Alguns observadores têm exultado com os sucessivos golpes
de rins de Mário Draghi à frente do BCE para contornar as dificuldades
suscitadas pelas posições alemães no interior daquela instituição.
Reconheço que Draghi tem manifestado alguma capacidade
negocial, bem superior à do seu antecessor Trichet. Mas se nos fixarmos numa
trajetória de tomadas de decisão assumidas pelo BCE, ela é mais errática e ziguezagueante
do que pode parecer, numa sucessão de “uma no cravo, outra na ferradura” que
diz bem da inconsistência com que a zona euro está a ser gerida.
Um bom exemplo dessa trajetória é a agora anunciada decisão
de comprar dívida pública de curto prazo dos países sob o fogo da crise das dívidas
soberanas. Tal decisão pode disciplinar um pouco os mercados para essas maturidades
de dívida, mas parece-me claro que não resolve o problema essencial. Mandam os
cânones que, em situações desta natureza, quanto menos pesada for a dívida de
curto prazo dos países sob fogo, mais favorável é a sua posição para gerar
soluções alternativas de mais longo prazo. Tudo indica que a posição do BCE
estimulará o endividamento adicional de curto prazo, complicando uma situação
que já é por si só suficientemente complexa, não se vislumbrando uma trajetória
credível de redução sustentada do peso da dívida.
Um outro domínio em que é bem visível a cristalização
ideológica do BCE é a sua reiterada defesa de redução das remunerações
salariais nos países da europa do sul como resposta ao desemprego que tem vindo
a grassar nestes países.
A obsessão ideológica é clara. A dimensão do desemprego
nestes países prende-se essencialmente com dois fatores que não se combatem com
a redução salarial: primeiro, o que a UE vive é essencialmente um problema de
procura global; segundo, uma grande parte do desemprego prende-se com uma
situação típica de fim de ciclo longo, ou seja, as economias de mercado buscam
um novo paradigma de ramos motores de crescimento. Em ambas as situações, a
redução salarial é absurda e não constitui fator eficaz de relançamento económico.
Aliás, o próprio Banco de Inglaterra não podia ser mais
claro no seu último relatório sobre a inflação no Reino Unido: a crise na zona
euro e o crescimento do preço de algumas “commodities” deprimiram
significativamente a procura, sendo a debilidade da procura o principal fator
responsável pela ausência de crescimento. O relatório é particularmente
incisivo quando à influência que esta debilidade de procura está a provocar em
termos de oferta, agravada ainda pela desfuncionalidade do sistema bancário que
tem inviabilizado a ligação entre emprestadores e os que carecem de crédito.
Com esta situação, insistir na redução salarial é obsessão
doutrinária. Como já aqui demonstrei em contributos anteriores, o problema da
redução salarial pode colocar-se quando muito no setor não transacionável, já que
o seu aumento desmesurado se deveu a um choque de procura fortemente impulsionado
pelo “el dorado” de oferta de crédito que o pré 2008 viabilizou.
Há, sim, um problema estrutural de procura, parte do qual
se deve a uma situação de fim de ciclo longo e aí a história do longo prazo
ensina-nos quão penosos são essas transições.
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