sexta-feira, 28 de julho de 2017

INSTABILIDADE FINANCEIRA




(Inspirado pelas palavras sábias de John Kay, que conhece bem por dentro o universo financeiro, regresso ao tema do sistema financeiro, não apenas à luz do que se passa cá por dentro, mas sobretudo do ponto de visto do que é que efetivamente foi alcançado em termos mundiais para minimizar os riscos de uma eventual nova crise como a de 2007-2008 …)

John Kay continua a ser, entre os que conhecem por dentro o funcionamento do sistema financeiro, uma das vozes mais avisadas e lúcidas para nos ajudar a compreender a relação complexa entre três dimensões: o que terá sido feito efetivamente para reduzir a probabilidade de ocorrência de novas crises induzidas a partir do sistema financeiro (regulação, gestão macroeconómica prudencial e outras coisas), o comportamento real do universo financeiro após essas intervenções e a perceção que os cidadãos com maior ou menor literacia financeira alimentam quanto a esse mesmo setor.

Numa palestra nos Talks at Google (UK) (link aqui), Kay insiste na ideia de que as entidades do sistema financeiro são percecionadas como gerando a sua lucratividade por via da apropriação da riqueza gerada noutros setores de atividade. O que parece contraditório com a ideia de financiamento de muitas operações da economia real, sem o qual dificilmente teriam sustentabilidade para investir e crescer. Kay alerta com toda a pertinência para a situação de “detachment” que começa a caracterizar o sistema financeiro, quebrando laços com a economia real e alimentando-se a si próprio de relações entre as próprias componentes do sistema financeiro. E, o que é pior, internalizando a sua própria accountability, como se não devesse ser avaliada por entidades exteriores ao sistema, dando voz aos restantes setores, designadamente aqueles que necessitam dos seus serviços em condições de não expoliação de riqueza.

Este tema acaba por se cruzar com a pergunta que continua a ser insistentemente colocada e que consiste em saber se a economia mundial estará a salvo, nos tempos mais próximos, de um novo possível abalo com epicentro no sistema financeiro. Por outras palavras, se os desequilíbrios e más práticas financeiras foram criteriosamente corrigidas, de maneira a evitar os efeitos de ampliação que um qualquer choque que se abata sobre o sistema financeiro tende a provocar com esses desequilíbrios e más práticas em vigor. Nos últimos tempos, dada a ocorrência de algumas situações de euforia nos mercados de ações, particularmente com génese nos EUA, discute-se se não estaremos perante um eminente choque de descida de valor desses ativos, provocando efeitos em cadeia, não propriamente do tipo dos ocorridos em plena crise do subprime.

A opinião dominante entre os responsáveis pelos principais bancos centrais é claramente a de que no período de vida dos atuais responsáveis muito dificilmente se assistirá a uma reedição de crise do tipo da de 2007-2008. A questão da sobreavaliação de ativos não é ignorada por personalidades como Janet Yellen (FED USA) ou Mark Carney (Banco de Inglaterra), mas os efeitos de um possível choque corretivo tendem a ser desvalorizados. O principal argumento é o de que sobrevaloração não foi alimentada ou está dependente de crédito bancário. Gavyn Davies, cronista do Financial Times, que em 23 de julho analisou esse problema (link aqui), embora aceite o argumento, não deixa de referir que os pronunciamentos por exemplo do FED sobre a situação atual não resultaram de posições unânimes no interior dos comités (neste caso do FOMC) que tomaram as devidas decisões. Outros membros do FOMC estarão mais preocupados com os riscos da eufórica valorização de ativos, o que sugere que estamos perante avaliações realizadas por diferentes vias e valoração diferenciada de alguns aspetos em relação a outros. Davies trabalha os mais recentes relatórios sobre estabilidade do sistema financeiro concluindo que, sobretudo no caso europeu, é visível a maior regulação do BCE, com melhoria declarada dos níveis de capitalização da banca europeia, embora se saiba que o Monte Pachi di Sienna acaba de ser intervencionado. Dos elementos recolhidos por Davies destaco sobretudo a ideia de que na sua esmagadora maioria a chamada “banca sombra” foi puxada para a luz do dia, com evidentes ganhos de transparência e de efetividade da regulação. A “banca sombra” é aquela que exerce funções similares à banca tradicional mas escapa à regulação porque não constituem entidades monetárias do sistema financeiro.

É neste contexto que os ventos desregulacionistas trazidos por Trump para a economia americana podem ter um preço elevado. Se Trump explorou a chamada fadiga da desigualdade promovendo o populismo à custa da manipulação desse sentimento junto de certas populações, também poderíamos ter aqui pela frente um aproveitamento da fadiga reguladora, gerando uma espécie de populismo financeiro. As consequências sobre a instabilidade do sistema financeiro seriam severas e a acontecerem seriam a evidência de que o sistema financeiro não aprende com os seus próprios erros.

Moral da história: não podemos de facto ignorar que foram introduzidas correções em princípio conducentes a uma maior estabilidade do sistema financeiro. Mas a gestão macroeconómica prudencial não está ainda totalmente estabilizada do ponto de vista das suas orientações. Para além disso, tal como John Kay o assinala, o sistema financeiro ainda está demasiado tolhido pelo propensão para intensificar o relacionamento com ele próprio. E os ventos da desregulação podem não estar totalmente dominados. Por isso, cautela e caldos de galinha …

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