(Inspirado pelas
palavras sábias de John Kay, que conhece bem por dentro o universo financeiro, regresso ao tema do sistema financeiro, não
apenas à luz do que se passa cá por dentro, mas sobretudo do ponto de visto do
que é que efetivamente foi alcançado em termos mundiais para minimizar os
riscos de uma eventual nova crise como a de 2007-2008 …)
John Kay continua a ser, entre os que conhecem por dentro o funcionamento
do sistema financeiro, uma das vozes mais avisadas e lúcidas para nos ajudar a
compreender a relação complexa entre três dimensões: o que terá sido feito
efetivamente para reduzir a probabilidade de ocorrência de novas crises
induzidas a partir do sistema financeiro (regulação, gestão macroeconómica
prudencial e outras coisas), o comportamento real do universo financeiro após
essas intervenções e a perceção que os cidadãos com maior ou menor literacia
financeira alimentam quanto a esse mesmo setor.
Numa palestra nos Talks at Google (UK) (link aqui),
Kay insiste na ideia de que as entidades do sistema financeiro são percecionadas
como gerando a sua lucratividade por via da apropriação da riqueza gerada noutros
setores de atividade. O que parece contraditório com a ideia de financiamento de
muitas operações da economia real, sem o qual dificilmente teriam sustentabilidade
para investir e crescer. Kay alerta com toda a pertinência para a situação de “detachment” que começa a caracterizar o
sistema financeiro, quebrando laços com a economia real e alimentando-se a si
próprio de relações entre as próprias componentes do sistema financeiro. E, o
que é pior, internalizando a sua própria accountability,
como se não devesse ser avaliada por entidades exteriores ao sistema, dando voz
aos restantes setores, designadamente aqueles que necessitam dos seus serviços
em condições de não expoliação de riqueza.
Este tema acaba por se cruzar com a pergunta que continua a ser
insistentemente colocada e que consiste em saber se a economia mundial estará a
salvo, nos tempos mais próximos, de um novo possível abalo com epicentro no
sistema financeiro. Por outras palavras, se os desequilíbrios e más práticas financeiras
foram criteriosamente corrigidas, de maneira a evitar os efeitos de ampliação
que um qualquer choque que se abata sobre o sistema financeiro tende a provocar
com esses desequilíbrios e más práticas em vigor. Nos últimos tempos, dada a
ocorrência de algumas situações de euforia nos mercados de ações, particularmente
com génese nos EUA, discute-se se não estaremos perante um eminente choque de descida
de valor desses ativos, provocando efeitos em cadeia, não propriamente do tipo
dos ocorridos em plena crise do subprime.
A opinião dominante entre os responsáveis pelos principais bancos centrais é
claramente a de que no período de vida dos atuais responsáveis muito
dificilmente se assistirá a uma reedição de crise do tipo da de 2007-2008. A
questão da sobreavaliação de ativos não é ignorada por personalidades como Janet
Yellen (FED USA) ou Mark Carney (Banco de Inglaterra), mas os efeitos de um
possível choque corretivo tendem a ser desvalorizados. O principal argumento é
o de que sobrevaloração não foi alimentada ou está dependente de crédito bancário.
Gavyn Davies, cronista do Financial Times, que em 23 de julho analisou esse
problema (link aqui), embora aceite o argumento, não deixa de referir que os pronunciamentos
por exemplo do FED sobre a situação atual não resultaram de posições unânimes no
interior dos comités (neste caso do FOMC) que tomaram as devidas decisões. Outros
membros do FOMC estarão mais preocupados com os riscos da eufórica valorização
de ativos, o que sugere que estamos perante avaliações realizadas por diferentes
vias e valoração diferenciada de alguns aspetos em relação a outros. Davies trabalha
os mais recentes relatórios sobre estabilidade do sistema financeiro concluindo
que, sobretudo no caso europeu, é visível a maior regulação do BCE, com melhoria
declarada dos níveis de capitalização da banca europeia, embora se saiba que o
Monte Pachi di Sienna acaba de ser intervencionado. Dos elementos recolhidos
por Davies destaco sobretudo a ideia de que na sua esmagadora maioria a chamada
“banca sombra” foi puxada para a luz do dia, com evidentes ganhos de transparência
e de efetividade da regulação. A “banca sombra” é aquela que exerce funções
similares à banca tradicional mas escapa à regulação porque não constituem entidades
monetárias do sistema financeiro.
É neste contexto que os ventos desregulacionistas trazidos por Trump para a
economia americana podem ter um preço elevado. Se Trump explorou a chamada
fadiga da desigualdade promovendo o populismo à custa da manipulação desse sentimento
junto de certas populações, também poderíamos ter aqui pela frente um
aproveitamento da fadiga reguladora, gerando uma espécie de populismo financeiro.
As consequências sobre a instabilidade do sistema financeiro seriam severas e a
acontecerem seriam a evidência de que o sistema financeiro não aprende com os
seus próprios erros.
Moral da história: não podemos de facto ignorar que foram introduzidas
correções em princípio conducentes a uma maior estabilidade do sistema
financeiro. Mas a gestão macroeconómica prudencial não está ainda totalmente
estabilizada do ponto de vista das suas orientações. Para além disso, tal como
John Kay o assinala, o sistema financeiro ainda está demasiado tolhido pelo propensão
para intensificar o relacionamento com ele próprio. E os ventos da desregulação
podem não estar totalmente dominados. Por isso, cautela e caldos de galinha …
Sem comentários:
Enviar um comentário