A demissão forçada de três secretários de Estado envolvidos no
financiamento GALP a viagens e bilhetes para o Europeu de Futebol do passado ano,
e o que estará por desvendar nesse caso obtuso, é o terceiro golpe que se abate
sobre uma ação governativa que prometia, vivendo e capitalizando a criatividade
da solução política encontrada.
Se nos dois golpes anteriores é praticamente impossível a ação governativa
atual ficar imune a responsabilidades, o terceiro golpe resulta de outros
contextos e influências que, em meu entender, não podem confundir-se com a ação
governativa. O “Galp gate” indicia causas bem mais profundas, fortemente
enraizadas na sociedade portuguesa e no modo como a vida política, a vida pública
e os negócios têm convivido nos últimos tempos. A relação é promíscua,
enraizada, pelo que o sentido de promiscuidade não é enquanto tal percebido nem
pela opinião pública, nem pelos principais intervenientes. Espanta-me o modo
leviano como secretários de Estado que o foram certamente não obrigados e por
opção ou cálculo pessoal perspetivam os limites do relacionamento com empresas
de grande dimensão e, neste caso, adicionalmente com o futebol. Não estamos a
falar de gente a ganhar salário mínimo, mas antes de quadros superiores com ligação
anterior a remunerações superiores. Por isso, espanta-me que, por um bilhete de
avião e uma entrada no Europeu, esta gente comprometa todo o protocolo de separação
entre atividades públicas e privadas, com o agravamento da GALP ter um conflito
fiscal com o governo. Podem chamar-lhe tudo, de imprevidência, saloiice barata
ou sentimento de captura total do interesse público pelo privado, mas o que me
espanta mais é o sentimento de que para muitos dos prevaricadores a perceção é
a de que estão simplesmente a praticar algo de comum e frequente entre as
hostes.
Pelos jornais soube ainda que um conhecido assessor económico de António
Costa, Vítor Escária de seu nome, professor no ISEG, também assessor económico
de José Sócrates no seu tempo de governação, foi também alegadamente envolvido
na questão dos bilhetes para o Europeu. Escária é um quadro superior da Augusto
Mateus & Associados, recentemente comprada pela Ernst Young, useiro e vezeiro
nas trocas de posição entre a consultoria com o Augusto Mateus e a assessoria a
primeiros-ministros. Toda esta transumância mostra como os limites entre o
interesse público e o privado estão quebrados. Fala-se também que a Procuradoria-Geral
da República tem engatilhada outra investigação que mexe com benesses do tipo oferecidas
pela Agência de Viagens Cosmos. Outras se seguirão se a Procuradoria se der ao
incómodo de alargar a rede e sabe-se lá o que virá atrás do processo GALP.
Ora, a originalidade da solução governativa à esquerda, com apoio parlamentar
que nunca fora experimentado, fez-nos esquecer estes traços endémicos da sociedade
portuguesa que um incêndio mais trágico, o descuido da supervisão de um paiol (é
deprimente a brecha que existe entre o Chefe de Estado Maior do Exército e o
Chefe do Estado Maior das Forças Armadas) e o desleixo de procedimentos de secretários
de Estado colocam a nu com toda a sua crueza. São traços endémicos, a
fragilidade do Estado, a situação caótica da administração setorial e verticalizada
e a confusão de limites entre o interesse público e o interesse privado, que
este Governo tal como os outros tende a ignorar e a desvalorizar. O problema é
que elas acontecem. No caso da confusão de limites entre o interesse público e
o interesse privado, não haverá casting governativo que possa considerar-se a
salvo desta mercearia das benesses. É o caso dos bilhetes, como pode ser uma
regalia pessoal ou subsídio majorado qualquer ou a transumância entre o público
e o privado.
Estas situações moem e doem, simultaneamente. Por mais estranho que isto
possa parecer, António Costa faz figura de principal atingido ou muito me
engano ou jamais será o mesmo em termos de confiança decisória para as questões
da governação. Alguns mitos ou realidades sobre a capacidade de coordenação do
primeiro-Ministro estão em profunda erosão. E a questão não pode deixar de ser
colocada. Como é que se moralizam estas situações sem cair na deriva do populismo
barato? Estaria mais confiante se a justiça não fosse também atingida por
alguns destes traços endémicos e, se dúvidas tinha, bastou escutar com atenção
as entrevistas do juiz Carlos Alexandre para compreender que os interesses corporativos
também se movimentam por essas bandas.
Moral da história. Para apreciar a ação governativa de qualquer outra solução
política que venha a formar-se, mais ou menos imaginativa, mais menos do mesmo,
não bastará avaliar a concretização do seu programa. Será também necessário
avaliar qual o grau de contágio fase à influência destes traços endémicos da
sociedade portuguesa que se abatem sobre a ação política, Parlamento e Governo.
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