(A política espanhola está cada vez mais desafiante. Ela
alimenta-se de ataques impiedosos, mas também de reações e afetos pós luta
política. Tenho seguido com curiosidade os comentários e declarações
após o abandono de Rajoy do governo e da vida política, reconstituindo o que
poderia designar de sociologia do pós-combate político.)
O abalo
político suscitado em Espanha pela aprovação da moção de censura (construtiva)
ao governo do PP e a consequente investidura de Pedro Sánchez tem réplicas cada
vez mais lentas e espaçadas. Para além da terminologia da geringonça ter agora
uma expressão ibérica (e como os jornalistas se pelam por estas coisas), a
ponto da pena verrinosa de Ferreira Fernandes justificar que esta sim corresponde
ao significado do termo, o governo de Sánchez mostra ter tido uma formação
inteligente. As mulheres assumem no Executivo uma expressão saliente, num sinal
de modernidade e estou certo de competência que o PSOE parece recuperar após as
lutas internas e autofágicas dos últimos tempos, até à vitória interna de
Sánchez. Se estiver certo, é a melhor homenagem póstuma que o PSOE poderá fazer
à saudosa Carme Chacón que tanto mereceria estar neste governo, se o seu frágil
coração não a tivesse atraiçoado. Pode ser um governo fugaz, já que as
condições apontam para isso. Mas nestas coisas há surpresas. E como
verdadeiramente só o CIUDADANOS estaria interessado em eleições o mais cedo
possível pode ser que a coisa se componha e haja governo até ao fim da legislatura.
Mas é de
sociologia de pós-combate que gostaria de falar. A saída de Rajoy não foi
apenas um facto político relevante. É que para além da derrota há também da sua
parte um propósito de abandono da vida política. Quando no contexto atual, o
irritante bigodinho de Aznar começa a rondar os títulos dos jornais, com o
petulante propósito de se oferecer para reordenar o centro-direita espanhol, já
apetece dizer, regressa Rajoy estás perdoado e barra o caminho a essa
excrecência da política e tão amigo do nosso (outrora “dono disto tudo” e já
ido para outras funções) Dias Loureiro. Mas o que me interessa são as
apreciações do agora ex-presidente do PP. Há que convir que sai com dignidade e
até surpreendentemente com algum carinho. A troca de cumprimentos no Congresso
dos Deputados entre Pedro e Mariano foi cívica e educada. Pablo Iglésias, quem
diria, dedicou-lhe um comentário de grande afetividade, recordando combates
anteriores. O Partido Nacional Vasco que politicamente o apoiou na aprovação
dos Pressupuestos mas que votou sim à moção de censura fez algo de semelhante.
Vá lá saber-se porquê foram os similares políticos do CIUDADANOS que mais se
abespinharam com o homem, não lhe perdoando o seu próprio erro de perspetiva e
de timing político.
Mas até
agora o testemunho que mais, em meu entender, avançou foi o de uma crónica que
sigo habitualmente. Já aqui me referi ao intelectual, professor e cronista
galego Xosé Luís Barreiro Rivas, truculento, contraditório, de pena afiada, que
escreve regularmente na Voz de Galícia. Em reuniões do Eixo Atlântico e de
iniciativas promovidas pela Xunta de Galícia em que estive envolvido privei com
a personagem e os seus escritos são o fiel prolongamento do que é no diálogo e
na discussão. É daquelas personagens sobre as quais podemos alimentar todas as
dúvidas, mas às quais não se fica indiferente. Na sua evolução política, que
justificaria ela própria um ensaio, Barreiro Rivas aproximou-se mais
recentemente de Rajoy e por isso o seu testemunho seja talvez diferente do que tenho
lido (link aqui).
Primeiro, o
que é desconcertante mas que dá bem a ideia do personagem, o intelectual galego
cita Camões para mencionar que na sua despedida Rajoy poderia ter dito: “Mais servira, se não fora para tão longo
amor tão curta a vida”.
A melhor
maneira de sublinhar o que me atraiu no texto de Barreiro Rivas é citar o
último parágrafo da sua crónica:
“Não se trata de escrever um epitáfio prematuro ao amigo
que compareceu ontem perante a Espanha com cara saudável, olhar de aço e
serenidade evidente. Nem de reconhecer que um valor político tão validado e tão
necessário para Espanha abandona a atividade política para sempre. Só quero
deixar registado que este político bem-sucedido, que tocou com mestria todas as
teclas –brancas e negras – do teclado democrático, deixou de competir. Que já
não serve para agrupar, no seu “não é não”, a imensa variedade dos seus
adversários. E que os ganhos significativos que alguns alcançaram,
personificando nele os males da pátria, começam a dirimir-se entre si numa nova
liga onde não se poderá jogar, espero, com cartas marcadas. Ainda que os
jornais de hoje se esforcem por perscrutar as razões e incertezas de uma
decisão política tão complexa, atrevo-me a afirmar que a dimensão humana desse
“pôr-se de lado” transforma em irrelevantes as consequências estratégicas desse
facto. Porque Rajoy já é um valor inquestionável. Porque tudo o que aconteça
depois de hoje está escrito noutro caderno cujo autor está por descobrir. E
porque, enquanto o PP começa a rearmar-se para a grande batalha, Rajoy só pensa
em conquistar o merecido paraíso da sua vida privada.”
Este texto
respira proximidade e amizade a um protagonista que sai. Mas vai fundo num
problema que para mim é central na democracia e na captação da classe política
- o respeito pelo valor inestimável da vida privada. Alguns valoram tanto essa
liberdade que não ousam entrar na vida política. Outros têm o direito a ela
regressar, como Rajoy, e que alívio deve isso proporcionar. E outros ainda têm
o direito de a exercer preservando essa vida privada o mais possível, podendo
ser cidadãos normais por horas que sejam.
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