(The Guardian)
(Onde se convocam
alguns contributos recentes para compreender o mundo político atual e a transversalidade de algumas das questões
em aberto)
Vetocracia foi um termo
cunhado por Francis Fukuyama, o tal que precocemente antecipou o fim da
história (ver links aqui sobre o artigo original e aqui o acesso à sua obra The End of History and the Last Man. Tem a
sua origem na análise que Fukuyama faz da sociedade e da política americanas,
na qual emergiu uma situação em que se torna mais fácil bloquear a ação
governativa do que usar a governação para promover o bem comum. A vetocracia
resulta de uma convergência de situações estruturais não corretamente
afrontadas pela ação política mais tradicional, em cujo complexo universo
podemos identificar fatores como: a emergência de poderosos grupos de
interesses não democraticamente escrutinados, a polarização das forças
políticas, a anemia do crescimento e a desaceleração da produtividade, a perda
de poder de barganha da classe trabalhadora e a degradação das classes médias,
a concentração das perdas infligidas pela globalização em grupos sociais bem
demarcados, o desemprego de longa duração dos menos qualificados.
(Francis Fukuyama)
Fukuyama é
particularmente crítico (ver link aqui para artigo recente na Foreign Affairs) para com a utilização
apressada e pouco rigorosa do termo populismo para descrever a reação de grupos
sociais bem determinados à incapacidade das forças políticas mais tradicionais
para fornecer soluções para as situações de perda, marginalização e infortúnio
associadas aos perdedores da globalização. Fukuyama vê no ativismo que suporta
a ascensão de Trump entre os Republicanos e que conduziu Bernie Sanders a uma
luta corpo a corpo com Hillary Clinton a prova de que o sistema político
americano não estava afinal cristalizado, com sinais de dinamismo latentes e
que demoraram tempo a manifestar-se (interessará explicar porquê). Para mim, o
populismo não está na reação, tardia mas violenta, dos que se recusam a ser os
eternos perdedores da globalização. O populismo está antes no aproveitamento político
tosco e mal-intencionado desses sentimentos, arrastando esses grupos sociais
para dinâmicas sociais que são autênticos “cul-de-sac”,
degenerando rapidamente no autoritarismo e na degenerescência da democracia.
Fukuyama sugere que,
pelo menos na política americana, os grupos sociais (as classes?) estão de
volta, suplantando outras clivagens em torno das quais Obama e os Democratas
ganharam as duas últimas eleições presidenciais nos EUA. Clivagens como o
género, a raça, a etnia tendem em seu entender a perder peso, regressando os
grupos sociais ao palco da ação política, isto sem envolver a classe
trabalhadora enquanto tal, desprotegida e aparentemente sem representação
relevante. Já aqui neste blogue, chamei a atenção para investigação recente do
Nobel de Economia Angus Deaton (em colaboração com Anne Case) sobre os meandros
da pobreza americana (ver link aqui), designadamente sobre o agravamento das
condições de esperança de vida à nascença e de mortalidade de grupos brancos da
sociedade americana, colocando-os hoje em situação que em regra estudos
idênticos reportavam à população negra ou hispânica. A droga e o suicídio
parecem hoje tocar os recantos mais profundos da sociedade rural americana,
estendendo territorialmente o que nos anos 80 e 90 parecia confinado às zonas
urbanas mais degradadas. Por estranhos fados da história, que regra geral não
anunciam boas coisas, o trumpismo conseguiu instalar nesse rural profundo uma
forte animosidade contra as políticas de saúde do Obamacare, que visam
precisamente melhorar as condições de proteção dessas populações.
Poderão alguns contrapor
que lá estou a forçar a nota com a sociedade americana, convidando a analogias
apressadas e precoces com o que se passa do lado de cá do Atlântico. Mas se
estiverem atentos ao que está verdadeiramente em jogo, rapidamente
compreenderão que estaremos a falar de algo de mais transversal, mesmo que
possa manifestar-se de modo diferenciado noutros contextos sociais. O que
parece aqui de transversal é a ideia de que hoje não temos pensamento político
para abordar proativamente a evidência de que a globalização não é um processo win-win, como muitos a venderam. É antes
um processo em que há vencedores e perdedores e o problema agrava-se quando
essa desigualdade se perpetua e os perdedores estão socialmente concentrados e
sem perspetivas de sair do fundo do poço. Esse é o verdadeiro problema. Martin
Jacques refere habilmente no Guardian
(ver link aqui) que o neoliberalismo já perdeu essa batalha. Já não consegue
embalar a globalização. A prova está em que na captura do partido republicano
por Trump e no resultado supreendente de Sanders entre os Democratas a
globalização já era, já não pode ser embalada disfarçadamente. O mesmo se pode
dizer da derrota do conservadorismo liberal no Reino Unido com a vitória do
BREXIT, que constituiu uma derrota global (não local) das forças alinhadas com
a globalização, designadamente financeira. E o que é mais trágico é que a
reação à esquerda contra essa mesma realidade concretiza-se essencialmente segundo
modelos de regresso impossível ao passado. É um facto que esse regresso
impossível ao passado é mais visível no anacronismo de Corbyn no Reino Unido do
que na vivacidade septagenária de Sanders nos EUA. Mas esse movimento
antiglobalização manifesta-se ainda nos populismos de direita em França, na
Holanda, na Áustria, na Hungria, sendo ainda difícil compreender qual a deriva
futura do 5 Estrelas em Itália.
Sou dos que acredito,
penso que acompanhado pelas razões da história, que uma situação de regresso à
globalização zero teria consequências trágicas para o bem-estar material das
sociedades. Mas a crise política das sociedades ocidentais é antes de mais a
crise da incapacidade de encontrar uma saída para a globalização, reformando-a
em contexto de preservação da democracia e de políticas para a minimização das
perdas por ela geradas. Há algum pensamento relevante e que nos pode ser útil
nessa matéria e os economistas não estão mal representados nesse processo
(Stiglitz e Rodrik, entre outros). Mas imaginemos que se
abria um longo período de negociações internacionais para construir essa nova
ordem económica internacional. Estará alguém à altura e disponível para nessas
negociações desempenhar o papel que Lord Keynes desempenhou no processo que
conduziu ao sistema de Bretton Woods? Ou será que o paradigma de construção
terá de ser completamente diferente, mais humilde e modesto, mais o resultado
de pequenos contributos e não de uma personalidade com a grandeza da de Lord
Keynes?
Não imaginaria que o meu
curso de Globalização que marcou o fim das minhas lides universitárias
mantivesse tanta atualidade, sobretudo com os desenvolvimentos que tenho vindo
a realizar ao serviço deste blogue!
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