(Detalhe do Vaso de Mykonos,
com uma das mais antigas representações do Cavalo de Tróia, século VIII a.C.),
Wikepedia
Um excelente artigo de David Gardner no Financial Times de 15 de Agosto faz-me regressar a este tema que é central para
os objetivos editoriais deste blogue.
Já aqui demonstrei, com a ajuda preciosa do
legado intelectual de alguns dos espanhóis que tornaram possível o consenso político
e nacional em torno da constituição que concretizou em Espanha o processo de
transição democrática, que a democracia espanhola resultou de uma tensão e de
um equilíbrio entre nações. Num processo bem oposto ao de Portugal, sobretudo
quando fazemos a comparação entre os últimos vinte anos de ambos os regimes e
os próprios processos de transição democrática até ao regime constitucional,
essa tensão das autonomias faz parte da formação de uma nação de nações (Gregório Peces-Barba). Sabemos que a questão das nacionalidades no interior da nação
espanhola sempre incomodou a direita política e disso é prova cabal a luta
obstinada que Fraga Iribarne travou no seio do grupo que haveria de concretizar
os trabalhos finais de redação da constituição espanhola. Curiosamente, essa
luta obstinada não impediu o próprio Fraga Iribarne de posteriormente se transformar
num líder regional bastante carismático, gerindo com habilidade (há que o
reconhecer e sou testemunha disso tendo presenciado e sido ativo em inúmeras
reuniões de trabalho no meu período de consultor da CCDRN e do processo de
cooperação Galiza-Norte de Portugal) as contradições entre o seu pensamento
original e a necessidade de aprofundar a autonomia galega.
Não ignoro os custos de coordenação e de transação
que as autonomias regionais representam em termos do modelo de governação em
Espanha. Eles existem, mas também sabemos que os poderes centralizados, de
natureza vertical e setorial, como os existentes em Portugal apresentam abundantes
custos de coordenação e de transação. A prova é a de que, num governo que se
apresentou como de pequena dimensão como o de Passos Coelho, a generalidade dos
comentadores políticos, incluindo personalidades favoráveis como Marcelo Rebelo
de Sousa, fala hoje de séria descoordenação política. Mais ainda: grande parte
das dificuldades de execução orçamental resulta da complexidade de coordenação
da máquina administrativa inerente ao poder centralizado.
Mas um observador sério e atento às evidências do
modelo espanhol não pode dissociar a dinâmica do desenvolvimento económico
espanhol do papel descentralizador que as autonomias regionais representaram,
sempre com as chamadas autonomias históricas à cabeça (País Basco, Catalunha e
a Galiza).
Ora, a contradição disto tudo está na contradição
que o Partido Popular enfrenta. Construído na base de um sistema clientelar que
vai buscar as suas raízes ao rural mais profundo (hoje já claramente implantado
no eleitorado urbano) e à direita espanhola mais tradicional, logo com grande
implantação nas autonomias, o PP nunca escondeu a incomodidade que as
autonomias regionais representam para o seu projeto da Espanha central, a
estrela com foco em Madrid.
Por mais paradoxal que pareça, o PP encontra
neste período de grande pressão e dificuldades, com sérios revezes ao seu
programa eleitoral, uma oportunidade de ouro para o combate político com as
autonomias. A minha tese, também parcialmente admitida por David Gardner, é que
a dívida das autonomias regionais constitui hoje o cavalo de Tróia desse
combate.
Com exceção do País Basco e de Navarra, cujo
processo de descentralização e autonomia envolveu a capacidade de arrecadação
de impostos e de fixação de uma política fiscal de âmbito regional, as
autonomias regionais têm exercido a sua ação política através de um processo
truncado. Ou seja, afirmam-se por via da despesa, sem suportarem o ónus democrático
da validação de um regime fiscal conducente à garantia de receitas fiscais
compatíveis. Este processo truncado é hoje de facto o cavalo de Tróia dessas
mesmas autonomias. A dependência face ao governo de Madrid para assegurar o
refinanciamento das suas dívidas está a ser utilizada por aquele para tentar
minar as fundações do regime. Palavras exemplares do responsável socialista
pela economia e finanças do governo basco: “Construímos os pilares deste novo
sistema durante 30 anos. Até aqui, era aceitável mudar telhas do telhado mas
ninguém ousava tocar nos alicerces. Hoje, o medo é que toda a gente quer olhar
para esses alicerces.” (citado no artigo de David Gardner).
Por isso, duas tendências vão confrontar-se
duramente na futura evolução do modelo espanhol.
A hipótese de um federalismo fiscal, mesmo que
mitigado, envolvendo as autonomias regionais na responsabilização por aumentar
a percentagem de despesa regional financiada com impostos próprios constituiria
um aprofundamento democrático do modelo.
Mas esta tendência confrontar-se-á sempre com a
vontade de fazer recuar o modelo das autonomias, domesticando-as e aí o PP
estará no regresso às suas convicções mais profundas. Esta tendência tem alguma
força até porque algumas experiências regionais que têm de ser corrigidas
resultam de desvarios de governos PP (Valência é o caso típico).
A história diz-nos, porém, que em períodos de
mudança como o que vivemos, não são as soluções centralizadas que trazem a
inovação, a mudança e a experimentação de novos paradigmas. Elas surgem
frequentemente na periferia do sistema.
De todas as autonomias, a situação da Catalunha é
talvez a mais problemática, com um nível de dívida mais preocupante. A barganha
que vem aí entre os nacionalistas catalães e Madrid será tensa e apaixonante.
P.S. O artigo de David Gardner levou-me a
registar os comentários no Financial Times, sob pseudónimo imposto e aceite
pelo jornal. O pseudómino é Blue Moon Observer.
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