segunda-feira, 29 de agosto de 2016

AVISOS IGNORADOS SOBRE A GLOBALIZAÇÃO




(A segunda metade dos anos 90 foi fértil em testemunhos fundamentados de economistas que, no fundo, eram avisos sobre a insustentabilidade dos rumos que a globalização estava a assumir; o recuo atual em que o processo se encontra diz-nos que tais avisos foram olimpicamente ignorados)

Já neste blogue me referi, repetidas vezes, ao significado que o BREXIT apresenta do ponto de vista do modo como eleitores e globalização se relacionam. As eleições primárias nos EUA e os seus reflexos nas presidenciais de novembro próximo evoluíram no mesmo registo de rejeição do discurso win-win associado à globalização. Ainda ontem, Sigmar Gabriel, do SPD, vice-presidente do governo de Merkel, referiu que o acordo transatlântico entre a União Europeia e os EUA tinha falhado. Vários nacionalismos europeus em afirmação alinham também por esse mesmo registo.

A segunda metade dos anos 90, com prolongamentos para a década de 2000, foi fértil em estudos e obras de economistas que alertaram para a insustentabilidade do aprofundamento do processo de globalização sem uma adequada ponderação dos efeitos provocados pelo processo em grupos perdedores. Se os desmandos da globalização financeira foram os primeiros a ser denunciados, colocando em evidência o forte contributo da livre e desregulada movimentação dos capitais para a instabilidade financeira, o aprofundamento da globalização económica resistiu mais aos críticos da globalização.

Mas, como antes referi, na segunda metade dos anos 90, Kevin O’Rourke e Jeffrey Williamson, seguindo a via da história económica e estudando em particular os fins do século XIX na chamada economia do atlântico norte (Europa e EUA), mostraram claramente que a ideia do win-win era uma ilusão e que na altura eram os proprietários de terra europeus que perderam acentuadamente rendimento nesse período de aprofundamento da globalização económica. Curiosamente, na época em que O’Rourke e Williamson publicaram a investigação sobre a economia atlântica dos fins do século XIX, estava já no centro do debate a perda que os trabalhadores menos qualificados das economias avançadas experimentavam face à elevadíssima oferta de trabalho menos qualificado que, por via da globalização económica, os países asiáticos valorizavam então no comércio internacional. O’Rourke, apoiado no aviso da sua obra com Williamson, defende compreensivelmente no VOX EU, que os problemas suscitados pela relação entre globalização e desigualdade e os seus efeitos sobre a rejeição de mais integração económica emergiram há longo tempo. Houve assim oportunidade não aproveitada para atempadamente corrigir rumo.

Mas na segunda metade dos anos 90, outros avisos emergiram e gostaria de me concentrar hoje num deles. Dani Rodrik é conhecido por ter sido o primeiro economista a demonstrar o chamado trilema da globalização, ou seja, que não é possível simultaneamente aprofundar a globalização económica e financeira, manter o Estado-Nação e preservar a democracia. Mas não é nesse contributo de Rodrik que gostaria de me concentrar. Antes mesmo de formalizar o referido trilema, Rodrik mostrou, em 1998, que, à medida que o século XX avançava, mais claro era que as economias mais abertas tinham maior governo, ou seja, maior presença do Estado. O artigo de Rodrik (“Why do more open economies have bigger governments?” foi publicado no Journal of Political Economy, uma das revistas de referência e melhor pontuadas nos rankings científicos, pelo que o argumento de que o artigo terá passado despercebido não tem cabimento. Rourke refere artigo da VOX EU que outros economistas mostraram que a tese de Rodrik era válida para períodos anteriores a 1914.

A explicação para que os avisos tivessem caído em saco roto é simples e direta. O aprofundamento da globalização, em termos económicos e financeiros, foi nos anos 80 e 90 o instrumento fundamental para a afirmação do neoliberalismo económico como solução de governança mundial. Para que houvesse coerência entre o instrumento e os princípios que se pretendiam afirmar, não era possível admitir que o processo geraria perdedores estruturais que teriam de ser objeto de intervenções compensatórias. Admiti-lo seria considerar a necessidade de governos mais atentos e mais interventivos na correção de tais perdas estruturais. Isso explica também que o tema da globalização das pessoas, efeitos das imigrações nas economias avançadas, fosse lateralizado. Como é sabido, uma boa gestão das imigrações exige uma política mais alargada de serviços públicos. Manter imigração elevada em tempo de destruição de serviços públicos (como no Reino Unido) só pode conduzir à rejeição das próprias imigrações.

Por todas estas questões, o neoliberalismo é hoje um pensamento em crise, sendo esta última contemporânea da convicção popular de que a globalização não é o apregoado processo win-win. Os tempos vão de feição para que seja de novo percetível aos olhos dos eleitores que mercados e estado são complementos indissociáveis. Apesar disso, a social-democracia europeia não tem produzido nada de relevante na recuperação dessa complementaridade e essa é que é para mim a verdadeira tragédia. Assim como se deixou afagar pelos cantos da sereia desreguladora e da globalização, a social-democracia bem pode ceder aos encantos do nacionalismo para conter os avanços dos populismos. O risco é grande pois não se vislumbra pensamento para reinventar a complementaridade entre mercados e estado.

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