e o rejuvenescimento que hoje as caracteriza exerce um efeito homogeneizador. Mas, embora reconhecendo essa evidência, há inúmeros relatos do pós imediato desta última mudança de maioria política que mostram que esse ritual atingiu graus de elevada intensidade. Sabe-se que muito boa gente demorou algum tempo a recolocar as suas meninges e o seu sentido de orientação, havendo quem, no início, confundisse reuniões de natureza institucional com o ritual das concelhias e distritais. Não pode ignorar-se o pormenor do regresso ao poder, sobretudo no caso social-democrata, ter acontecido em simultâneo com substituição de clientelas internas, com voracidade de chegar ao poder, apesar das condições difíceis em que o mesmo iria ser exercido.
A literatura ensina-nos com segurança que administrações desta natureza são menos eficientes, mais propensas à mercantilização dos interesses e sobretudo, dada a rotatividade e o timing pressionante de uma legislatura, pouco propensas a uma visão de longo prazo, compatível com a espessura do tempo. Lapuente Giné fala de incentivos negativos para uma boa performance institucional, em gente sem tempo para aprofundar o conhecimento sobre a situação sob a sua tutela (admitindo bondosamente que toda esta gente seria disso capaz). Mas também de incentivos negativos para quem, em posições inferiores e sem relação com as máquinas partidárias, vê o seu sentido de serviço público adulterado por ruídos arrivistas.
Nesta perspetiva, a situação portuguesa não se diferencia sensivelmente da espanhola. Haverá apenas a particularidade da decisão portuguesa de profissionalizar grande parte da gestão dos Fundos Estruturais fora dos mecanismos de funcionamento normal das administrações públicas ter agravado tudo isto e ter contribuído para o esvaziamento de inteligência de um grande número de serviços públicos.
Mas a perspetiva de Lapuente Giné vai mais longe e admite a relação inversa. Ou seja, para além de haver demasiada política na administração, haverá também, em Espanha, demasiados funcionários na política. Baseando-se em evidências de composição do atual governo PP em funções, fala de uma espécie de prémios a altos funcionários que transitam para a carreira política, não limitando as condições dessa transição e não impondo custos a um regresso eventual à carreira pública: “em Espanha, não existe melhor plataforma para entrar na profissionalização da política do que ser funcionário”.
Nesta segunda dimensão, a extensão da tese à situação portuguesa é mais precária, carecendo mesmo de evidências seguras para a poder confirmar. A minha explicação é a seguinte: a degradação da administração pública observada em Portugal limita fortemente essa possibilidade. A composição dos governos reflete mais a influência do setor privado, sobretudo daquele que tem poder para capturar o Estado.
De qualquer modo, estamos perante um problema clássico de formação de elites, fortemente depauperada em Portugal. Elites para a administração pública e elites para protagonizar a profissionalização da política, cujas carreiras deveriam estar mais fortemente separadas.
A afirmação derradeira de Lapuente Giné é forte e marcadamente espanhola: “No es política lo que sobra en España, sino corporativismo”. Elementos relevantes para ir compreendendo os modelos de governação cá para as bandas do sul.

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