(Não tenho qualquer competência ou veleidade de futurólogo
ou aprendiz de prospetiva. Limito-me a reconhecer que o Conselho Europeu que esta
tarde se inicia em Bruxelas acontece num momento em que todas as contradições do
mundo parecem convergir num grande nó. E para baralhar e comprometer
ainda mais a situação, os riscos de uma próxima recessão europeia viram a sua
probabilidade de ocorrência aumentarem significativamente nos últimos dias.)
As vozes
populares dizem que “o que nasce torto raramente se endireita”. Aplicando esta
sabedoria popular ao projeto europeu, poderíamos dizer que, face aos sucessivos
empurrões com a barriga dos líderes europeus em matéria de superação das
contradições internas do projeto e do seu relacionamento com os eleitorados
nacionais, o cântaro tantas vezes vai periclitante à fonte que um dia partirá com
estrondo. Até agora, parece que as lideranças europeias necessitam do aperto e
da aflição em cima da hora para descobrirem saídas que componham a manta por
uns tempos. O método é arriscado e não é seguro que sempre funcione. Pode ser
que seja desta vez ou que de novo alguma luz comprometida e uma vez mais
contraditória a prazo surja no calor das negociações.
Dirão vozes
críticas como a de José Pacheco Pereira que tudo isto se deve à pretensão
tecnocrática e antidemocrática de construir os sucessivos momentos do projeto europeu
à revelia dos parlamentos nacionais, dos eleitorados que os elegem e das populações
cidadãs em última análise. Esta posição merece ponderação. Não é difícil
encontrarmos momentos em que a tecnocracia europeia, com objetivos políticos
encobertos nas soluções técnicas se sobrepôs a uma reflexão mais democrática e
inclusiva do que os avanços prematuros representaram. Mas os argumentos de JPP
vão muitas vezes no sentido de denunciar as perdas de soberania que a integração
europeia representa, reivindicando também que essas perdas de soberania
deveriam ter sido mais consistentemente apresentadas no prato da balança das
opções políticas.
Compreendo
essa argumentação, reconheço que levanta questões relevantes que não devemos
escamotear, mas acho que o projeto de uma União Europeia, com a ideia de uma União
Económica e Monetária no seu interior, não pode ser construído à medida e em estreita
interação com os eleitorados nacionais. Um projeto desta natureza tem de assentar
sempre em algumas componentes transnacionais, de alguma audácia e projeção para
o futuro, algumas ideias europeias que prevaleçam sobre os interesses nacionais.
Assistimos hoje ao absurdo contraditório dos demónios políticos que atravessam alguns
eleitorados europeus (em Itália, no leste europeu, na própria Alemanha com uma senhora
Merkel cada vez mais encostada à parede) a condicionarem o próprio projeto europeu.
Dir-me-ão que tais demónios podem ser associados aos próprios erros de progressão
das instituições europeias. Mas em meu entender a emergência de tais demónios
tem uma explicação mais vasta do que a que é circunscrita às derivas da
construção europeia. Esses demónios surgem predominantemente associados à baixa
qualificação, ao não cosmopolitismo, aos deserdados da economia que sempre existiram
nas mutações dos ciclos longos da economia, ao sentimento de perda, à
desqualificação da classe política, enfim a um conjunto de fatores que transcende
em muito as derivas, reais, da construção europeia. Por isso, não estou convencido
que o contrafactual das não perdas de soberania produzisse resultados melhores,
o que não significa que não reconheça que a construção podia e deveria assentar
numa maior interação política com os eleitorados nacionais.
A União Europeia
chega ao Conselho de hoje à tarde de novo pressionada, seja por sinais de que a
recessão é hoje mais provável do que há um mês ou dois (link aqui e aqui para artigos de Wolfgang Munchau), seja pela dimensão
global e estrutural dos problemas dos refugiados que buscam território europeu.
A primeira fonte de pressão abate-se sobre as possibilidades de mobilização de
recursos financeiros para uma abordagem mais abrangente da crise humanitária e
da necessidade de também a combater na origem dos fluxos. A construção de um
orçamento para a zona euro, o completar do edifício da União Bancária e a emissão
de ativos seguros para combater uma qualquer fonte de recessão, venha ela do
mercado da dívida soberana, do sistema bancário ou de uma bolha imobiliária
qualquer, estão periclitantes. A segunda pressão é ainda mais incómoda e violenta.
Temos assistido a verdadeiras insurreições do espírito comunitário, sem que se
pressintam quaisquer sanções para os prevaricadores assumidos. Insurreição tanto mais que os valores dos fluxos de entrada de refugiados caíram substancialmente como se vê no gráfico abaixo:
(New York Times, link aqui)
Tal como as
coisas se apresentam, a probabilidade de uma resposta ao problema migratório a
28 parece uma miragem. E uma solução em geometria limitada a alguns dos 28, sem
sanções para os que se recusam a uma visão solidária ou com sanções para os prevaricadores,
pode ser o princípio da falência. Nestas situações, a interação com os eleitorados
nacionais é explosiva e não podemos ignorar a hipótese de que a senhora Merkel possa
ser uma das sacrificadas de todo este processo. O que seria aterrador do ponto
de vista dos rumos que se poderiam abrir na Alemanha.
Por sua vez,
a ideia dos centros de barragem nos países emissores de refugiados sem intervenção
nas causas profundas de guerra, pobreza extrema e violência descontrolada que
avançam vertiginosamente nesses países não é menos abjeta e aterradora.
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