quarta-feira, 22 de agosto de 2012

AUTONOMIAS REGIONAIS E CRISE: O NACIONALISMO CATALÃO

(Manuel Vázquez Montalbán, fotografia de 1998)

Já aqui sublinhei que a situação de pré-resgate que a economia espanhola atravessa é particularmente relevante não só pela perspetiva da solidez ou desmembramento da zona Euro, mas sobretudo pela sua interação com as autonomias regionais. Os aspetos da descentralização espanhola e a tensão permanente entre o modelo constitucional de “uma nação de nações” e a contraditória senha centralista do PP no poder são apaixonantes do ponto de vista da relação central/regional/local e de uma ciência política da descentralização ainda em construção na Europa.
Já aqui falei da Galiza, mas hoje é sobretudo à Catalunha e ao nacionalismo catalão que quero dedicar o espaço deste blogue, à boleia de mais um excelente artigo da La Cuarta Página do El País, assinado por um professor de sociologia de Harvard, José Luís Alvaréz. O artigo chama-se “La lucha final de la burguesía catalana”, título que nos projeta nos meandros do nacionalismo catalão.
O artigo parte de uma evidência intrigante, que já aliás tinha despertado a minha atenção. No coração de um défice fiscal sem precedentes na Catalunha, que a coloca refém financeira da bondade de co-responsabilização do governo de Madrid (mas que partida da história), a força política nacionalista catalã, a CiU, consegue praticamente o impossível: as suas perspetivas eleitorais permanecem intactas, até reforçadas (mas que ironia!), conseguindo depositar no governo de Madrid todas as culpas (mas que PP tão inábil!). Tudo isto, apesar de uma sucessão de casos de financiamentos irregulares e de corrupção que os jornais espanhóis têm desfiado com regularidade, o que prova que matéria-prima não falta. Aliás, por detrás de uma crise de dívida há sempre o rodopio de desvarios do passado que vão aparecendo à superfície e aí a Catalunha não foge à regra.
O que é de facto impressionante é a combinação de resiliência e sagacidade do nacionalismo catalão. A CiU é essencialmente um partido da burguesia, que Alvaréz estima ter sido suportado por uma base demográfica eleitoral em torno dos 30%. Uma burguesia empresarial catalã e uma classe média fortemente apoiada pelos mecanismos de emprego e de serviços sociais do governo regional tem sido historicamente a âncora do nacionalismo catalão. Alvarez, exemplarmente: “O catalanismo é a plataforma de hegemonia da burguesia de origem catalã e a CiU o seu partido”.
Alvaréz analisa com mestria como é que uma base demográfica e eleitoral relativamente diminuta conseguiu controlar a influência de classes trabalhadoras não maioritariamente de origem catalã. Sublinha três aspetos cruciais do ponto de vista da já referida ciência política da descentralização.
Primeiro, uma visão e uma estratégia incremental de afirmação do nacionalismo (burgês) catalão, do qual Jordi Pujol foi a personalidade central.
Segundo, o domínio inexorável do “cultural” e de toda a consolidação que o catalão permitiu estabelecer.
Terceiro, a tática exemplar que a CiU sempre desenvolveu em relação ao PSOE e ao PP, designadamente ao Partido Socialista Catalão que ao assumir a indivisibilidade do projeto catalão e ao assumir-se como partido interclassista nunca perturbou a estratégia do incrementalismo protagonizada por Pujol. Aliás, durante largo tempo, o Partido Socialista Catalão partilhou o poder territorial com a CiU: esta dominava a Generalitat e aquele dominava os municípios.
Conta-se que Mário Soares, adversário feroz da regionalização, perguntou um dia provocatoriamente a Jordi Pujol quando é que tencionava regionalizar a Catalunha. Soares, não se apercebeu na época, que era precisamente o Partido Socialista a viabilizar com a partilha política que estabeleceu com a CiU a estratégia incremental mas sustentada do nacionalismo catalão.
A estratégia da CiU está hoje num crescendo de afirmação do nacionalismo muito suportado por uma espécie de reivindicação final “pacto fiscal ou independência”, que também serve para ocultar uma situação financeira desesperada.
Hoje, se tivesse todos os meus livros de Manuel Vázquez Montalbán comigo (e são tantos), mas que não tenho pois estão em Seixas, releria algumas passagens fundamentais sobre a burguesia catalã, admiravelmente caracterizadas seja na prosa de Pepe Carballo, seja na de outros personagens por ele inventadas. Poucos como ele se referiram com tal minúcia e algum desdém a essa tal família de cerca de 400 membros da burguesia catalã que muitos observadores tendem a identificar como sendo a base da elite mais tradicional que tem suportado o nacionalismo catalão. Fica a sua imagem e sobretudo a esperança de que num próximo fim de semana em Seixas haja tempo para recordar essas passagens.

Sem comentários:

Enviar um comentário