(Já aqui enunciei por várias vezes esta preocupação. Obviamente que a ascensão eleitoral da extrema-direita praticamente por toda a Europa constitui, em si mesma, uma tendência preocupante, sobretudo antecipando a partir da história as consequências que poderão daí advir. Mas a minha preocupação não fica por aí. Até talvez diga que, pelo menos a curto-médio prazo, há uma outra dimensão que me preocupa mais. Ela consiste em pressentir com evidência bastante significativa uma outra tendência – a do mimetismo de algumas forças democráticas, por agora, de direita que se deixam encandear pelas agendas dessa extrema-direita, ajustando as suas próprias agendas para agradar aos eleitorados dessas forças. Entre outros aspetos a considerar, essa tendência mimética determina que as forças de extrema-direita nem sequer necessitam de sofrer a erosão natural do exercício da política concreta. Basta estarem na retaguarda, fazerem-se ouvir e esperar que as forças democráticas da governação façam por elas o seu trabalho. Aquilo que está a passar-se na União Europeia em matéria de controlo da imigração é um exemplo inequívoco desta tendência absurda. Basta estar atento aos ecos observados a partir da posição dominante da primeira-Ministra italiana Giorgia Meloni, esta sim no poder efetivo da governação, para compreender que este mimetismo a que anteriormente me referi está a encaminhar parte da União para uma deriva completa e descontrolada.)
Sem ignorar os erros, indecisões e disparates com que as instituições comunitárias têm enquadrado a questão da imigração, é indiscutível que a extrema-direita ascendente conseguiu impor a ideia de que a imigração é o principal problema europeu. Isto acontece mesmo em cenário de diminuição do fenómeno e sobretudo a crescente e segura evidência de que a associação entre imigração e insegurança não tem base sólida. Tudo isto não significa que ignoremos o problema de (des)integração cultural que vem associado ao peso da imigração, questão sobre a qual a esquerda tem assobiado para o lado. Mas o que me interessa, por agora, destacar é que a primeira-Ministra italiana avançou com a ideia da externalização da deportação – a captura é realizada ainda fora de território italiano, segue-se a deportação para centros localizados na Albânia, ficando a entrada em solo italiano dependente de decisões administrativa e atribuição de licenças, sabe-se lá com que critérios. Esta ideia da externalização intermédia para fora dos territórios nacionais foi também ensaiada, com fracasso, no Reino Unido com o Ruanda como território de acolhimento temporário.
A verdade é que a solução Meloni tem agradado a alguns países, introduzindo a tal deriva na União Europeia. Sabe-se que um conjunto de 11 países decidiu explorar a externalização da política migratória, Itália, Países Baixos, Dinamarca, Hungria, Áustria, Chipre, Grécia, Malta, República Checa, Polónia e Eslováquia. E sabe-se ainda que a Presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen considera esta abordagem inovadora e que apoiou com a sua presença a cimeira que estes 11 países organizaram para decidir em sua cátedra aprofundar esta tal modalidade inovadora. Fazê-lo com a presença da Presidente da Comissão obviamente que tem outro significado. O que significa que talvez daqui a poucos anos não nos possamos orgulhar da Europa como último bastião dos direitos humanos.
A deriva não vem de agora. Já em maio deste ano, a Dinamarca tinha encabeçado uma declaração de 15 estados-membros no âmbito da externalização da política de imigração e asilo. No dia 18 de outubro, os 27 líderes da União Europeia deram um apoio mais explícito ao polémico plano de externalização da política de migração e o termo “soluções inovadoras” surgiu no fim dessa reunião algo tempestuosa como uma novidade a explorar. Paulo Pisco assina no Público uma contundente denúncia desta deriva, o que mostra que nem toda a gente anda distraída. O sóbrio e sempre perspicaz Fernando Salgado assina na Voz de Galicia uma outra denúncia exemplar desta indecência.
Até aqui, seguindo o pensamento de Jean Monnet, sempre admitimos que os avanços do projeto europeu dependiam de crises de grandes proporções e da convergência de esforços para as superar. A deriva de que vos falo não parece corresponder a esta evolução.
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