Pedro Garcias é um dos nossos bons jornalistas, sendo incontornável em matérias vínicas e no tratamento dos grandes temas que afligem a nossa região do Douro. Não o sabia portista nem tão especialmente dotado para uma abordagem de tão fino requinte psicológico quanto aquela com que hoje nos brinda nas páginas do suplemento “Fugas” do “Púbiico” – um texto que diz tudo o que se tem de dizer, mesmo que com mágoa, sobre um personagem que desempenhou um papel histórico e irrecusável na afirmação nacional e internacional do FC Porto, assim como da Cidade, da Região e do País, e que chega ao final dos seus dias num estado de deprimente abandono e abandalhamento por força de escolhas próprias que os seus correligionários sancionaram nas urnas com uma derrota humilhante inferior a 20% dos votos. Não importará agora tanto qualquer esclarecimento quanto à extensão temporária associada às virtudes e aos defeitos do ser humano em presença, para alguns um tão apaixonado pela causa que abraçou quanto capaz de por ela lutar incessantemente durante décadas, no que foi aliás premiado por níveis de sucesso notáveis em qualquer parte do mundo exceto na Capital do Império, para outros também um filho-família que nunca conseguiu esconder a falta de escrúpulos com que guiou a sua conduta de vida pessoal e financeira sem olhar a meios que não o de uma completa valorização da narcisicamente patológica lealdade subalterna típica de “O Padrinho” que sempre cultivou. Deixo-vos, por isso e com a devida vénia, a referida e magnífica peça de Pedro Garcias relativa a Pinto da Costa e à forma, para si gloriosa mas definitivamente triste, com que teimosamente quer encerrar a sua passagem pelo mundo.
“Pinto da Costa não gosta de vinho. Pelo menos, não bebe. Bebesse vinho e talvez percebesse a essencialidade da vida.
Se lhe permitissem a eternidade, Pinto da Costa teria gostado de ser presidente do F. C. do Porto até ao fim do futebol. A patética e mórbida capa que escolheu para o seu livro de memórias — que será apresentado este domingo e chegará às livrarias na segunda-feira, 28 de Outubro — diz tudo. Há quem veja nela um testemunho esmagador do seu amor incondicional ao clube, um acto de desassombro e coragem perante a proximidade da morte. A mim parece-me mais uma prova inequívoca da ideia messiânica que criou de si próprio.
O poder transformou Pinto da Costa na pessoa que todos conhecem. Nem é preciso adjectivar. A lealdade é o valor que mais preza. Os seus amigos ou protegidos podem ser delinquentes ou criminosos encartados, podem prejudicar ou roubar muito e de forma descarada até o próprio clube. Se estiverem sempre com ele, nos bons e nos maus momentos, terão sempre a sua amizade e gratidão. Quem viu a trilogia de ‘O Padrinho’ entende isto muito bem. Percebe também que, perante o ‘Padrinho’, todos são subalternos.
Fazer parte da lista restrita de pessoas que Pinto da Costa gostaria de ter no seu funeral deve ser um motivo de grande orgulho para alguns dos eleitos. Mas imagino que um ou outro, se tiverem um pinguinho de decência, tenham sentido um insuportável desconforto. Colocar António Oliveira (um dos mais geniais jogadores da história do FC Porto e empresário com fortuna suficiente para não depender de ninguém), ao lado de Fernando Madureira, o ex-líder dos Super Dragões, é mais um beijo de morte, mesmo que não intencional, do que uma prova de gratidão.
O que mais impressiona em Pinto da Costa, obreiro de inúmeras vitórias do meu FC Porto, é a sua arrogância e a sua incapacidade em reconhecer falhas e omissões, sacrificando tudo e todos, até os mais próximos, em nome de uma narrativa mitómana e fantasiosa (Sérgio Conceição, tido como um filho por parte de Pinto da Costa e a quem este responsabiliza agora pela aquisição ruinosa de Nakajima e Zé Luís, deve estar possesso). Talvez por saber que a glória dos seus feitos não desaparecerá dos museus tão depressa, ao contrário dos testemunhos directos, não é capaz de fazer um ajuste de contas com a verdade, de se penitenciar, de exibir, enquanto católico praticante, outras virtudes cristãs para além da gratidão. Prefere continuar obstinadamente a interpretar até ao fim o poema da sua devoção, o Cântico Negro, de José Régio, guiado apenas por ‘Deus e o Diabo’. ‘Não, não vou por aí! Só vou por onde/ me levam meus próprios passos…’. O ex-jogador Maniche, um dos campeões portistas e também um dos tais ‘traidores’ que Pinto da Costa não quer no seu funeral, respondeu-lhe, citando o último verso do poema Fim, de Mário de Sá-Carneiro: ‘A um morto nada se recusa’.
Há formas menos tristes de morrer.”
Sem comentários:
Enviar um comentário