(A leitura regular do substack Global Inequality de Branko MIlanovic é uma rara oportunidade de contactar com literatura económica e política do leste europeu. O economista sérvio, hoje radicado em Nova Iorque e dedicado ao estudo das questões da desigualdade, em que ele é proeminente desde a sua passagem pelo Banco Mundial, teve a sua formação universitária ainda na Jugoslávia de Tito, o que lhe garante uma familiaridade temática com essa literatura, à qual contrapõe uma perspetiva crítica só a quem estuda a globalização nas suas diferentes formas evolutivas. Assim, por exemplo, só para falar em escritos mais recentes, Milanovic é capaz de redigir uma recensão crítica das memórias do célebre anarquista Peter Kropotkin, dedicando com data de hoje uma curiosa reflexão sobre a atualidade da obra de Nikolai Berdyaev “A origem e o significado do Comunismo Russo”. Em termos comparativos, não conheço ninguém com esta abrangência de capacidade crítica. Recordo-me apenas do insuperável João Bernardo, que publicava na Afrontamento e que manifestava a propósito destes assuntos e da história russa em particular uma sabedoria imensa e verdadeiramente enciclopédica. Perdi-lhe o rasto e sobram as suas obras para me recordar a espantosa abrangência da sua sabedoria. A crónica de Milanovic traz-nos a recordatória do escrito publicado em 1938 por Berdyaev sobre os antecedentes, digamos sociológicos, da Revolução russa de 1917, com foco na história intelectual do século XIX. A tese de Berdyaev é a de que o povo russo tem uma crença profunda pelo “messianismo apocalíptico”, algo que unia estranha e paradoxalmente eslavófilos, niilistas, anarquistas e comunistas. A ideia consistia em atribuir ao povo russo, não à elite corrupta e abastada de hoje, mas ao povo vulgar, sobretudo o campesinato, o estatuto de suportar o sofrimento e, por essa via, trazer a salvação ao mundo. Esta ideia vem acompanhada de uma outra de que salvação e destruição vêm a par, já que a salvação pressupõe a destruição de tudo que é falso e construído sob mentiras.)
Quando se invoca a resistência russa na 2ª Guerra mundial à invasão nazi e se pondera a imensidão de soldados e população russa que pereceu nessa resistência é impossível não pensar no tal messianismo apocalíptico de que fala Berdyaev. Tal como Milanovic o assinala, é um pouco estranho pensar hoje o “russismo” como um princípio de salvação do mundo, quando é abundantemente conhecido que os Russos oferecem hoje números impressionantes de suicídios, homicídios, violência doméstica, alcoolismo e um mantra generalizado de outras patologias sociais. O que levanta também a questão de saber em que corpos da organização social terá o messianismo apocalíptico a sua base social de acolhimento. Não será certamente na elite corrupta e cleptocrática que encontraremos essa base social. Mas quando nos seus discursos inflamados de invocação de uma consciência russa capaz de contrariar a decadência ocidental, Putin se revê nos tempos anteriores à Revolução Russa de 1917 como o quadro de valores que o seu expansionismo descarado tenta reavivar, talvez estejamos perante uma fórmula diferente de definição da tal alma russa, capaz de suportar todos os sofrimentos para dar ao mundo uma esperança de salvação.
É conhecido que em 2014, numa reunião do Kremlin com os governadores regionais, Putin recomendou a estes a leitura de três livros de três intelectuais russos: Vladimir Solovyov, um amigo de Dostoievski, Nikolai Berdyaev, aristocrático cristão existencial considerado “filósofo da liberdade” e Ivan Ilyin, inspirador do que poderíamos chamar o “fascismo” russo.
Mas talvez o modelo mais adequado para tentar compreender o desplante de Putin e seus pares seja apenas o da AUTOCRACIA , INC. que Anne Applebaum nos propõe, assente na descrição dos métodos seguidos pelos ditadores que querem governar o mundo. Seria interessante discutir se o modelo da AUTOCRACIA, INC. necessita de narrativas racionalizadoras para se justificar perante as populações que oprime e submete pela força e pela rede de interesses que esse movimento apresenta já hoje à escala mundial. As coisas não se resolvem nestes casos pelo simples branco e preto, agravado pelo facto de haver cada vez menos ocidentais com compreensão da tal “alma russa”, amante ou não do messianismo apocalíptico.
Mas o que me parece evidente é que, hoje mais do que nunca, nunca as sociedades ocidentais do mundo livre se confrontaram com tantos problemas de oposição à pretensa superioridade dos valores que mostramos nas nossas bandeiras e, por conseguinte, aos obstáculos para a sua disseminação. O islamismo e o continuado aumento do peso das populações que afagam a religião muçulmana estão aí para o mostrar. E provavelmente também essa ideia do “messianismo apocalíptico” ou ideias próximas esgrimidas pelo autoritarismo russo contribuem para essa oposição. E, se quisermos ser rigorosos, a ausência de valores que o AUTOCRACIA, INC. revela mostra-nos que afinal o que une esse bando de ditadores em afirmação se guia simplesmente pela ganância do lucro e do enriquecimento pessoal, que não é afinal mais do que uma deriva dos tais valores que durante largo tempo quisemos disseminar pelo mundo.
Isto está preto e daqui a uns dias saberemos se é preto carregado.
P.S Já depois de ter concluído a redação deste post, dei de caras com uma grande entrevista de Lídia Jorge ao El País. Cito o que afirmou nessa entrevista a nossa Grande escritora sobre o niilismo atual:
" A cultura niilista dos princípios do século XX foi a que abriu o caminho, entre guerras, aos ditadores. Hoje estão criadas as condições finais para as ditaduras universais, que a SEgunda Guerra Mundial revertera. Esquecemos que entre guerras a palavra ditador foi muito positiva, Aqui em Portugal a agente alegrava-se porque finalmente tínhamos um, Salazar. Na atualidade temos guerras terríveis por dois ditadores, um democracia e outro num regime autocrático. E pensam que este é o momento para criar uma nova ordem, que se baseia noi niilismo, ou doria eu, no objetivismo da guerra e na convicção de que o egoísmo é a única filosofia que importa."
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