(Não sei com que
evidência trabalha o sociólogo Boaventura, mas a leitura da sua crónica no Público cheira a negação de algo que lhe
pode custar admitir, como sociólogo interveniente, a evidência de que as
revoluções podem adulterar-se e caminhar para o seu oposto…)
Sabemos que Boaventura Sousa Santos é um sociólogo empenhado e tem feito
dos movimentos revolucionários e alternativos de procura de soluções ao
capitalismo a sua fonte de inspiração e trabalho. Está no seu direito, nunca
ocultou as suas opções metodológicas e não é por isso que os financiadores públicos
nacionais e internacionais, designadamente europeus, lhe têm negado apoio ao desenvolvimento
da sua investigação.
Mas trabalhar com tanta proximidade aos movimentos políticos de terreno e
ser deles, por vezes, porta-voz ou elemento de amplificação de mensagens, tem
os seus riscos. Esses movimentos podem degradar-se do ponto de vista da pureza
dos seus objetivos e fins últimos. A necessidade de jogar os mecanismos da democracia
e ganhar por essa via uma nova força de sustentação e reconhecimento choca,
frequentemente, com os malefícios do poder, a tentação para a eternização, a
corrupção e a invocação em causa própria dos interesses de um povo que, a
partir de uma certa escalada, deixa de corresponder a uma realidade sociológica
bem determinada.
Depois do apoio a uma declaração de intelectuais e outras personalidades políticas
venezuelanas com votos pios para que os venezuelanos consigam resolver internamente
os seus problemas, BSS insurge-se agora contra o que designa de cobertura e
interpretação parciais do que se passa efetivamente na Venezuela (link aqui).
No desenvolvimento da sua argumentação, BSS oferece-nos esta pérola:
“Os desacertos de um governo democrático resolvem-se por via
democrática, e ela será tanto mais consistente quanto menos interferência
externa sofrer. O governo da revolução bolivariana é democraticamente legítimo
e ao longo de muitas eleições nos últimos 20 anos nunca deu sinais de não
respeitar os resultados destas.”
A falácia do argumento é gritante. O governo de Maduro não é hoje um governo
democrático e, por isso, toda a argumentação de BSS cai por terra. A sua posição
é claramente de negação da evidência. Interrogo-me sobre que evidências o seu
negacionismo está a ser construído.
Os que conhecem minimamente a história da revolução chavista sabem que a
sua aceitação popular resultou da abordagem frontal das condições de pobreza extrema
e de exploração a que a economia da Venezuela foi historicamente submetida. Sabemos
também que por detrás da justeza das reivindicações democráticas que colocam o governo
de Maduro em deriva de fuga para a frente se ocultam forças que voluntariamente
se entregariam a um regresso às referidas condições de marginalização de uma
larga franja da população venezuelana. Mas essa perceção não pode ocultar a
deriva prepotente, autoritária e de defesa da permanência no poder de um Maduro
que herdou um legado para o qual manifestamente não tinha capacidade de
liderança nem carisma e respeito popular para o levar a bom porto. O governo de
Maduro não é hoje um governo democrático, mas a sua antítese e as suas derivas
económicas mais não fazem do que exacerbar as condições de pobreza. O que é
mais grave é que as alarga a uma classe média muito débil, em pauperização
acelerada.
Que BSS negue esta evidência é a melhor prova e que a sociologia empenhada
e interventiva tem também os seus caminhos de deriva. Podemos bem com a heterodoxia
de Boaventura. Mas negação e ocultação de evidência transforma essa sociologia
em atividade meramente panfletária e gostaria bem de saber se as condições de
trabalho nas equipas científicas que dirige permitem a livre reflexão.
E não deixa de ser cínico que BSS elogie a sabedoria de Augusto Santos
Silva que segundo ele tem uma interpretação menos enviesada da situação venezuelana.
Será que BSS não entende os cuidados inerentes à defesa dos interesses de uma vastíssima
comunidade portuguesa, também ela em via acelerada para a pauperização e destruição
de poupança acumulada ao longo de anos, que pode ser inferida a partir dos regressados
à Madeira?
Depois de uma longa vida cientifica, com altos e baixos é certo, permanentemente
controverso, podemos bem com isso, não havia necessidade!
Sem comentários:
Enviar um comentário