(Diário de Notícias)
(Como seria previsível, os dramáticos acontecimentos do bairro do Zambujal em Lisboa aguçaram a voracidade sem limites das nossas televisões, competindo pelos aspetos mais sórdidos do que está a acontecer no terreno e, se não forem tão sórdidos como o desejável, insinuam-se possíveis agravamentos e desenlaces. É assim que a televisão está, habituem-se ou reorientem os vossos tempos de cabo. No meio desta violência generalizada, os responsáveis pela nossa polícia continuam a não aprender com os erros e com aprumo institucional não se apercebem que ao colocarem a dúvida no centro dos acontecimentos estão a fornecer combustível e do bom à explosão de todos os extremismos, com aquele imbecil boçal do Chega a proclamar que matem mais que ficaremos mais descansados. Mas não é sobre esse tópico que gostaria de refletir hoje, mas antes no tom cada vez mais irritante de grande parte do comentariado, incluindo o que está mais próximo de visões mais progressistas sobre o assunto, que não se cansam de proclamar que tudo aquilo naqueles bairros da Área Metropolitana de Lisboa, e em todo o lugar de exclusão ou de interrogação identitária, é estrutural e por conseguinte sem qualquer chance de ser evitado acaso essa dimensão estrutural do problema não seja pensada e objeto de intervenção. O que é irritante nesta gente é não compreender que a invocação da dimensão estrutural dos problemas complexos que se enraizaram naqueles territórios da periferia metropolitana não é dissociável de intervenções necessárias e competentes de curto prazo, integradas numa visão coerente com a transformação que se pretende alcançar. E a prova mais inquietante de que tenho razão é que a insistência na perspetiva estrutural de entendimento dos problemas de exclusão nesta parte da Cidade não se tem traduzido, nem por sombras, na aceleração de estratégias de resposta, antes pelo contrário na cristalização dos mesmos problemas há longo tempo, determinando que a ladainha do estrutural se reapareça sistematicamente para gozo intelectual dos que a proclamam e desespero das populações que esperariam outras formas de apoio.)
Está há muito tempo estudado que estes problemas da periferia mais marginalizada estão associados a longas histórias de marginalização e precarização, agravadas nos últimos tempos pela densificação de concentrações étnicas, com modelos culturais muito dificilmente miscigenáveis, como por exemplo a relação entre população africana e população cigana ou Roma como agora é designada. As longas histórias de marginalização e precarização prendem-se sobretudo com a dificuldade das populações com maior desqualificação encontrarem no mercado de trabalho remuneração decente e garante de uma sobrevivência também decente. Essa dificuldade agrava-se de avós para pais e destes para os netos dos primeiros, gerando grupos populacionais em trajetória acelerada de exclusão, particularmente recetivos a toda e qualquer forma de delinquência, até porque como se costuma reconhecer-se a diferença de condições entre quem não é e quem é delinquente acaba por ter praticamente o mesmo grau de reconhecimento social. Se juntarmos a isto problemas muito concentrados de tráfico de droga que ocupam literalmente alguns bairros.
A complexidade estrutural de todo este processo de desenvolvimento de trajetórias para a exclusão é óbvia e não é preciso ser um sociólogo encartado para compreender a longa dimensão temporal que é necessária para concretizar mudanças no mercado de trabalho, na habitação, nas condições sociais e de educação e no nível de desenvolvimento socioeconómico suscetível de iniciar trajetórias pessoais e familiares mais virtuosas e sustentadas ao longo do tempo. Por isso, não podemos esperar de modo algum que essa transformação estrutural aconteça de um momento para o outro. E não é uma questão de paciência, mas antes de coerência e persistência nas ações a empreender. Dito por outras palavras, os acontecimentos do bairro do zambujal poderiam ter sido evitados ou mitigados sem que a tal transformação estrutural estivesse concluída, mas tão só simplesmente iniciada com medidas consistentes, coerentes e suscetíveis de mostrar a essa população que algo está a acontecer no terreno.
Vou tentar dar alguns exemplos dessas ações ou medidas de mais curto prazo que poderiam sem ignorar a tal dimensão estrutural das coisas evitar ou mitigar o que aconteceu e que poderá manter-se ainda durante algum tempo.
Veja-se por exemplo o erro de enviar para as patrulhas policiais naquele tipo de territórios polícias jovens e sem experiência de contacto com aquele tipo de habitats. Um oficial superior terá dito que basta concluir o seu curso de polícia e os diplomados estarão em condições de trabalhar em qualquer contexto, seja na Quinta da Marinha ou no Zambujal. Este oficial não conhece seguramente a escala da formação das competências num profissional e certamente que não compreende o que é que se deve entender por um profissional competente. Se a PSP tem problemas de recursos humanos que a obrigue a lançar os mais inexperientes na fogueira da violência, então que os evidencie e manifeste e não continue a mandar para as patrulhas policiais nestes bairros gente inexperiente.
Uma outra dimensão de coerência no curto prazo enquadrada por uma visão coerente e estratégica de longo prazo estaria na necessidade de dar sequência e força, generalizando a sua intervenção com mais recursos, de programas que os testemunhos de avaliação existentes dizem que têm funcionado. Do que tenho lido para alguns estudos de avaliação em que tenho participado, envolvendo financiamento comunitário, recordo-me de programas como o BipZip e o Escolhas, cuja avaliação de resultados deveria ser pública e mais alargada e que, caso dessem azo a replicação, deveriam ser alargados e disseminados.
O mesmo poderia ser dito relativamente ao que regra geral se chamam as intervenções de proximidade, com envolvimento das populações desses bairros, seja a tal polícia de proximidade, seja a de lançamento de programas educativos ou de intervenção social mais alargada, seja ainda a de renovação de algum parque habitacional ou o apoio ao desenvolvimento de alguns negócios locais que se debatem com a terrível falta de espaço para as desenvolver.
Creio que estes três exemplos bastam para que o discurso da raiz estrutural dos problemas não se transforme em inação, já que a complexidade é tanta que regra geral ninguém ousa começar a intervir, sobretudo com persistência e sem alterações de rumo à mínima mudança política.
Não é a primeira vez que insisto neste ponto. Uma qualquer estratégia que não seja acompanhada com um plano de transição, com medidas consistentes e coerentes de curto prazo para iniciar a mudança necessária, não é uma estratégia viável. Daí que estejamos tão cansados da ladainha do complexo e estrutural. Há uma certa esquerda que não entende isto. Aliás, como gente sábia como Henry Mintzberg o diz com frequência, uma estratégia não se mede pela qualidade de um texto que a procura definir, mede-se antes pela coerência e pelo padrão de medidas e ações que seja possível implementar ao longo do tempo.
Será muito difícil compreender isto?
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