segunda-feira, 22 de agosto de 2016

POPULISMO, VETOCRACIA E GLOBALIZAÇÃO

(The Guardian)


(Onde se convocam alguns contributos recentes para compreender o mundo político atual e a transversalidade de algumas das questões em aberto)

Vetocracia foi um termo cunhado por Francis Fukuyama, o tal que precocemente antecipou o fim da história (ver links aqui sobre o artigo original e aqui o acesso à sua obra The End of History and the Last Man. Tem a sua origem na análise que Fukuyama faz da sociedade e da política americanas, na qual emergiu uma situação em que se torna mais fácil bloquear a ação governativa do que usar a governação para promover o bem comum. A vetocracia resulta de uma convergência de situações estruturais não corretamente afrontadas pela ação política mais tradicional, em cujo complexo universo podemos identificar fatores como: a emergência de poderosos grupos de interesses não democraticamente escrutinados, a polarização das forças políticas, a anemia do crescimento e a desaceleração da produtividade, a perda de poder de barganha da classe trabalhadora e a degradação das classes médias, a concentração das perdas infligidas pela globalização em grupos sociais bem demarcados, o desemprego de longa duração dos menos qualificados.

(Francis Fukuyama)

Fukuyama é particularmente crítico (ver link aqui para artigo recente na Foreign Affairs) para com a utilização apressada e pouco rigorosa do termo populismo para descrever a reação de grupos sociais bem determinados à incapacidade das forças políticas mais tradicionais para fornecer soluções para as situações de perda, marginalização e infortúnio associadas aos perdedores da globalização. Fukuyama vê no ativismo que suporta a ascensão de Trump entre os Republicanos e que conduziu Bernie Sanders a uma luta corpo a corpo com Hillary Clinton a prova de que o sistema político americano não estava afinal cristalizado, com sinais de dinamismo latentes e que demoraram tempo a manifestar-se (interessará explicar porquê). Para mim, o populismo não está na reação, tardia mas violenta, dos que se recusam a ser os eternos perdedores da globalização. O populismo está antes no aproveitamento político tosco e mal-intencionado desses sentimentos, arrastando esses grupos sociais para dinâmicas sociais que são autênticos “cul-de-sac”, degenerando rapidamente no autoritarismo e na degenerescência da democracia.

Fukuyama sugere que, pelo menos na política americana, os grupos sociais (as classes?) estão de volta, suplantando outras clivagens em torno das quais Obama e os Democratas ganharam as duas últimas eleições presidenciais nos EUA. Clivagens como o género, a raça, a etnia tendem em seu entender a perder peso, regressando os grupos sociais ao palco da ação política, isto sem envolver a classe trabalhadora enquanto tal, desprotegida e aparentemente sem representação relevante. Já aqui neste blogue, chamei a atenção para investigação recente do Nobel de Economia Angus Deaton (em colaboração com Anne Case) sobre os meandros da pobreza americana (ver link aqui), designadamente sobre o agravamento das condições de esperança de vida à nascença e de mortalidade de grupos brancos da sociedade americana, colocando-os hoje em situação que em regra estudos idênticos reportavam à população negra ou hispânica. A droga e o suicídio parecem hoje tocar os recantos mais profundos da sociedade rural americana, estendendo territorialmente o que nos anos 80 e 90 parecia confinado às zonas urbanas mais degradadas. Por estranhos fados da história, que regra geral não anunciam boas coisas, o trumpismo conseguiu instalar nesse rural profundo uma forte animosidade contra as políticas de saúde do Obamacare, que visam precisamente melhorar as condições de proteção dessas populações.

Poderão alguns contrapor que lá estou a forçar a nota com a sociedade americana, convidando a analogias apressadas e precoces com o que se passa do lado de cá do Atlântico. Mas se estiverem atentos ao que está verdadeiramente em jogo, rapidamente compreenderão que estaremos a falar de algo de mais transversal, mesmo que possa manifestar-se de modo diferenciado noutros contextos sociais. O que parece aqui de transversal é a ideia de que hoje não temos pensamento político para abordar proativamente a evidência de que a globalização não é um processo win-win, como muitos a venderam. É antes um processo em que há vencedores e perdedores e o problema agrava-se quando essa desigualdade se perpetua e os perdedores estão socialmente concentrados e sem perspetivas de sair do fundo do poço. Esse é o verdadeiro problema. Martin Jacques refere habilmente no Guardian (ver link aqui) que o neoliberalismo já perdeu essa batalha. Já não consegue embalar a globalização. A prova está em que na captura do partido republicano por Trump e no resultado supreendente de Sanders entre os Democratas a globalização já era, já não pode ser embalada disfarçadamente. O mesmo se pode dizer da derrota do conservadorismo liberal no Reino Unido com a vitória do BREXIT, que constituiu uma derrota global (não local) das forças alinhadas com a globalização, designadamente financeira. E o que é mais trágico é que a reação à esquerda contra essa mesma realidade concretiza-se essencialmente segundo modelos de regresso impossível ao passado. É um facto que esse regresso impossível ao passado é mais visível no anacronismo de Corbyn no Reino Unido do que na vivacidade septagenária de Sanders nos EUA. Mas esse movimento antiglobalização manifesta-se ainda nos populismos de direita em França, na Holanda, na Áustria, na Hungria, sendo ainda difícil compreender qual a deriva futura do 5 Estrelas em Itália.

Sou dos que acredito, penso que acompanhado pelas razões da história, que uma situação de regresso à globalização zero teria consequências trágicas para o bem-estar material das sociedades. Mas a crise política das sociedades ocidentais é antes de mais a crise da incapacidade de encontrar uma saída para a globalização, reformando-a em contexto de preservação da democracia e de políticas para a minimização das perdas por ela geradas. Há algum pensamento relevante e que nos pode ser útil nessa matéria e os economistas não estão mal representados nesse processo (Stiglitz e Rodrik, entre outros). Mas imaginemos que se abria um longo período de negociações internacionais para construir essa nova ordem económica internacional. Estará alguém à altura e disponível para nessas negociações desempenhar o papel que Lord Keynes desempenhou no processo que conduziu ao sistema de Bretton Woods? Ou será que o paradigma de construção terá de ser completamente diferente, mais humilde e modesto, mais o resultado de pequenos contributos e não de uma personalidade com a grandeza da de Lord Keynes?

Não imaginaria que o meu curso de Globalização que marcou o fim das minhas lides universitárias mantivesse tanta atualidade, sobretudo com os desenvolvimentos que tenho vindo a realizar ao serviço deste blogue!

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