domingo, 3 de junho de 2018

AINDA A PROPÓSITO DO QUIOSQUE



(O artigo de Pacheco Pereira sobre o tema no Público de ontem leva-me a voltar ao tema. Há pouco contrafactual na ideia de que o surto turístico no Porto está a destruir a Cidade.)

O meu post sobre o Quiosque é anterior ao artigo de PP, por isso estou à vontade para reforçar algumas ideias e ajudar a combater outras.

Para mim é claro que a decisão da Câmara de Rui Moreira e seus pares de inviabilizar a continuidade do equipamento é por demais ilustrativa da incapacidade do modelo que orienta este Executivo de conviver com um Porto alternativo que sempre foi a sua marca diferenciadora. O que caracteriza acima de tudo as práticas culturais no Porto é a sua capacidade de funcionar livremente e se for necessário à revelia da corte, onde quer que ela esteja, em Lisboa ou no Porto. Para mim, vale muito mais essa capacidade do que a capacidade de acesso de Rui Moreira aos media para se manifestar contra Lisboa. A prova de que tenho razão é a proliferação desse Porto alternativo quando, no legado de Rui Rio na Cidade (personagem que PP sempre apoiou pelo menos no tempo da sua rebelião contra o FCP e seus interesses), se quis suprimir os legados anteriores do Porto2001, demasiado à esquerda para o personagem.

Por isso até aqui o artigo de PP está em linha com a minha interpretação e a sua referência ao Conceito que retira o Quiosque de um dos sítios mais emblemáticos do Porto em termos de agitação de ideias e de interclassismo que ainda predomina por aquelas paragens. Sei do que falo. O meu filho Hugo vive a 100 metros e constato regularmente que é assim, apesar do surto turístico.

A páginas tantas, PP socorre-se do Dicionário e ataca com a gentrificação. Para mim, o termo não é de dicionário, mas antes de urbanismo e desenvolvimento urbano que me interessa. E por aqui começa a minha discordância. Tenho para mim que à escala do Porto, quando comparada com as Cidades em que o termo foi cunhado, a gentrificação do Porto ainda é uma bebé ou menina. Por isso, largamente a tempo de ser contrariada, acaso a política municipal em vez de desativar quiosques incómodos decida por fim assumir uma política de habitação que se veja, regulando por essa via o mercado.

Há por aí um movimento de gente enfadada, de mal com a vida, que pensa que a Cidade não é densidade e que gostaria de nela estar como estaria no campo. E que aqui d’El Rey quando o surto turístico acabar vai ser uma desgraça. Esta gente ainda não percebeu que uma economia de mercado não é um relógio suíço dos antigos. Nos mercados convivem a irracionalidade e a mais pura racionalidade económica.

Precisemos as coisas. A revitalização de algumas zonas do Porto tem o seu início antes do surto turístico. Também por experiência própria constatei que na zona de S. Lázaro, Belas Artes, Rodrigues de Freitas e vias perpendiculares a esta a revitalização começou antes do surto turístico. Que foi reforçada em intensidade após a emergência do alojamento local disso não tenho dúvidas. Que esse reforço foi fundamental para atingir uma massa crítica de reabilitação capaz de influenciar o mercado, também é para mim claro. Que tem de ser regulada e a política municipal pode fazê-lo parece óbvio.

Mas há uma outra realidade a ter em conta, que costumo designar de contrafactual (urbano). Antes do surto turístico o que tínhamos? Declínio, envelhecimento habitacional, falta de massa crítica de reabilitação. Os meninos e casais endinheirados preferiam a Foz, as adjacências da Avenida da Boavista, S. João de Brito e outras paragens. Os tais valores de que PP fala como historiador onde estavam na altura? Certamente alquebrados, vendo-os do ponto de vista da anomia política em que a Cidade vivia, depois do ressurgimento de Fernando Gomes, apesar do seu modelo de Cidade poder inspirar reservas. E mais do que isso, poderemos perguntar: sem o surto turístico como teria evoluído a Cidade nesse declínio atrás assinalado? Teria dado a volta sem essa alavanca? Tinha a Câmara força e meios para suscitar junto do mercado essa reviravolta?

Não entendo o alarme que por aí vai. A zona em que desaparece o Quiosque do Piorio mantém o seu interclassismo como o constato regularmente. Os turistas que por aqui ocupam o alojamento ajustam-se que nem brinco aquele contexto e convivem com ele. A minha neta Margaridinha sente-se como peixe na água. Gentrificação? Deve ser da minha miopia que não a vejo. Portugal padece em muitas ciências sociais, como o urbanismo e outras, de um velho pecado original. Estuda por manuais e artigos que nascem num contexto que não tem extensão possível ao nosso terreiro dada a nossa dimensão. Há vinte-trinta anos, as teses de mestrado vomitavam fordismo como se Portugal estivesse na ponta tecnológica. Algo de semelhante se passa com a gentrificação. Deixemo-nos de aplicações pacóvias e concentremo-nos no essencial, regular as exuberâncias irracionais do mercado, neste caso do alojamento local. E a política municipal que se desunhe e não incomode as dinâmicas alternativas. Se for capaz disso, claro.

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