(Por terras de
Basto tive tempo de ler com atenção a entrevista de Ricardo Salgado ao Dinheiro
Vivo, é documento que vale
a pena ler, simplesmente como um registo de um processo que, ou me engano
muito, só compreenderemos bem daqui a muito tempo…)
Não é fácil ler a entrevista de Ricardo Salgado ao Dinheiro Vivo sem ceder
à tentação da curiosidade de saber o que é que alguém que consideramos
instintiva e intuitivamente culpado pelos acontecimentos do BES e GES tem para
dizer. Não posso deixar de registar a similaridade desta sensação com aquela
que temos ao ouvir José Sócrates, embora o ex-primeiro Ministro esteja nos
tempos mais recentes bastante mais reservado nos seus aparecimentos.
Mas com o tempo de um fim-de-semana mais distendido do que o habitual e com
a silhueta dos montes contíguos à Senhora da Graça como contemplação, deu-me
para tentar ler a entrevista de Salgado abstraindo, na medida do possível, da
sua presumida culpabilidade. Nessa perspetiva simplesmente analítica, a minha
interpretação é que a entrevista pode configurar a estrutura da defesa
antecipada de Ricardo Salgado face aos inúmeros processos judiciais em que será
envolvido.
Por isso, tem interesse em destacar da entrevista alguns pontos que
constituam antecipação de matérias que irão, certamente, vir a público quando
esses processos começarem a tomar forma pública. E passo por cima do facto já
esperado do Governador do Banco de Portugal ser o inimigo de estimação de
Salgado, bem mais assertivamente do que outros visados.
Primeiro tema relevante da tal defesa antecipada. O modelo de resolução do
BES é trabalhado como uma grande origem dos males observados. E o argumento tem
curiosamente muito que se lhe diga. O BES foi segundo o entrevistado campo
único de experimentação laboratorial (as cobaias portuguesas são mais dóceis) de
algo que não se terá repetido desde então, atendendo sobretudo ao estado
inacabado do Fundo de Resolução e da incerteza quanto à sua generalização nas
práticas da futura União Bancária. Não é por acaso que Salgado refere
sistematicamente o caso recente por terras de Itália do Monte dei Paschi di
Sienna, intervencionado segundo outro modelo, pois os italianos nem quiserem
ouvir falar do modelo de resolução tipo BES. Como elemento de contexto, esta
matéria é relevante. Creio que o próprio Governador do Banco de Portugal estará
hoje bem menos seguro da bondade da solução. A argumentação que foi apresentada
no momento da publicitação da resolução soava então bem mais firme do que a que
hoje resulta da sequência dos acontecimentos. E sobretudo com a sensação
desagradável de Portugal ter sido cobaia de algo cuja replicabilidade futura
está hoje bem mais questionada.
Como corolário desta argumentação de Salgado contra os malefícios da
solução “resolução”, o entrevistado tenta puxar dos galões do peso e relevância
do então BES para justificar um outro tipo de intervenção e até estranho não
ter feito a comparação com o BPN. O outro tipo de intervenção recomendada por
Salgado era a intervenção com fundos públicos e até se lembrou de invocar o
praticamente defunto Banco de Fomento. Argumentos evidentes de uma situação de
risco moral do mais elevado grau. Tropelias privadas que baste, aqui d’el Rey intervenção
pública depois. Demasiado óbvio e previsível. Mas o que é curioso é a
argumentação de Salgado para tocar nos calcanhares de Maria Luís Albuquerque e
Passos Coelho, o que denota a diligente tentativa de distribuir politicamente
as suas acusações. Salgado fala da constituição inicial de um sindicato bancário)
para fazer face às necessidades iniciais de recapitalização do BES, com dois
bancos estrangeiros (com Deutsche Bank e Nomura), que terá abortado com a
recusa do governo de Passos Coelho de envolver a caixa nesse processo. Até aqui
nada de novo. Mas Salgado puxa de novo dos galões invocando a grande ajuda que
o BES terá concedido a empresas públicas, envolvendo nisso Maria Luís
Albuquerque, solicitando por isso reciprocidade de ajuda e culpabilizando Passos
Coelhos pelo contributo que deu para a rotura final.
Pelo meio desta argumentação esperada, surgem outros elementos que são
claramente de defesa antecipada e eles emergirão seguramente no desenvolvimento
dos processos judiciais. A assunção de erro de julgamento de avaliação de capacidade
de gestão e de idoneidade de personalidades como Álvaro Sobrinho e Hélder
Bataglia no caso do BES Angola é um deles. A refirmação de que tinha apenas um voto
em cinco no Conselho Superior do Grupo e que por isso não é totalmente responsável
pelo eclodir das situações, com a referência a vendas ruinosas de empresas do
Grupo (Tranquilidade à cabeça) impulsionadas pelo processo imposto pelo Banco
de Portugal, é outra. Um discurso de pseudo responsabilização face aos lesados
do BES faz parte da mesma defesa antecipada, neste caso com a introdução na argumentação
do caso das por ele consideradas provisões ilegais determinadas pelo processo
de resolução, aqui numa estratégia clara de defesa antecipada face aos inúmeros
processos suscitados pelos mesmos lesados. E ainda acusações ao Banco de Portugal
levantadas para o ar de não ter dado devida atenção a outros possíveis recapitalizadores
do ainda então BES (Third Point LLC de Daniel Loeb), para além dos seus remoques
ao primo Ricciardi.
Em resumo, a entrevista de Salgado que deve ter sido rigorosamente
preparada com os seus principais advogados, deve ser interpretada como um
esquiço da sua estratégia de defesa e diria mesmo que faz parte dela.
De facto, do ponto de vista do contributo penalizador do BES e do próprio
Ricardo Salgado para o modelo que conduziu o país à exaustão do seu modelo de
crescimento, não há uma palavra e uma justificação que seja. Pudera. É o caso
da PT em que é flagrante a ausência de qualquer argumento convincente.
Assim sendo, a entrevista do Dinheiro Vivo é uma peça de uma estratégia de
defesa mais larga de um processo cujos contornos vão arrastar-se provavelmente
para além do inadmissível.
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