quarta-feira, 2 de outubro de 2024

ATÉ ONDE QUER IR ISRAEL?

 

Começa a tornar-se cada vez mais claro o sentido do que vem ocorrendo no Médio Oriente. Sintetizo o que me parece ser o essencial: estamos perante o aproveitamento israelita de uma conjuntura internacional de rara fragilidade americana, portanto especialmente favorável a que as autoridades de Jerusalém tenham considerado reunidas as condições ideais para se dedicarem estrategicamente a destruir ao máximo todas as forças opostas à sua existência ou resistentes à sua dominância, assim visando a imposição de uma nova ordem regional que entendem capaz de assegurar uma outra estabilidade na zona. Neste quadro, e a crer que por ali impera uma desigualdade em termos de potencial bélico que desfavorece o Irão e seus aliados, a retaliação iraniana de ontem poderá ter constituído, mais do que tudo, um tropeção na armadilha preparada por Netanyahu enquanto componente final de um plano de arrasamento que já deu frutos marcantes em Gaza e no Líbano, ou seja, com o notório enfraquecimento dos chamados proxies (Hamas e Hezbollah). Com os EUA amarrados a uma luta eleitoral altamente disputada e divisionista, ao que acresce a gritante debilidade física evidenciada por Biden, com Trump a emitir provocações premonitórias de toda a ordem, com o ataque a Guterres a servir de fachada para lançar a confusão no seio das Nações Unidas, com a NATO em transição para uma fase que só Deus sabe que contornos assumirá, Israel promete agora uma escalada adicional de vingança sobre o Irão cujos danos objetivos e efeitos colaterais estão longe de ser estimáveis mas que serão seguramente brutais e passíveis de tornar o mundo bastante mais perigoso.

terça-feira, 1 de outubro de 2024

A MAFALDA BEM TEM TENTADO...

(Idígoras y Pachi, http://www.elmundo.es)

A homenagem aos 60 anos da Mafalda, personagem inventada e trabalhada por Quino, é certamente merecedora de um apoio incondicional por tudo quanto retiramos e pudemos transmitir a partir daqueles pequenos folhetins aos quadrados, tão simples na forma quanto marcantes pelo teor das mensagens neles incorporadas. Num tempo em que, ademais, as notícias são assustadoras e tendem para um agravamento que não prevejo controlável em função de acontecimentos que ora pioram dramaticamente a situação no Médio Oriente, onde Netanyahu brinca com o fogo de um modo absolutamente descontrolado, ora aumentam a escalada na Ucrânia, onde Zelensky começa a dar sinais de desespero e Putin não dá mostras de qualquer cedência negocial enquanto aguarda por boas notícias que reconfigurem as circunstâncias envolventes, ora mantêm a incerteza sobre se prevalecerá uma salvífica vitória de Kamala Harris nas presidenciais dos EUA ou se, pelo contrário, Trump passará para trazer ao mundo o pior ou até pior do que isso. Porque a questão que já se coloca no horizonte internacional é a de sabermos se as condições para o princípio do fim ocorrerão mais ou menos depressa, ou seja, e respetivamente, por via de uma reação nuclear intempestiva do poder iraniano ou na decorrência do veredito de uns poucos milhares de votantes da Pensilvânia sobre o que pensam das suas contas de mercearia (expressão que reproduzo de uma crónica de Timothy Garton Ash no “The Guardian”). O meu feeling é o de que outubro talvez ainda resista a grandes alterações nas relações de força em presença, embora o mesmo já não seja capaz de afirmar quanto ao evoluir do restante trimestre final de 2024. 

(Ricardo Martínez, http://www.elmundo.es)

(Nicola Jennings, https://www.theguardian.com)

(Walt Handelsman, https://www.nola.com)

LINHAS VERMELHAS QUE PODEM MUDAR DE COR

 


