quarta-feira, 22 de julho de 2020

AINDA O ACORDO DO CONSELHO EUROPEU



(Como explicar que, face a um acordo que muitos consideraram como histórico, o meu último post assentasse numa deceção de grandes proporções e o tivesse escrito com todas as letras e convicção. A razão é simples. Para lá da importância do acordo, o diabo está nos bastidores e sobretudo na sua evolução).

Explico-me. Não tenho dúvidas de que se trata de um acordo histórico, no sentido de que vai ficar como um marco da atribulada vida do projeto europeu. Percebi que o seria, se fosse concretizado, quando a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen apresentou a sua proposta que apontava para que, pela primeira vez, a Comissão Europeia se endividaria enquanto tal nos mercados financeiros para redistribuir pelos países da União o produto desse empréstimo. Não era a ansiada mutualização, mas a solução proposta quebrava imensos tabus. Já no momento dessa apresentação se compreendeu também que iríamos assistir a uma porfiada barganha do ponto de vista da repartição dos montantes a transferir em termos de subvenções e empréstimos. Também se percebeu na altura que um outro problema seria relegado para mais ver, as condições em que o empréstimo da Comissão Europeia terá de ser pago.

Pelas razões apontadas e pela dramática gestação do acordo, que esteve algumas vezes ameaçado com a corda das negociações prestes a romper-se, os observadores que apontam para um acordo histórico têm razão e não tenho dúvidas de que a história do projeto europeu dedicará a estas longos quatro dias (e noites) a devida atenção.

Porquê então o meu título de “A União vai Nua”? Não se trata de um paradoxo? Estamos perante algo de histórico e associo ao momento uma espécie de perda da virgindade em matéria de expectativas quanto ao projeto e ao jogo europeu?

É tudo uma questão de bastidores e sobretudo das sombras que pairam sobre este tipo de negociações para uma decisão final.

Há três questões essenciais, as duas primeiras mais relevantes do que a terceira, que ensombram irremediavelmente a génese deste acordo e que me faz pensar na necessidade de aprendermos a definir a nossa alocação de recursos em função de cenários cada vez menos favoráveis para uma economia de pequena dimensão, mesmo que com uma longa história, como Portugal.

As três questões a que me refiro são incomparavelmente mais negras do que a acusação que se tem ouvido nos últimos dias de que a Europa é simplesmente o mercado interno ou único.

A primeira questão, aliás brilhantemente enunciada num dos artigos que Teresa de Sousa dedicou ao rescaldo do acordo no Público (sempre com uma outra elevação e qualidade do que o apresentado pela arraia miúda do jornalismo que se ocupa em Portugal destas coisas), (link aqui e aqui), está relacionada com os motivos que subjazem ao comportamento dos chamados frugais. Particularmente os Países Baixos, já que os restantes socialistas escandinavos, há muito que não têm memória do socialismo de Olof Palme, estão reféns de situações minoritárias de governo, reagindo por pura realidade defensiva face aos espirros da extrema-direita ou da direita anti-europeísta e xenófoba. São uma espécie de PP espanhol reagindo em função da apropriação de eleitorado que o VOX foi comendo nas bases mais retrógradas do PP. Todos os passos europeus são medidos em função da sensibilidade do eleitorado que alimenta o ressurgimento político das forças de direita. Por isso, a tática da reivindicação dos descontos foi acionada e se colocou em cima da mesa a possibilidade de pedir explicações sobre o modo como (obviamente os endividados do sul) os países se afastarem dos planos de recuperação apresentados em Bruxelas. Estes personagens tipo Rutte vão compreender demasiado tarde que os eleitorados irão sempre preferir os originais às cópias, mesmo que rosnem a bom rosnar nas negociações em Bruxelas.

A segunda questão resulta da trágica incapacidade das instituições europeias não resolverem em sede própria as derivas democráticas da Hungria e Polónia e outros se seguirão e permitirem que uma negociação deste alcance possa ser contaminada por esse contágio. Tenho a convicção de que esta questão vai acabar mal e o motivo é claramente deixar o fogo crepitar sem o esmagar atempadamente.

A terceira questão que ensombra este acordo é o desplante de certos países quererem assumir o tom intimidatório dos diretórios europeus durante a ascensão e malefícios das troikas. É uma degenerescência clara das instituições comunitárias, que não foi expurgada nem com os mea culpas dos Schöbles deste mundo. Está lá, é assustadora pelo que representa de um pouco admirável mundo novo que nos espera no relacionamento internacional.

Por isso, tem sentido encimar este post com o gráfico que indica (fonte Comissão Europeia) os ganhos per capita que os diferentes países auferem com o mercado único europeu.

Tanta hipocrisia dá azia. Preciso de uma pastilha.

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