Já de regresso ao trabalho, com os percalços climáticos
da nossa situação atlântica (o norte do sul?) a refrescar a mente e o corpo,
aproveito para um breve digressão, muito circunstancial, pelas raízes do meu
mergulho na economia do desenvolvimento. Quase fruto do acaso.
O amigo Artur Castro Neves associou-me à apresentação, no
próximo ano, em Serralves, no âmbito do 2º ciclo de O Imaterial, de um
livro de ensaios do sempre recordado Celso Furtado, inédito e com a
particularidade de se tratar de uma obra sobre as relações entre a economia e a
cultura. Este aparente ineditismo da incursão de Celso Furtado pela cultura não
me surpreende, sendo aliás explicável pelo interesse que o economista do (sub)
desenvolvimento sempre dedicou à dimensão histórica e institucional das
economias latino-americanas que estudou em profundidade.
A obra foi organizada pela mulher de Celso Furtado, Rosa
Freire d’Aguiar Furtado, no âmbito do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas
para o Desenvolvimento e designa-se de “Ensaios sobre cultura e o ministério da Cultura“ e acaba de ser publicado no Brasil.
Hoje, de manhã, quando abria uma encomenda proveniente do
Brasil, pensei que seria o meu primeiro contacto com a mais recente obra do
pensamento que continua a fazer-nos falta de Celso Furtado. Mas não. A encomenda
era pelo contrário um livro de ensaios, editado pelo Centro Internacional Celso
Furtado, que comemorou algo tardiamente os 80 anos de uma economista brasileira
fascinante, complexa e controversa, portuguesa de nascimento mas naturalizada
brasileira, Maria da Conceição Tavares (MCT). O livro chama-se “Desenvolvimento econômico e crise”, antologia organizada por Luís Carlos Delorme Prado. Assim,
apesar da surpresa, permaneci no domínio das raízes.
Em colaboração com alguns colegas, com o amigo e colega
deste blogue Freire de Sousa à cabeça, fomos largamente responsáveis pela
divulgação em Portugal do pensamento de MCT, na tradição que é necessário
recuperar de uma economia política para o desenvolvimento. A análise de MCT é
decisiva para compreender o auge e queda do chamado “nacional
desenvolvimentismo”, suportado por um processo de industrialização por
substituição de importações orientado para um mercado interno que não conseguiu
crescer e ultrapassar a batalha da competitividade aberta pela sua posterior e
inexorável abertura ao exterior. O conhecimento profundo de MCT sobre esse
processo é hoje indispensável para o comparar com outros processos melhor
sucedidos de substituição de importações, claramente concretizados em ambientes
abertos e vencendo desde o início o anátema da internacionalização.
Os contributos de MCT são, na sua renovação, a ilustração
de alguém que sempre se recusou a deixar de pensar, incluindo uma luta dura de
contestação à ditadura militar brasileira, acompanhando criticamente a evolução
das economias latino-americanas, particularmente do Brasil, hoje no caminho
para um outro desenvolvimentismo. Implacável como sempre, não lhe escapou o flop total que a aplicação do consenso
de Washington acabou por produzir nestas economias.
Deixo-vos com um excerto de uma peça do jornalista Luiz Sérgio
Guimarães publicada na revista Valor de 26 de Junho do presente ano que
descreve esta personalidade que faz parte das minhas raízes:
“Bons coadjuvantes à leitura do livro são os vários
vídeos disponíveis no YouTube tendo a professora como protagonista, embora não
consigam emular a sua presença. Quem nunca assistiu a uma palestra de Conceição
não pode imaginar a eletricidade palpável que percorre o ambiente quando ela
começa a falar. O silêncio é assombroso, a atenção total, nem todas as palavras
são compreendidas por causa da velocidade da locução, do resquício de um
longinquo sotaque português, do emprego constante do mais refinado jargão dos
economistas em meio a uma saraivada de palavrões, do atropelo vertiginoso de
ideias, comparações, lembranças, propostas, alertas, gracejos, incentivos à
luta e alguma esperança. O debate após a palestra é o momento mais divertido.
Mesmo os que tentam, de alguma forma fadada ao fracasso, elogiar a professora
com perguntas referentes aos seus acertos, são rechaçados com impaciência. E se
alguém discordar… Bem, esse alguém vai inspirar pena antes mesmo de a
professora responder. Ela geralmente retoma a palavra num tom de voz irônico e
quase inaudível e vai aos poucos se inflamando e pode terminar a resposta aos
gritos ou batendo com os sapatos na mesa. No fim de tudo, em estado de choque,
mas energizada, a plateia se retira com a certeza de que algo muito vivo e
fundamental acabou de acontecer ali.“
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