(Manuel Vázquez Montalbán, fotografia de 1998)
Já aqui sublinhei que a situação de pré-resgate que a
economia espanhola atravessa é particularmente relevante não só pela perspetiva
da solidez ou desmembramento da zona Euro, mas sobretudo pela sua interação com
as autonomias regionais. Os aspetos da descentralização espanhola e a tensão
permanente entre o modelo constitucional de “uma nação de nações” e a contraditória
senha centralista do PP no poder são apaixonantes do ponto de vista da relação
central/regional/local e de uma ciência política da descentralização ainda em
construção na Europa.
Já aqui falei da Galiza, mas hoje é sobretudo à Catalunha
e ao nacionalismo catalão que quero dedicar o espaço deste blogue, à boleia de
mais um excelente artigo da La Cuarta Página do El País, assinado por um professor de sociologia de Harvard, José Luís Alvaréz. O artigo chama-se “La
lucha final de la burguesía catalana”, título que nos projeta nos meandros do
nacionalismo catalão.
O artigo parte de uma evidência intrigante, que já aliás
tinha despertado a minha atenção. No coração de um défice fiscal sem
precedentes na Catalunha, que a coloca refém financeira da bondade de co-responsabilização
do governo de Madrid (mas que partida da história), a força política
nacionalista catalã, a CiU, consegue praticamente o impossível: as suas
perspetivas eleitorais permanecem intactas, até reforçadas (mas que ironia!),
conseguindo depositar no governo de Madrid todas as culpas (mas que PP tão inábil!).
Tudo isto, apesar de uma sucessão de casos de financiamentos irregulares e de
corrupção que os jornais espanhóis têm desfiado com regularidade, o que prova
que matéria-prima não falta. Aliás, por detrás de uma crise de dívida há sempre
o rodopio de desvarios do passado que vão aparecendo à superfície e aí a
Catalunha não foge à regra.
O que é de facto impressionante é a combinação de resiliência
e sagacidade do nacionalismo catalão. A CiU é essencialmente um partido da
burguesia, que Alvaréz estima ter sido suportado por uma base demográfica
eleitoral em torno dos 30%. Uma burguesia empresarial catalã e uma classe média
fortemente apoiada pelos mecanismos de emprego e de serviços sociais do governo
regional tem sido historicamente a âncora do nacionalismo catalão. Alvarez,
exemplarmente: “O catalanismo é a plataforma de hegemonia da burguesia de
origem catalã e a CiU o seu partido”.
Alvaréz analisa com mestria como é que uma base demográfica
e eleitoral relativamente diminuta conseguiu controlar a influência de classes
trabalhadoras não maioritariamente de origem catalã. Sublinha três aspetos
cruciais do ponto de vista da já referida ciência política da descentralização.
Primeiro, uma visão e uma estratégia incremental de
afirmação do nacionalismo (burgês) catalão, do qual Jordi Pujol foi a
personalidade central.
Segundo, o domínio inexorável do “cultural” e de toda a
consolidação que o catalão permitiu estabelecer.
Terceiro, a tática exemplar que a CiU sempre desenvolveu
em relação ao PSOE e ao PP, designadamente ao Partido Socialista Catalão que ao
assumir a indivisibilidade do projeto catalão e ao assumir-se como partido
interclassista nunca perturbou a estratégia do incrementalismo protagonizada
por Pujol. Aliás, durante largo tempo, o Partido Socialista Catalão partilhou o
poder territorial com a CiU: esta dominava a Generalitat e aquele dominava os
municípios.
Conta-se que Mário Soares, adversário feroz da
regionalização, perguntou um dia provocatoriamente a Jordi Pujol quando é que tencionava
regionalizar a Catalunha. Soares, não se apercebeu na época, que era
precisamente o Partido Socialista a viabilizar com a partilha política que
estabeleceu com a CiU a estratégia incremental mas sustentada do nacionalismo
catalão.
A estratégia da CiU está hoje num crescendo de afirmação do
nacionalismo muito suportado por uma espécie de reivindicação final “pacto
fiscal ou independência”, que também serve para ocultar uma situação financeira
desesperada.
Hoje, se tivesse todos os meus livros de Manuel Vázquez
Montalbán comigo (e são tantos), mas que não tenho pois estão em Seixas,
releria algumas passagens fundamentais sobre a burguesia catalã, admiravelmente
caracterizadas seja na prosa de Pepe Carballo, seja na de outros personagens por
ele inventadas. Poucos como ele se referiram com tal minúcia e algum desdém a
essa tal família de cerca de 400 membros da burguesia catalã que muitos observadores
tendem a identificar como sendo a base da elite mais tradicional que tem
suportado o nacionalismo catalão. Fica a sua imagem e sobretudo a esperança de
que num próximo fim de semana em Seixas haja tempo para recordar essas
passagens.
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