(Tenho cada vez menos pachorra para mergulhar nas minudências e nas guerras do alecrim e da manjerona da pequena política nacional. Depois, não gosto que brinquem com o vermelho e são conhecidas as razões. Mas desta vez, tamanha tem sido a chinfrineira do jornalismo e comentariado, à qual o Presidente da República tem dado corda, sobre a questão do orçamento para 2025, que me vejo forçado a regressar ao assunto, com toda a dose de paciência que o assunto exige. Como dizia o Pacheco Pereira na última edição do Princípio da Incerteza, há muita gente na cena política portuguesa que ainda não compreendeu o significado de termos 50 deputados do Chega no Parlamento, sobretudo do ponto de vista do impacto que tem na formação de maiorias conducentes a uma governação relativamente estável. Não interessa agora saber se essa força de 50 deputados é real ou se é balão que pode esvaziar-se parcialmente num próximo ato eleitoral. Cá por mim, conhecendo o mimetismo que a política nacional tem relativamente a tendências no exterior e tendo em conta os avanços das extremas-direitas nos parlamentos de vários países não organizaria a minha estratégia política confiando que o balão do Chega pode esvaziar um pouco. Depois, é conhecida a posição de grande vulnerabilidade em que o PS de Pedro Nuno Santos e Alexandra Leitão (sim, este duo exige cada vez mais atenção) se encontra, especialmente porque as hipóteses de maioria de esquerda se esfumaram. Por tudo isto e neste contexto, vale a pena regressar a uma análise mais fina do posicionamento que o PS tem querido estabelecer a propósito da negociação para uma possível aprovação do Orçamento 2025. Posicionamento que se tem organizado em torno de duas linhas vermelhas de convicções e valores mais profundos que o partido considera inatacáveis, o seu desacordo com o IRS jovem e com a redução do IRC.)

Numa análise mais fina das referidas linhas vermelhas chego à conclusão que o PS de Pedro Nuno Santos teria interesse em matizar a sua posição relativamente pelo menos a uma dessas problemáticas. Explico-me.

Quanto ao IRS jovem, o PS está com carradas de razão. Já não discuto a possível inconstitucionalidade da medida. Fico-me pela rejeição quase generalizada da mesma, pois em meu entender querer marcar posição numa matéria crítica como a retenção dos jovens talentos no país, fio aliviador dos efeitos penosos do declínio demográfico, com uma injustiça das gigantes, equivale a um claríssimo esticar da corda. Podemos considerar esse esticar de corda como uma engenhosa manobra tática de Montenegro e do seu grupo mais próximo, mas nas condições de pequena maioria em que a AD está no poder impor essa medida na negociação com o PS significa uma atitude colaborativa que não é consistente e que pretende colocar o parceiro negocial numa posição de intransigência. Depois, a medida não tem conserto possível, pois não pode ser mitigada ou adaptada. É ou não é e o Governo teria de encontrar outra meida emblemática para ter uma palavra a dizer na fixação de talentos e reduzir a hemorragia em busca de condições e salários mais apetecíveis. Por isto entendo que se Montenegro quer forçar a barra em matéria de IRS jovem o PS deve resistir e sujeitar-se a uma quebra de negociações. Eleições como consequência? Sim, porque não assumir riscos em política é como se não a praticássemos.

Já o mesmo não pode ser dito a propósito da descida do IRC tal como o Governo a coloca. Não é novidade que a política económica do Governo, traduzida no Power Point de Pedro Reis, se resume a um alívio fiscal para as empresas. O PSD alinha nesta matéria com as agendas mais liberais da Europa que vêm no alívio fiscal das empresas uma fonte automática e milagrosa de conhecimento, quando não há evidência robusta que a suporte. A causalidade que pode estabelecer-se entre uma descida de IRC e a criação de mais investimento como fonte de crescimento económico está longe de ser automática. Depois, na grande maioria dos países que praticam essa agenda estão num patamar de qualidade de serviços públicos e de gestão pública que podem perfeitamente acomodar uma quebra de receita fiscal para beneficiar alguns. Excetuando os países bálticos, em que a descida de impostos tem de ser compreendida no quando de países que querem libertar-se da memória do estatismo soviético que os subjugou durante largo tempo e onde por isso impostos mais baixos significam fugir dessa memória tenebrosa, a ideia dos saldos fiscais para as empresas vem regra geral associada a condições de demonstração de recursos e de garantia de investimento.

É neste contexto que penso que, do ponto de vista negocial, IRS jovem e IRC deveriam ter por parte do PS uma estratégia negocial diferente. Firmeza à prova de bala no caso do primeiro e abertura a transformações da medida de descida do IRC, combatendo a ideia de fator automático (e milagroso) de crescimento económico. É verdade que o PS não controla neste momento a narrativa comunicacional instalada. Praticamente toda a gente fala de necessidade de entendimento de ambas as partes, embora poucos discutam a estranha inflexibilidade do Governo e de Montenegro. Mas em meu entender a posição do PS de associar inflexibilidade às duas medidas não beneficia a sua audição junto das narrativas comunicacionais. A questão parece clara: em matéria de IRS jovem só o Chega aceita a medida. Porque é que Montenegro não retira disso consequências?