(Notas sobre um
debate que só aparentemente não nos interessa)
Há por aí algumas vozes
(exemplo da jornalista Helena Garrido) que apregoam o não interesse para a
economia portuguesa de seguir o debate que vai sendo construído em torno dos
temas da estagnação secular e dos desafios que daí resultam para a política
monetária no contexto associado de muito baixas, senão nulas, taxas naturais
reais de juro. O argumento peregrino é que tais ideias nunca terão aplicação em
economias altamente endividadas como a nossa e sobretudo incapazes de, mesmo
nessas condições, aceder sem constrangimento aos mercados de financiamento
internacional como, por exemplo, a economia americana. O argumento é peregrino
porque ninguém alguma vez admitiu que os resultados desse debate teriam
aplicação direta na economia portuguesa. Isso não significa que o debate seja
irrelevante ou inútil. Ele é, pelo contrário, um debate central, embora se
confine ao universo das economias avançadas. Por um lado, os rumos desse debate
não serão indiferentes ao modo como o BCE evoluirá em termos de mandato
estatutário, preso como está, apesar das piruetas arriscadas de Draghi, à
ortodoxia monetária que presidiu à sua constituição (com o beneplácito da social-democracia
europeia, repita-se sempre). Por outro lado, a ultrapassagem da doença
estagnacionista que penetrou as sociedades mais avançadas é vital para uma
economia pequena e aberta como a nossa. Por todas estas razões, o que está em
jogo nessa discussão é bem mais profundo e impactante do que continuar ou não
com a austeridade, pois essa opção tem matizes que dependem fortemente da
evolução da cena económica mundial.
O que sabemos é que há
um conjunto bem identificado de tendências estruturais que acompanham o
ambiente de taxas naturais (neutrais) de juro baixas nas economias mais
avançadas: desigualdade crescente, desaceleração do crescimento da força de
trabalho, preços relativos cada vez mais baixos dos bens de capital,
desaceleração do crescimento da produtividade (também em parte relacionada com
o cenário de envelhecimento demográfico da força de trabalho), mais afluxo de
poupanças provenientes das economias emergentes e procura crescente de ativos
financeiros mais seguros. Todos estes fatores convergem na sua influência sobre
os sinais de estagnação económica.
Pois, neste contexto, como
seria expectável, observam-se sinais de que a política monetária não poderá
deixar de ser reequacionada para fazer face às novas condições com que tem de
trabalhar.
A semana passada, a
publicação das atas da última reunião alargada do FED de julho (ver link aqui), cujo conjunto de
participações é imenso, animou o aparecimento de vários artigos na blogosfera
económica sobre o que tal reunião representou nessa perspetiva de novos paradigmas
de intervenção para a política monetária. Mas o artigo (curto, sob a forma de “economic letter”, mas de grande alcance
e notoriedade) com maior significado foi publicado pelo Presidente de Reserva
Federal de San Francisco, o economista John C. Williams, cujo peso em termos de
matéria de política monetária é por demais conhecido (ver link aqui). O artigo
de Williams (aliás rapidamente reconhecido pelo sempre incisivo Lawrence
Summers no seu blogue, ver link aqui) é muito relevante pois traça rumos bem
marcados para uma mudança do tipo de intervenção que a política monetária tem
até aqui prosseguido.
O conceito-chave de que
Williams parte, já aqui por repetidas vezes referenciado neste blogue, é a taxa natural de juro, conceito de difícil
tratamento em economia, pois não tem uma medida estatística isenta de problemas.
Várias definições de taxa natural de juro são possíveis, o que atesta a
referida dificuldade, mas Williams utiliza uma definição muito pragmática: é a taxa
de juro de curto prazo ajustada pela inflação, real como os economistas tendem
a classificar, que coloca a política monetária em equilíbrio, ou seja que
assegura que a política monetária não tenha de ser nem acomodatícia nem restritiva
em termos de crescimento e inflação. Na simbologia de Williams, teremos a r*. O
relevante é compreender que os bancos centrais estão limitados a fixar a taxa
de juro de curto prazo. O nível da r* dependerá do comportamento da economia.
As evidências incontornáveis
do pós 2007-2008 apontam para que r* tenda a manter-se em níveis bastante baixos,
que uns consideram ser anómalos, outros como Williams e Summers alertam para
que constituem um “novo normal” dos próximos tempos. Sem querer maçar os leitores
com questões demasiado técnicas, interessa sobretudo realçar que baixas r*
significam que a política monetária dispõe de uma curta margem de manobra para
estimular a economia. Os novos tempos anunciam recessões mais longas e profundas
e recuperações mais lentas, que são a marca do pós 2007-2008. É neste contexto que
devemos compreender o que tenho vindo a designar de piruetas da política monetária.
Intervenções mais heterodoxas têm sido ensaiadas e é nessa linha que Draghi tem
dirigido a intervenção do BCE. O que é relevante no artigo de Williams é a perceção
de alguém de dentro da matéria (como Presidente do FED de San Francisco ele participa
nas decisões do FED) apontar para os limites de tais piruetas e para a
necessidade de novos compromissos na condução futura da política monetária.
A primeira, que Summers gostaria
de ter expressão mais vincada, é o reconhecimento inequívoco por parte de Williams
de que não mais pode ser escamoteado o papel da política fiscal neste contexto
de recessões desta natureza. Parece evidente que o pretenso papel da política
monetária como substituto da política fiscal, exercida por bancos centrais
independentes dos executivos políticos, está hoje desacreditado. O novo normal
apagou essa ilusão por muito que custe aos que torcem o nariz à política
fiscal.
A segunda saída é a
projeção de uma meta de inflação superior aos já míticos 2%, por exemplo 4%,
abrindo caminho a políticas reflacionárias para garantir ao banco central mais
margem de manobra. Em alternativa, os bancos centrais podem prosseguir metas de
níveis flexíveis de preços ou de PIB, abandonando a taxa de inflação (variação
e não nível de preços como metas).
Quando alguém de dentro
da política monetária tem esta clarividência, algo se anuncia em termos de mudança
de rumos de intervenção. Mas uma grande interrogação permanece: o que pensarão
as autoridades monetárias alemãs desta matéria?
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