terça-feira, 30 de agosto de 2016

UMA DENTADA NA MAÇÃ?


(Teremos de estar atentos para ver se a dentada da Comissária Margrethe Vestager na multinacional da Maçã é mesmo real, ou se outros interesses, numa União Europeia debilitada, transformarão a dentada em mera carícia)

A Comissária dinamarquesa da Concorrência Margrethe Vestager não é propriamente uma personagem querida dos portugueses e dos seus governos. O assunto “ajudas de Estado” intimida qualquer um, não só pela sua complexidade, só ao alcance de alguns eleitos, mas também pela incomodidade que provoca junto dos governos nacionais. Para além disso, é talvez o pelouro europeu em que mais visível é a marca do mercado e dos constrangimentos que as leis da concorrência colocam a países com mais baixo nível de desenvolvimento económico. Por fim, os recentes acontecimentos na banca portuguesa, do BANIF à capitalização da CGD, têm colocado Vestager no olho do furacão das relações entre o governo de Costa e a Comissão Europeia. Mas se querem que vos diga, farto de invertebrados nas instituições europeias, tenho uma certa simpatia pela personagem, embora não conheça ao pormenor a sua atuação na Comissão.

Mas o facto anunciado por estes dias de que a DG Concorrência pretende exigir da APPLE a devolução de ajudas do governo irlandês à multinacional americana consideradas ilegais face ao quadro jurídico das ajudas de Estado é uma dentada na maça só ao alcance de boas dentições, num montante de cerca de 13 mil milhões de dólares (que balúrdio). O tema é suficientemente relevante e portador de futuro para o monitorizarmos com muita atenção. É conhecida de todos, e a ex-deputada europeia Elisa Ferreira mais do ninguém o tem denunciado, a prática de grande impunidade fiscal que as grandes multinacionais americanas gozam no plano europeu, enfraquecendo que baste o poder de punção fiscal dos países europeus e das autoridades comunitárias relativamente a atividade económica gerada no seu território. É também conhecido a influência de tais práticas na sobretaxação dos rendimentos imóveis, quando comparada com a débil punção fiscal sobre a mobilidade do capital. Aliás, as espantosas taxas a dois dígitos que algumas variáveis macroeconómicas da Irlanda (26% de crescimento do PIB em 2015, por exemplo) têm apresentado nos últimos anos, quando confrontadas com as taxas de variação do rendimento que chega aos bolsos dos irlandeses, sugerem por si só o caráter fiscalmente mirífico de tal dinâmica multinacional na Irlanda. Segundo informações do Financial Times (ver link aqui), a APPLE nos últimos 10 anos terá gerado cerca de 200 mil milhões de dólares de lucros no exterior, com grande influência das subsidiárias irlandesas. conseguindo uma taxa média de cerca de 4% de IRC. Bem pode o governo irlandês recorrer a todas as piruetas jurídicas possíveis que será difícil esconder tal volume de subsidiação. Não estou a ignorar os efeitos positivos que a presença da APPLE trará à economia irlandesa, sinceramente desconhecendo se a APPLE produzirá efeitos de spill-over do tipo das que a Auto Europa tende a determinar em toda a rede de fornecedores portugueses de produtos internacionais à multinacional alemã. Mas o que está aqui em causa é que tudo isto se passa numa união monetária em que as leis da concorrência são de facto a doer e onde esta fiscalidade indiferenciada é depois corroborada por uma margem de manobra inquestionável que a organização multinacional possibilita. No seio desta questão, estão questões complexas de conceitos diferentes de residência fiscal na Irlanda e nos EUA, tanto mais estranhas quando as subsidiárias da APPLE na Irlanda têm direitos de propriedade intelectual APPLE. Na sua alocução de hoje, Vestager avançou inclusivamente com a acusação de que a sede da APPLE na Irlanda é meramente fictícia, o que leva as coisas para um patamar difícil de gerar acordos de circunstância.


Claro que o governo irlandês já veio insurgir-se contra esta condenação, pois pode estar em causa a sua atratividade fiscal. Altas autoridades americanas já vieram deixar no ar a sua pequena ameaça de que tudo pode mudar no relacionamento comercial (a Volkswagen que se prepare!), sobretudo porque a devolução de tais importâncias acaba por reduzir a capacidade de punção fiscal dos EUA a partir dos rendimentos da APPLE. E a própria APPLE veio também a terreiro invocar 34 anos de presença no território irlandês. A dentada de Vestager escolheu uma maça dura de roer e o processo não será adequado a dentições de leite.

Assim, três anos de investigação sobre os acordos fiscais Irlanda-APPLE seguirão para tribunal fazendo companhia aos casos Starbucks e Fiat e a situação da AMAZON permanece em investigação. A Comissão Europeia parece que existe e pena é que isso não seja visível noutras matérias.


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