quarta-feira, 23 de outubro de 2024

O BRICABRAQUE DOS BRICS

 


(Bons tempos em que a categoria Terceiro Mundo existia, em que tudo era mais fácil, ou, melhor dizendo, em que por convenção acreditávamos que a geopolítica internacional era mais clara, quando se calhar não era. O mundo parecia-nos tripolar e seguíamos com atenção os esforços dos mais pobres e emergentes em encontrar um caminho próprio num contexto de guerra fria ou que lhe quisermos chamar. Tudo isso ruiu com a queda do Muro e a desintegração como um baralho de cartas que se desmorona da União Soviética. Os apóstolos da globalização sem freios exultaram e pensaram, agora é que vai ser, e ninguém mais pensou na categoria Terceiro Mundo. Afinal ela era tão frágil, já que nessa altura havia mais mundos, bastava estar atento à progressão da divisão internacional do trabalho e às vagas sucessivas de países que iam aproveitando a alteração das condições salariais para entrar na corrida à medida que as condições salariais iam ensaiando o acompanhamento da produtividade. A terminologia dos BRICS emergiu quando a tal emergência ganhou notoriedade, com o grupo inicial dos quatro a destacar-se – Brasil, Rússia, Índia e China, para depois a África do Sul juntar-se ao grupo e, mais recentemente, a porta escancarar-se ainda mais com países como o Irão. Egito, Etiópia e Emiratos Árabes Unidos e outros estão na fila, com destaque para a Turquia. Além da vaga ideia comum do emergente e mesmo esta para a China e Índia corre o risco de não se aplicar, já que para o Brasil, que me desculpem os meus Amigos brasileiros, será sempre algo de emergente em busca de consolidação que demora a chegar.)

De facto, com a composição atual, é difícil encontrar um racional convincente para esta agremiação. Há espíritos que desdenham que falam num Terceiro Mundo dos mais fortes, mas eu diria que talvez o que unirá mais as almas hoje reunidas na vasta mesa que os acolhe será a desconfiança relativamente à hegemonia americana (se assim pode ser hoje chamada). O problema é que o desejo de hegemonia não desapareceu da lógica internacional e obviamente a China aspira a ter resultados nessa orientação, sobretudo depois que os EUA e os seus seguidores orçamentais despertaram para a realidade de que talvez as interdependências com a economia chinesa tivessem avançado demais e ensaiaram os travões mais acessíveis para reequacionar tais relações. Mas se as questões da hegemonia constituirão sempre uma fonte de tensão, nos tempos mais recentes em torno dos BRICS há tensões de tipo diferente que passaram a ter alguma expressão.

Em primeiro lugar, especialmente EUA, Reino Unido e Austrália, com a Europa tradicionalmente a ver navios e a perder-se na escolha de quem fala em seu nome, movimentaram-se na nova lógica dos blocos comerciais, procurando inscrever o seu poder na área geográfica com mais efetivo e potencial de crescimento, uma espécie de grande Ásia em que se estima estar o maior potencial de crescimento. Não enjeitaria a ideia de que os BRICS poderão encontrar aí um novo racional, fazer frente a essa movimentação e procurar densificar as relações comerciais e de investimento direto estrangeiro entre os seus elementos. Claro que a geometria variável está instalada e há bicos de obra do arco da velha, com a Turquia a destacar-se nesse universo. Não fecha as portas a uma articulação com a Europa, houve acordos nesse sentido, mas bate também à porta dos BRICS e quem alguma vez passou pelo novo aeroporto de Istambul percebe à primeira que existe ali um propósito de hub com a tal zona mais dinâmica do mundo em termos de potencial de crescimento.

Em segundo lugar e ainda mais recentemente, o ressurgimento do delírio imperial de Putin atravessa os BRICS, já que o autocrata russo tenta encontrar nesse bloco, por mais desengonçado que se apresente, uma saída para mitigar o seu isolamento e mostrar ao mundo ocidental que pode invadir a Ucrânia e mesmo assim não ficar isolado. Mas também o líder chinês não se coibiu de clamar que os BRICS nem sucumbem à pressão exterior nem são vassalos de outros. Percebe-se a mensagem dirigida à pretensa hegemonia americana. Isto antes dos EUA descalçarem a bota das suas eleições, já que muita gente considera Trump um isolacionista. Ora expliquem-me lá como é que um potencial isolacionista pode ser o cérebro orientador de uma hegemonia ocidental. Mas daí a transformar os BRICS num bloco homogéneo em termos de geopolítica internacional vou ali e venho. Questões complexas como a Ucrânia e o Médio Oriente mostram que dificilmente todas aquelas nações alinhem com uma rejeição violenta da influência ocidental. Jogarão sempre nos dois mundos e têm todo o direito de o experimentar, pelo menos enquanto o mundo estiver tão instável e indeterminado como se apresenta hoje. E por muito que o Kremlin se ponha em bicos de pés não está hoje em condições de contrabalançar a ambição da China.

Ou seja, os BRICS tenderão a ser uma espécie de palco ao serviço de uma peça de teatro de vanguarda, em que outros palcos se abrem incessantemente aos atores, logo uma boca de cena ela própria instável e em mutação.

E para nossa penalização, instituições ditas ocidentais tais como o FMI ou o Banco Mundial estão hoje perdidas não sabendo bem que papel jogar. O problema parece ser o de que a ideia de bricabraque não se aplica apenas aos BRICS. A economia mundial está nesse estado também, aparentemente suspenso de saber se um lunático perigoso e com problemas de respeito pela lei pode ganhar as eleições que estão aí à porta.

Chiça.

 

 

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