Raquel Marín (El País)
A divisão norte-sul no interior da zona euro é hoje cada
vez mais evidente, revelando-se com maior intensidade do que no momento da sua
criação. Os níveis de desenvolvimento económico e social representam bem essa
divisão, confirmando as velhas teses de que uma união monetária e mesmo uma
zona de mercado livre, quando concebida a partir de desníveis de
desenvolvimento, dificilmente corrige os desequilíbrios iniciais. Agrava-os ou,
quando muito, tende a gerar novos desequilíbrios. Essa tendência agrava-se
quando as paridades monetárias entre as “velhas” moedas e a “nova” são
concebidas essencialmente em função do potencial económico dos mais
desenvolvidos. Tudo isto apesar dos efeitos positivos de mercado que a união
económica e monetária abriu às economias do sul, hoje praticamente esgotados em
termos de quotas de mercado.
Mas a divisão é mais ampla e projeta-se também no domínio
dos modelos institucionais e de governança da coisa pública.
Esta reflexão ocorre-me na sequência da leitura da “La Cuarta Página” do El País de hoje, assinada por um professor da Universidade de
Gotemburgo, Víctor Lapuente Giné. O tema é apresentado como uma espécie de
doença institucional espanhola, identificada com as condições de politização da
administração pública e com as suas consequências sobre a legitimidade do
sistema democrático.
A reflexão de Lapuente Giné tem alguns aspetos inovadores
e era sobre esses que me queria concentrar. É sobretudo relevante a relação
dupla que estabelece entre a administração pública e a política, mais
propriamente entre as carreiras que uma e outra proporcionam aos protagonistas.
A primeira relação é mais conhecida. Trata-se da característica
comum às economias do sul (obviamente com especificidades nacionais) de
apresentarem administrações públicas mais politizadas e mais rotativas com as
alternâncias democráticas do que as prevalecentes nos modelos do norte. Apesar
das tentativas mais recentes (do presente governo) de tornar o recrutamento
mais profissionalizado e menos dependente das influências políticas de quem
ocupa o poder, os resultados à vista não permitem concluir que a mudança esteja
assegurada. Todos lemos há dias as declarações do Professor João Bilhim,
responsável por esta nova unidade de recrutamento, e ficou visível a
dificuldade da transformação que se pretende concretizar.
Aliás, no pós imediato das alternâncias democráticas, o
fervilhar nas concelhias e distritais partidárias é intenso. Joga-se uma espécie
de dança das cadeiras que se tornaram disponíveis e, com mais ou menos influência,
lá se vão ocupando os postos e definindo os novos poderes. Não tenho evidências
que o problema seja substancialmente diferente nas alternâncias da direita para
a esquerda e vice-versa. Nesse aspeto, as máquinas políticas de quem aspira à alternância
não são substancialmente distintas e o rejuvenescimento que hoje as caracteriza
exerce um efeito homogeneizador. Mas, embora reconhecendo essa evidência, há inúmeros
relatos do pós imediato desta última mudança de maioria política que mostram
que esse ritual atingiu graus de elevada intensidade. Sabe-se que muito boa
gente demorou algum tempo a recolocar as suas meninges e o seu sentido de
orientação, havendo quem, no início, confundisse reuniões de natureza
institucional com o ritual das concelhias e distritais. Não pode ignorar-se o
pormenor do regresso ao poder, sobretudo no caso social-democrata, ter
acontecido em simultâneo com substituição de clientelas internas, com
voracidade de chegar ao poder, apesar das condições difíceis em que o mesmo
iria ser exercido.
A literatura ensina-nos com segurança que administrações
desta natureza são menos eficientes, mais propensas à mercantilização dos
interesses e sobretudo, dada a rotatividade e o timing pressionante de uma legislatura, pouco propensas a uma visão
de longo prazo, compatível com a espessura do tempo. Lapuente Giné fala de
incentivos negativos para uma boa performance institucional, em gente sem tempo
para aprofundar o conhecimento sobre a situação sob a sua tutela (admitindo
bondosamente que toda esta gente seria disso capaz). Mas também de incentivos
negativos para quem, em posições inferiores e sem relação com as máquinas
partidárias, vê o seu sentido de serviço público adulterado por ruídos arrivistas.
Nesta perspetiva, a situação portuguesa não se diferencia
sensivelmente da espanhola. Haverá apenas a particularidade da decisão
portuguesa de profissionalizar grande parte da gestão dos Fundos Estruturais
fora dos mecanismos de funcionamento normal das administrações públicas ter
agravado tudo isto e ter contribuído para o esvaziamento de inteligência de um
grande número de serviços públicos.
Mas a perspetiva de Lapuente Giné vai mais longe e admite
a relação inversa. Ou seja, para além de haver demasiada política na
administração, haverá também, em Espanha, demasiados funcionários na política.
Baseando-se em evidências de composição do atual governo PP em funções, fala de
uma espécie de prémios a altos funcionários que transitam para a carreira política,
não limitando as condições dessa transição e não impondo custos a um regresso
eventual à carreira pública: “em Espanha, não existe melhor plataforma para
entrar na profissionalização da política do que ser funcionário”.
Nesta segunda dimensão, a extensão da tese à situação
portuguesa é mais precária, carecendo mesmo de evidências seguras para a poder
confirmar. A minha explicação é a seguinte: a degradação da administração pública
observada em Portugal limita fortemente essa possibilidade. A composição dos
governos reflete mais a influência do setor privado, sobretudo daquele que tem
poder para capturar o Estado.
De qualquer modo, estamos perante um problema clássico de
formação de elites, fortemente depauperada em Portugal. Elites para a administração
pública e elites para protagonizar a profissionalização da política, cujas
carreiras deveriam estar mais fortemente separadas.
A afirmação derradeira de Lapuente Giné é forte e
marcadamente espanhola: “No es política lo que sobra en España, sino
corporativismo”. Elementos relevantes para ir compreendendo os modelos de
governação cá para as bandas do sul.
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